Em 8 de novembro de 2023 o Supremo Tribunal Federal julgou o RE 1.167.478/RJ, paradigma do tema de 1053 Repercussão Geral: Separação judicial como requisito para o divórcio e sua subsistência como figura autônoma no ordenamento jurídico brasileiro após a promulgação da Emenda Constitucional (EC) 66/2010.
A primeira parte do tema, por sinal, a única matéria que constava do recurso em pauta, sobre a manutenção dos requisitos temporais de um ano de separação judicial, teve julgamento unânime, no que acertou o STF, já que efetivamente a EC 66/2010 é de aplicação imediata há mais de uma década, como reconhece nossa Jurisprudência, desnecessitando de legislação que a complemente para ser aplicada. Em suma, o divórcio independe de separação prévia.
A segunda parte do tema, que decorreu de ampliação do que efetivamente se debatia no recurso, referente à manutenção da separação como instituto autônomo, teve votação não unânime e, por maioria, o STF decidiu por sua supressão do ordenamento legal.
Deveria ser desnecessário dizer, mas, diante do julgamento do STF, é preciso salientar que uma corte constitucional deveria sempre se debruçar sobre razões constitucionais dos seus julgamentos, o que, data venia, não se vê nos votos dos Ministros que formaram a maioria.
Argumentou-se, por exemplo, com os direitos das mulheres que seriam prejudicadas pelo instituto da separação, o que nada tem a ver com matéria do tema em debate no STF.
Pior que isto, a manutenção da separação em nada prejudicaria as mulheres, bem ao contrário, as protegeria, tendo em vista que aquelas que sustentam a casa e sofrem violência doméstica, estavam, antes da decisão do STF, protegidas pelas normas da separação e nada tinham de pagar a título de pensão alimentícia ao agressor, por haver norma expressa sobre a separação nesse sentido.
Os debates sobre a obrigação alimentar da mulher violentada perante seu agressor entulharão o Poder Judiciário de processos. Aliás, se falou no julgamento em desjudicialização, quando a supressão da separação em nada altera o volume de processos, muito ao contrário, aumentará e retardará as sentenças.
Infelizmente a Corte Constitucional nos votos da maioria não foi técnica e não atentou para os direitos fundamentais que acaba de gravemente violar e seus efeitos deletérios.
Como amicus curiae, a Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) apresentou todos os fundamentos constitucionais para a manutenção da separação judicial como instituto autônomo.
O instituto da separação judicial deveria permanecer no ordenamento como uma opção a quem não quer ou não pode se divorciar, por razões constitucionais, ou seja, pela proteção aos direitos fundamentais, que são soberanos num Estado laico como o Brasil.
Para quem quer dar um tempo, mantendo o vínculo conjugal, mas regularizando seu estado civil, com a extinção dos deveres do casamento e até mesmo partilha de bens, a eliminação da separação viola o direito fundamental à liberdade (CF, art. 5o, caput).
Para quem não pode se divorciar por sua crença – católicos e evangélicos que seguem ortodoxamente seus dogmas e doutrinas –, o STF violou gravemente o direito fundamental à liberdade de exercício de direitos em razão da crença (CF, art. 5o, inciso VIII).
Sem a opção da separação judicial ou extrajudicial, os religiosos que seguem ortodoxamente seus dogmas e doutrinas não poderão regularizar seu estado civil, terão de permanecer casados, até mesmo diante de agressão física ou moral praticada pelo outro cônjuge, simplesmente separados no plano dos fatos e não jurídico, sem regularização do seu estado civil e vivendo num limbo, como bem salientou o Ministro André Mendonça, que abriu a divergência e votou pela manutenção do instituto da separação judicial, seguido pelo Ministro Nunes Marques, também com bons fundamentos nesse sentido.
Por sinal, já que os direitos da mulher estavam nas falas de alguns dos Ministros que formaram a maioria no julgamento, a mulher católica ou evangélica continuará presa ao casamento com a eliminação do instituto da separação judicial. A outra opção para essas mulheres religiosas será descumprir seus dogmas e doutrinas, divorciando-se.
Note-se que segundo as pesquisas, 50% da população brasileira é formada por católicos e 31% por evangélicos. É um contingente populacional expressivo.
Aliás, a ADFAS havia também esclarecido uma dúvida indevidamente levantada pelos que se posicionavam como amicus curiae pela eliminação da separação, alegando que, se um dos cônjuges não quisesse ou não pudesse se divorciar e se o outro cônjuge quisesse o divórcio, a situação ficaria insolúvel. Aí mais um equívoco porque seria decretado o divórcio e o cônjuge religioso não estaria descumprindo seus preceitos porque não teria pedido a dissolução do vínculo conjugal.
Sobre não haver mais lugar para a culpa no casamento, é de pasmar o argumento de que isto teria advindo da EC 66/2010, já que existem várias espécies dissolutórias desde a Lei 6.515 de 1977, como bem salientou o Ministro Alexandre de Moraes em seu voto pela manutenção do instituto da separação.
Realmente, a dissolução conjugal foi desatrelada da obrigatoriedade da demonstração de culpa do cônjuge há décadas. A declaração judicial de que foi descumprido um dever conjugal, com a consequente perda da pensão alimentícia de quem foi infiel ou agrediu moral ou fisicamente o cônjuge, há muito tempo não é obrigatória, mas apenas uma opção.
Não será o STF, por mais supremo que seja o seu poder, capaz de transformar os deveres conjugais em meras faculdades ou recomendações, afinal, dever sem consequências por seu descumprimento deixaria de ter esta natureza.
Fidelidade sem sanção por seu descumprimento seria mera faculdade. Respeito à integridade física e moral do cônjuge sem sanção seria mera recomendação. Se assim fosse, a pessoa casada poderia trair sem qualquer consequência da prática desse ilícito. A pessoa casada poderia agredir física ou moralmente o cônjuge e continuar a ter o direito de ser sustentada pela vítima da violência.
O STF, nos votos da maioria, olvidou-se do verdadeiro conceito de culpa: descumprimento consciente de norma de conduta, que gera a aplicação de sanções se esta for a vontade da vítima do ato ilícito. Até mesmo na compra de um pãozinho, há deveres e direitos; se o pãozinho tiver um fio de cabelo, o consumidor pode pedir que se aplique à empresa panificadora as respectivas sanções.
Aliás, o cônjuge portador de deficiência mental ou intelectual grave também ficará prejudicado pela eliminação da separação, por ser-lhe prevista, antes do julgamento do STF, uma relevante proteção patrimonial na divisão de bens em caso de dissolução conjugal.
Mesmo com a interrupção reiterada por seus pares na prolação de seu voto, o Ministro Alexandre de Moraes fez a análise profunda da história constitucional das formas de dissolução conjugal e acentuou os efeitos diferentes da separação que dissolve a sociedade conjugal, enquanto o divórcio extingue o vínculo conjugal. E observou, diante das interrupções ao seu voto: qual seria a inconstitucionalidade de dar liberdade a quem é casado de optar por uma ou outra forma de dissolução conjugal?
O Brasil, mais uma vez, como ocorreu na multiparentalidade liberada pelo STF no Tema 622, fica ilhado em face de tantos outros países desenvolvidos que adotam a separação como uma opção, ao lado do divórcio, como o direito português, o espanhol, o francês, o italiano, o chileno e o uruguaio, entre outros.
Esperamos que o Congresso Nacional na reforma do Código Civil, que deve tramitar em breve pelo Senado e depois na Câmara dos Deputados, corrija o grave erro do STF e reponha no ordenamento legal a separação como uma das espécies ou opções de dissolução conjugal.
*Regina Beatriz Tavares da Silva, fundadora e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Pós-doutora em Direito da Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutora e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada e sócia-fundadora de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados (RBTSSA)