O STF proclamou, nesta quinta-feira (24), o resultado do julgamento referente às quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305) que questionavam algumas alterações no Código de Processo Penal (CPP) promovidas pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), dentre elas a criação do juiz das garantias.
Ainda que a recente decisão do STF esteja sendo veiculada quase que exclusivamente em relação ao juiz das garantias, há uma série de outras implicações igualmente significativas para o sistema de justiça criminal brasileiro que precisam ser analisadas.
Quando comparadas com as amplas prerrogativas legais que o Pacote Anticrime originalmente conferia ao Ministério Público, o STF lhes impôs restrições. De outro turno, a Lei n. 13.964/2019 manietava o Poder Judiciário e o papel do Delegado de Polícia, e isso foi corrigido pelo Supremo. Por exemplo, embora o sistema processual brasileiro seja acusatório, a referida lei limitava o juiz em seu poder de determinar a realização de diligências suplementares, o que agora foi restabelecido.
Ademais, o STF conferiu interpretação conforme a Constituição aos incisos IV, VIII e IX do art. 3º-B do CPP, para que todos os atos praticados pelo Ministério Público como condutor de investigação penal se submetam ao controle judicial (HC 89.837/DF, Rel. Min. Celso de Mello) e fixou o prazo de até 90 (noventa) dias, contados da publicação da ata do julgamento, para os representantes do Ministério Público encaminharem, sob pena de nulidade, todos os PIC e outros procedimentos de investigação criminal, mesmo que tenham outras denominações, ao respectivo juiz natural, independentemente de já ter sido implementado o juiz das garantias na jurisdição respectiva.
Fato é que se presume que exista um considerável volume de investigações conduzidas pelo Ministério Público não submetidas a qualquer controle judicial. De outro turno, o STF parece reconhecer a existência de efetivo controle dos inquéritos policiais em Delegacias de Polícia, inclusive fiscalizados pelo próprio MP, que realiza o controle externo da atividade policial.
Há um inegável avanço na visão do STF sobre a lisura do trabalho das Polícias Judiciárias no Brasil, pois, ainda que o originário imperativo legal fosse direcionado somente ao controle dos inquéritos policiais (inciso IV do Art. 3º-B), o Supremo voltou toda a sua preocupação expressa ao encadernamento sigiloso de diligências apuratórias do Ministério Público.
O STF poderia ter ordenado que todas as Delegacias de Polícia adotassem semelhante postura (com o rigor retórico direcionado ao Ministério Público), mas não o fez.
Uma outra justificativa para esse tratamento dicotômico reside no fato de que a atividade de investigação ministerial é relativamente pequena, pois convenientemente seletiva. Isso resulta em um impacto menor ao se determinar a remessa célere de todos os seus cadernos ministeriais ao Poder Judiciário.
Outro ponto relevante é que, antes da análise do STF sobre a constitucionalidade das normas estabelecidas na Lei n. 13.964/2019, acreditava-se que seriam impostas severas limitações às prorrogações de prazo de inquéritos policiais afetos a réus presos.
No entanto, por unanimidade, atribuiu-se interpretação conforme ao § 2º do art. 3º-B do CPP para assentar que: a) o juiz pode, fundamentadamente, reconhecer a necessidade de novas prorrogações do inquérito, diante de elementos concretos e da complexidade da investigação; e b) a inobservância do prazo previsto em lei não implica a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a avaliar os motivos que a ensejaram.
Ademais, na redação original do parágrafo 3º do Art. 3º-C, trazia-se expressamente uma limitação ao raio de influência do inquérito policial na futura ação penal.
Esse dispositivo deixava claro que os autos relacionados à competência do juiz das garantias seriam mantidos na secretaria desse juízo, à disposição tanto do Ministério Público quanto da defesa, sem que fossem apensados aos autos do processo encaminhados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos a provas irrepetíveis, medidas de obtenção ou antecipação de provas, que seriam enviados separadamente. Isso estava transformando o inquérito policial em um instrumento vazio e essencialmente restrito à fase inicial de persecução.
Sensível à realidade processual brasileira, o Supremo Tribunal Federal rompeu drasticamente com essa lógica promovida pelo pacote anticrime. Muito talvez por reconhecer que as ações penais, em sua esmagadora maioria, desenvolvem-se no rastro do que foi produzido na investigação criminal, o que não justificaria racionalmente o descarte de tais elementos.
Assim, por unanimidade, o STF declarou a inconstitucionalidade, com redução de texto, dos §§ 3º e 4º do art. 3º-C do CPP, atribuindo interpretação conforme para entender que os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias deverão ser remetidos ao juiz da instrução e julgamento.
Inegável que, a partir dessa decisão, o inquérito policial esteja sendo alçado à condição de elemento central na persecução penal, pois além de sustentar materialmente a futura ação penal, é de remessa necessária ao juízo de instrução, que é o único apto a conduzir a persecutio de forma justa e eficaz.
No que tange à divulgação midiática, o STF assenta que a divulgação de informações relacionadas à prisão e à identidade do preso pelas Autoridades Policiais, Ministério Público e Magistratura, deve assegurar a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão.
Essa nova diretriz pode refletir na mitigação de dispositivos da Lei de Abuso de Autoridade (Art. 13, incisos I e II, art. 28 e art. 38 da Lei n. 13.869/2019), os quais, de alguma forma, buscavam dar prevalência à preservação da imagem do preso em detrimento de outros direitos (a exemplo da efetividade da persecução e o direito à informação). Essa lógica é rompida, pois tais vetores interpretativos são colocados em patamar de igualdade, suscitando ponderação casuística.
Um outro ponto relevante diz respeito ao caput do art. 28 do CPP, alterado pela Lei nº 13.964/2019. O (STF) definiu que o órgão do Ministério Público não tem o poder de determinar o arquivamento do inquérito policial, mas apenas de opinar sobre essa possibilidade. E, ao se manifestar pelo arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público submeterá sua manifestação ao juiz competente e comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial, podendo encaminhar os autos para o Procurador-Geral ou para a instância de revisão ministerial, quando houver, para fins de homologação, na forma da lei.
Avança, também, o STF na interpretação conforme à Constituição do § 1º do art. 28 do CPP para esclarecer que, além da vítima ou de seu representante legal, a autoridade judicial competente também poderá submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, caso verifique patente ilegalidade ou teratologia no ato do arquivamento.
Perceba-se que, no caput do art. 28, desenhou-se o procedimento ordinário de revisão, sendo que é o próprio membro do Ministério Público que remete automaticamente os autos à revisão. No § 1º, o cenário é diferente, permitindo que atores diferentes suscitem tal revisão. A vítima pode fazê-lo pelos motivos que acreditar adequados; o magistrado só o fará no caso de patente ilegalidade ou decisão teratologia.
No caso de serem evidentes tais vícios, o magistrado encaminha a matéria à revisão na expectativa de que a instância superior do órgão ministerial não chancelará o arquivamento. Até porque não possui o referido órgão superior a competência e o poder de transformar o arquivamento ilícito em lícito, o teratológico em ortodoxo permitido.
Se a decisão da instância superior for a favor do arquivamento, mesmo quando a ilegalidade ou a decisão incorreta forem evidentes, surgirá um conflito entre o Poder Judiciário (que reconheceu a incorreção do arquivamento e, por isso, submeteu-o à revisão) e o Ministério Público.
Ainda que se reconheça a grande importância constitucional do Ministério Público, não pode ele, que não é um dos Poderes da República, possuir supremacia sobre estes, tornando suas decisões ilícitas inatingíveis ao Poder Judiciário.
No entanto, enfrentamos um desafio significativo, pois o legislador não previu uma solução para esse impasse, deixando uma perigosa lacuna no nosso ordenamento jurídico.
É de extrema importância que o Poder Legislativo considere alternativas viáveis, como a revisão dessas decisões pelos Tribunais Superiores ou a ampliação dos sujeitos com legitimidade subsidiária para iniciar a ação penal. Afinal, o artigo 129, inciso I, da Constituição Federal, embora seja mecanismo relevante, não é considerado uma cláusula pétrea e, portanto, pode ser objeto de reforma constitucional.
*Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor de pós-graduação, membro da Academia Goiana de Direito, doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG)
*Eduardo Alexandre Fontes, delegado de Polícia Federal, mestrando em Ciências Políticas e Juridicas pela Universidade Portucalense (Porto/Portugal), especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Universidade de Sorocaba/SP, Professor de cursos de pós-graduação, autor de obras jurídicas
*Ivana David é desembargadora na 7.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justica do Estado de São Paulo, vice-presidente da Comissão de Segurança e Prerrogativas 2023/2024, integrante do Centro de Inteligência do TJSP. Professora e palestrante