No contexto do direito brasileiro, a invocação do princípio constitucional da moralidade administrativa, abordada por autores especializados em direito constitucional e administrativo, constantemente remete à definição inicial dada pelo jurista francês Maurice Hauriou (1856-1929). Em sua obra Précis de droit administratif et de droit public (1921), Hauriou afirma que “há uma moralidade administrativa que impõe aos administradores regras de conduta extraídas da disciplina interna da administração.”
No entanto, em nenhum momento Maurice Hauriou usou o termo “princípio” ao se referir à moralidade administrativa. Na referida obra, o autor abordava sobre o procedimento de recours pour excès de pouvoir, que era uma ação de anulação de atos administrativos por abuso de poder, cuja competência para análise de mérito cabia ao juiz do Conselho de Estado francês.
O conceito de excès de pouvoir (abuso de poder), requisito para o recebimento da mencionada ação, passou por diversas interpretações pelo Conselho de Estado francês. Hauriou destacou que essas questões eram complexas, uma vez que envolviam tanto aspectos legais quanto morais. O elemento moral do excès de pouvoir concentrava-se na incompetência e no desvio de poder, isto é, para o recebimento da ação de anulação de atos abusivos era necessário que o ato questionado tivesse sido emitido por agente incompetente ou com desvio de finalidade.
Se se considerasse apenas os aspectos estritamente legais, o recours pour excès de pouvoir seria somente um mecanismo de controle da legalidade dos atos administrativos. No entanto, havia questões que iam além das imposições legislativas, especialmente em casos de excessos em decisões discricionárias que não estavam alinhadas com o bem do serviço público. Por essa razão, Hauriou abordou as regras internas do direito administrativo e fez referência ao abuso de poder em situações de desvio de finalidade nas decisões discricionárias. Ele destacou que, ao analisar o excès de pouvoir, não se tratava apenas de uma questão de conformidade legal, mas também de garantir que as decisões administrativas estivessem respeitando valores morais.
Hauriou não estava, portanto, conceituando um princípio que nortearia todo o direito administrativo, mas sim alertando para a existência de circunstâncias não consignadas na legislação que poderiam ensejar excès de pouvoir (excesso ou abuso de poder), subsídio necessário para a instauração da ação de anulação do ato administrativo questionado. Em outras palavras, visava possibilitar a anulação de atos administrativos que apresentavam justificativas não contempladas pela legislação e que eram abusivas. Assim, ele utilizou o termo “moralidade administrativa” como fundamento para sustentar a possibilidade de contestação desses atos.
Ao analisar o contexto e as fases interpretativas do recours pour excès de pouvoir pelo Conselho de Estado francês, fica claro que a preocupação central de Hauriou era controlar os atos abusivos dos administradores que poderiam escapar da análise estritamente legal e, consequentemente, tornar-se impunes. Hauriou empregou a terminologia “moralidade administrativa” como uma categoria distinta da legalidade, que deveria ser considerada pelo Conselho de Estado francês. Assim, sua preocupação estava em assegurar que a administração pública agisse não apenas dentro dos limites da lei, mas também de acordo com padrões morais.
Segundo Hauriou, a moralidade administrativa faz parte da personalidade moral do Estado, que estabelece as normas de conduta para aqueles que agem em seu nome. Essa moralidade se manifesta na forma como o poder discricionário é exercido e é avaliada com base nas justificativas das decisões tomadas. É crucial entender que a moralidade administrativa é uma característica do Estado, que representa a coletividade e deve sempre atuar em favor do bem comum, e não uma qualidade pessoal do agente responsável pelo ato. O que se espera é que as ações sejam voltadas para o benefício da coletividade e para todos aqueles que estão sendo representados. O exercício da moralidade administrativa exige a realização de atos discricionários não discriminatórios.
A verificação da moralidade administrativa se deslindava na análise da discricionariedade do ato administrativo, analisando-se a competência, motivo e finalidade do ato, que deveriam visar ao serviço público e a coletividade.
No direito brasileiro, o termo “moralidade administrativa” foi mencionado pela primeira vez em 1964 pelo jurista Hely Lopes Meirelles (1917-1990). No entanto, foi Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (1916-2002) quem aprofundou o tema e o estabeleceu como um princípio, em 1974. Posteriormente, em 1988, a moralidade administrativa foi formalmente reconhecida como um princípio constitucional na Constituição da República Federativa do Brasil.
Desde então, o conceito de moralidade administrativa foi amplamente estudado e modificado pela doutrina e jurisprudência. No entanto, mais de 60 anos após sua primeira citação, ainda não existe uma definição e aplicação uniformes no direito brasileiro. O conceito se transformou em um “mega princípio”, frequentemente mencionado e utilizado como base para diversas questões e decisões, mas sem uma justificativa sólida e coerente do princípio em si. Essa situação pode ser atribuída ao fato de que a moralidade foi frequentemente reduzida a um conjunto de qualidades individuais, como honestidade, probidade e ética — aspectos imprescindíveis, sem dúvida — mas que não capturam a essência mais ampla do princípio. A moralidade administrativa deveria ser compreendida como uma característica do Estado, que deve agir em nome da coletividade e perseguir incessantemente o bem comum de todos os seus representados, e não apenas como uma norma de comportamento individual dos agentes estatais. Até porque, o agente estatal age no exercício de suas funções como se o Estado fosse.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica