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Opinião|Violência doméstica, exceção ao retorno da criança; juízes de Enlace brasileiros na Haia


Por Daniele Maranhão, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Fernando Quadros, Inês Virgínia Prado Soares, Pedro Felipe Santos, Rogério de Menezes Fialho Moreira e Theophilo Antônio Miguel Filho*

Em outubro deste ano, magistrados federais integraram a delegação brasileira que participou, na Haia, Holanda, da 8ª Reunião da Comissão Especial sobre aplicação das Convenções da Haia de 1980 e 1996, respectivamente sobre aspectos civis da subtração internacional de crianças e sobre a proteção internacional da criança.

No sentido horário, Daniele Maranhão, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Fernando Quadros, Inês Virgínia Prado Soares, Pedro Felipe Santos, Rogério de Menezes Fialho Moreira e Theophilo Antônio Miguel Filho Foto: Autores/arquivo pessoal

A presença de quatro Juízes de Enlace como integrantes da delegação brasileira - do Coordenador Nacional do Grupo de Juízes de Enlace, Desembargador Federal Guilherme Calmon e os Juízes de Enlace das 1ª, 2ª e 3ª Regiões, respectivamente os Desembargadores Federais Daniele Maranhão, Theophilo Miguel e Inês Virgínia Soares -, refletiu a recente estruturação do Judiciário para lidar com esse tema. Desde 2021, por designação do STF, há uma coordenação nacional do grupo de juízes de enlace e um Desembargador de cada TRF indicado como Juiz de Enlace da respectiva Região. Vale lembrar que a atribuição precípua do Juiz de Enlace (ou de Ligação) é a de, a partir da conexão entre juízes de países diversos, mediar a comunicação e obter informações relevantes para que o Brasil cumpra a Convenção de 1980. A atribuição do Juiz de Enlace não é jurisdicional, embora possa haver essa coincidência, a depender da estruturação interna de trabalho de cada TRF. O processamento das ações sobre esse tema é regulado pela Resolução nº 449/22, do Conselho Nacional de Justiça.

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Nesta 8ª Reunião realizada na Haia, além da apresentação para as outras delegações da atual estrutura do judiciário no tratamento do tema, quatro pontos foram explorados pelos juízes de enlace brasileiros: 1. a oposição à afirmação de que a vinculação da demora do julgamento (segundo a Convenção de 1980 o processo deve ser solucionado em seis semanas) à violação dos direitos humanos; 2. a importância da mediação antes e durante o ajuizamento da ação para retorno da criança, como forma mais rápida e efetiva de solução dos casos; 3. a necessidade de se considerar o termo “violência doméstica” em amplitude, conforme previsto na Lei Maria da Penha, para efeitos da exceção de não retorno da criança prevista na Convenção de 1980 (art. 13 (1) b, da Convenção); e 4. a urgência de o Judiciário ter mecanismos para acompanhar, de forma efetiva e institucional, a situação da criança e o cumprimento da decisão judicial no retorno, no país de residência habitual, ou seja, de se criar ou usar mecanismos pós-decisão.

Os pontos 1, 2 e 4 são temas que também têm sido considerados nas atuações das instituições envolvidas no cumprimento da Convenção, como a ACAF/MJSP, Ministério das Relações Exteriores, AGU e Poder Legislativo, com ações e interações.

A manifestação sobre o ponto da violência doméstica como exceção ao retorno da criança foi apresentada oralmente no 8º Encontro pela Desembargadora Federal Daniele Maranhão, juíza de Enlace da 1ª Região, a partir de estudos e texto redigido pela Rede Nacional de Juízes de Enlace. A fala, breve e objetiva, como todas que aconteceram no Encontro, teve por finalidade lançar luzes para a questão de gênero que permeia a aplicação da Convenção de 1980 pelo Judiciário brasileiro. O teor da manifestação foi o seguinte:

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“Senhoras e senhores,

A jornada foi longa, mas o Brasil fez avanços notáveis. Ao abordarmos as regras da Convenção de Haia de 1980 para o repatriamento de crianças em meio a questões de violência doméstica é imperativo que atuemos com discernimento. Devemos garantir que não agravaremos o estado já vulnerável da criança afetada.

O sistema jurídico brasileiro reconheceu que quando há provas documentadas de exposição à violência doméstica, existe um grave risco no retorno da criança à sua residência habitual. Isto se deve principalmente a potenciais ameaças do agressor, conforme descrito no Artigo 13, b, da Convenção.

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É essencial destacar a Lei Maria da Penha do Brasil – um marco legal monumental que salvaguarda a esfera familiar. Esta lei identifica diversas formas de violência doméstica, incluindo física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.

As origens desta lei estão enraizadas na resistência. Decorrente de uma denúncia contra a violência doméstica sofrida por Maria da Penha, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomendou que o Brasil combatesse seus problemas de violência doméstica. Em 2002, após a prisão do agressor de Maria da Penha, os movimentos civis intensificaram o debate, levando à promulgação desta lei fundamental.

A Lei Maria da Penha não apenas significa a resposta do Brasil ao julgamento da Organização dos Estados Americanos- OEA e aos movimentos pelos direitos das mulheres, mas também exemplifica o compromisso do Estado no combate à violência contra as mulheres. A lei fornece um quadro abrangente para prevenção, proteção e acolhimento. Na análise da exceção da Convenção da Haia de 1980, o artigo 7º da Lei Maria da Penha desempenha um papel crucial.

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No Brasil, a violência doméstica não é apenas física. A nossa legislação reconhece os abusos patrimoniais, psicológicos e sexuais como formas de violência doméstica.

Ao abordar estas questões, o Conselho Nacional de Justiça do Brasil tem sido fundamental.

Resoluções recentes, incluindo as Resoluções 254 e 492 do CNJ, reforçaram nosso compromisso com o combate à violência contra as mulheres, alinhando-se com o ODS 5 da Agenda 2030 da ONU.

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O parlamento brasileiro envolveu-se ativamente com organizações, funcionários e, nomeadamente, mães que sofreram abusos no estrangeiro, na promoção destas discussões. Um exemplo foi a recente reunião da Comissão Mista de Migração e Refugiados do Senado Brasileiro, em outubro de 2023, que teve como objetivo definir diretrizes para uma proposta legislativa que abordasse a Convenção da Haia no contexto da violência doméstica.

Para encerrar, em nome da delegação brasileira, continuamos receptivos e ansiosos por novos diálogos e sugestões. Obrigada.”

Como a violência doméstica pode ensejar o reconhecimento de uma exceção à determinação judicial de retorno da criança ao país de residência habitual, para que neste país se resolva a guarda dos filhos, há uma frequência significativa de alegações de violência doméstica pelas mães brasileiras que retornam ao país com seus filhos sem autorização do outro genitor.

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As maiores discussões entre os Estados signatários da Convenção residem no fato desse olhar mais atento à violência contra mulheres inviabilizar a devolução da criança ao país de residência habitual no tempo previsto na Convenção, alterando seu foco.

Após a fala do Brasil e de outros países, houve manifestações das delegações a favor da criação de um Grupo de Trabalho-GT para discutir a questão da violência doméstica. Com posições favoráveis mas também contrárias à criação do GT, especialmente por existir um guia de boas práticas sobre o tema publicado pela HCCH, o secretário-geral da Conferência da Haia, de pronto, rejeitou a criação do GT no momento, como produto do 8º Encontro, porque a criação de GTs exige planejamento e orçamento para execução das tarefas, ou seja, por limitações operacionais de acordo com o estatuto que rege o funcionamento da Conferência da Haia.

A posição da delegação brasileira foi a de insistir na necessidade de se considerar a criação do GT temático num futuro próximo, por entender que a proteção da mãe contra os tipos de violência doméstica previstos na Lei Maria da Penha repercute intrínseca e diretamente na segurança da criança.

Como, no Brasil, as mães são as que trazem os filhos ao país sem a autorização dos pais (cerca de 80 por cento dos casos que tramitam no Judiciário são de mães subtratoras), há uma questão de gênero que não pode ser ignorada, seja quando se decide pelo não retorno, baseado na exceção da violência doméstica, seja quando se determina o retorno, para solução da guarda no país de residência habitual. O julgamento sob a perspectiva de gênero foi institucionalizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2022, pela Resolução 492, e, atualmente, compõe o mosaico protetivo da criança e de sua mãe, quando da aplicação da Convenção da Haia de 1980.

Ao final, a Comissão Especial deliberou no sentido de aprovar a proposta do Secretário Geral da Conferência da Haia de constituição de um Fórum que poderá admitir discussões entre os Estados Contratantes da Convenção de 1980 e organizações representativas dos interesses dos genitores e das crianças. O Fórum poderá sugerir a continuidade dos trabalhos da Conferência da Haia acerca desse tema (conforme item 29 do Documento de Trabalho n. 28, da Comissão Especial).

Tal encaminhamento revela, na visão dos Juízes de Enlace brasileiros, medida necessária e imprescindível para o aprofundamento do debate do tema da violência doméstica e da exceção ao retorno da criança ao Estado da sua residência habitual.

Em maio de 2024, será realizado 1º Encontro de Juízes de Enlace da América Latina e Caribe, na cidade do Rio de Janeiro, e a aposta do grupo brasileiro de Juízes de Enlace é de que os debates em torno do tema da violência doméstica sejam profícuos, com aportes que permitam pensar e aplicar a Convenção da Haia de 1980 desde uma perspectiva latinoamericana e caribenha.

*Daniele Maranhão (TRF-1) é desembargadora federal e Juíza de Enlace da 1.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Guilherme Calmon Nogueira da Gama (TRF-2) é desembargador federal e coordenador do grupo nacional de Juízes de Enlace

*Fernando Quadros (TRF-4) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 4.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Inês Virgínia Prado Soares (TRF-3) é desembargadora federal e Juíza de Enlace da 3.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Pedro Felipe Santos (TRF- 6) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 6.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Rogério de Menezes Fialho Moreira (TRF-5) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 5.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Theophilo Antônio Miguel Filho (TRF-2) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 5.ª Região para Convenção da Haia de 1980

Em outubro deste ano, magistrados federais integraram a delegação brasileira que participou, na Haia, Holanda, da 8ª Reunião da Comissão Especial sobre aplicação das Convenções da Haia de 1980 e 1996, respectivamente sobre aspectos civis da subtração internacional de crianças e sobre a proteção internacional da criança.

No sentido horário, Daniele Maranhão, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Fernando Quadros, Inês Virgínia Prado Soares, Pedro Felipe Santos, Rogério de Menezes Fialho Moreira e Theophilo Antônio Miguel Filho Foto: Autores/arquivo pessoal

A presença de quatro Juízes de Enlace como integrantes da delegação brasileira - do Coordenador Nacional do Grupo de Juízes de Enlace, Desembargador Federal Guilherme Calmon e os Juízes de Enlace das 1ª, 2ª e 3ª Regiões, respectivamente os Desembargadores Federais Daniele Maranhão, Theophilo Miguel e Inês Virgínia Soares -, refletiu a recente estruturação do Judiciário para lidar com esse tema. Desde 2021, por designação do STF, há uma coordenação nacional do grupo de juízes de enlace e um Desembargador de cada TRF indicado como Juiz de Enlace da respectiva Região. Vale lembrar que a atribuição precípua do Juiz de Enlace (ou de Ligação) é a de, a partir da conexão entre juízes de países diversos, mediar a comunicação e obter informações relevantes para que o Brasil cumpra a Convenção de 1980. A atribuição do Juiz de Enlace não é jurisdicional, embora possa haver essa coincidência, a depender da estruturação interna de trabalho de cada TRF. O processamento das ações sobre esse tema é regulado pela Resolução nº 449/22, do Conselho Nacional de Justiça.

Nesta 8ª Reunião realizada na Haia, além da apresentação para as outras delegações da atual estrutura do judiciário no tratamento do tema, quatro pontos foram explorados pelos juízes de enlace brasileiros: 1. a oposição à afirmação de que a vinculação da demora do julgamento (segundo a Convenção de 1980 o processo deve ser solucionado em seis semanas) à violação dos direitos humanos; 2. a importância da mediação antes e durante o ajuizamento da ação para retorno da criança, como forma mais rápida e efetiva de solução dos casos; 3. a necessidade de se considerar o termo “violência doméstica” em amplitude, conforme previsto na Lei Maria da Penha, para efeitos da exceção de não retorno da criança prevista na Convenção de 1980 (art. 13 (1) b, da Convenção); e 4. a urgência de o Judiciário ter mecanismos para acompanhar, de forma efetiva e institucional, a situação da criança e o cumprimento da decisão judicial no retorno, no país de residência habitual, ou seja, de se criar ou usar mecanismos pós-decisão.

Os pontos 1, 2 e 4 são temas que também têm sido considerados nas atuações das instituições envolvidas no cumprimento da Convenção, como a ACAF/MJSP, Ministério das Relações Exteriores, AGU e Poder Legislativo, com ações e interações.

A manifestação sobre o ponto da violência doméstica como exceção ao retorno da criança foi apresentada oralmente no 8º Encontro pela Desembargadora Federal Daniele Maranhão, juíza de Enlace da 1ª Região, a partir de estudos e texto redigido pela Rede Nacional de Juízes de Enlace. A fala, breve e objetiva, como todas que aconteceram no Encontro, teve por finalidade lançar luzes para a questão de gênero que permeia a aplicação da Convenção de 1980 pelo Judiciário brasileiro. O teor da manifestação foi o seguinte:

“Senhoras e senhores,

A jornada foi longa, mas o Brasil fez avanços notáveis. Ao abordarmos as regras da Convenção de Haia de 1980 para o repatriamento de crianças em meio a questões de violência doméstica é imperativo que atuemos com discernimento. Devemos garantir que não agravaremos o estado já vulnerável da criança afetada.

O sistema jurídico brasileiro reconheceu que quando há provas documentadas de exposição à violência doméstica, existe um grave risco no retorno da criança à sua residência habitual. Isto se deve principalmente a potenciais ameaças do agressor, conforme descrito no Artigo 13, b, da Convenção.

É essencial destacar a Lei Maria da Penha do Brasil – um marco legal monumental que salvaguarda a esfera familiar. Esta lei identifica diversas formas de violência doméstica, incluindo física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.

As origens desta lei estão enraizadas na resistência. Decorrente de uma denúncia contra a violência doméstica sofrida por Maria da Penha, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomendou que o Brasil combatesse seus problemas de violência doméstica. Em 2002, após a prisão do agressor de Maria da Penha, os movimentos civis intensificaram o debate, levando à promulgação desta lei fundamental.

A Lei Maria da Penha não apenas significa a resposta do Brasil ao julgamento da Organização dos Estados Americanos- OEA e aos movimentos pelos direitos das mulheres, mas também exemplifica o compromisso do Estado no combate à violência contra as mulheres. A lei fornece um quadro abrangente para prevenção, proteção e acolhimento. Na análise da exceção da Convenção da Haia de 1980, o artigo 7º da Lei Maria da Penha desempenha um papel crucial.

No Brasil, a violência doméstica não é apenas física. A nossa legislação reconhece os abusos patrimoniais, psicológicos e sexuais como formas de violência doméstica.

Ao abordar estas questões, o Conselho Nacional de Justiça do Brasil tem sido fundamental.

Resoluções recentes, incluindo as Resoluções 254 e 492 do CNJ, reforçaram nosso compromisso com o combate à violência contra as mulheres, alinhando-se com o ODS 5 da Agenda 2030 da ONU.

O parlamento brasileiro envolveu-se ativamente com organizações, funcionários e, nomeadamente, mães que sofreram abusos no estrangeiro, na promoção destas discussões. Um exemplo foi a recente reunião da Comissão Mista de Migração e Refugiados do Senado Brasileiro, em outubro de 2023, que teve como objetivo definir diretrizes para uma proposta legislativa que abordasse a Convenção da Haia no contexto da violência doméstica.

Para encerrar, em nome da delegação brasileira, continuamos receptivos e ansiosos por novos diálogos e sugestões. Obrigada.”

Como a violência doméstica pode ensejar o reconhecimento de uma exceção à determinação judicial de retorno da criança ao país de residência habitual, para que neste país se resolva a guarda dos filhos, há uma frequência significativa de alegações de violência doméstica pelas mães brasileiras que retornam ao país com seus filhos sem autorização do outro genitor.

As maiores discussões entre os Estados signatários da Convenção residem no fato desse olhar mais atento à violência contra mulheres inviabilizar a devolução da criança ao país de residência habitual no tempo previsto na Convenção, alterando seu foco.

Após a fala do Brasil e de outros países, houve manifestações das delegações a favor da criação de um Grupo de Trabalho-GT para discutir a questão da violência doméstica. Com posições favoráveis mas também contrárias à criação do GT, especialmente por existir um guia de boas práticas sobre o tema publicado pela HCCH, o secretário-geral da Conferência da Haia, de pronto, rejeitou a criação do GT no momento, como produto do 8º Encontro, porque a criação de GTs exige planejamento e orçamento para execução das tarefas, ou seja, por limitações operacionais de acordo com o estatuto que rege o funcionamento da Conferência da Haia.

A posição da delegação brasileira foi a de insistir na necessidade de se considerar a criação do GT temático num futuro próximo, por entender que a proteção da mãe contra os tipos de violência doméstica previstos na Lei Maria da Penha repercute intrínseca e diretamente na segurança da criança.

Como, no Brasil, as mães são as que trazem os filhos ao país sem a autorização dos pais (cerca de 80 por cento dos casos que tramitam no Judiciário são de mães subtratoras), há uma questão de gênero que não pode ser ignorada, seja quando se decide pelo não retorno, baseado na exceção da violência doméstica, seja quando se determina o retorno, para solução da guarda no país de residência habitual. O julgamento sob a perspectiva de gênero foi institucionalizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2022, pela Resolução 492, e, atualmente, compõe o mosaico protetivo da criança e de sua mãe, quando da aplicação da Convenção da Haia de 1980.

Ao final, a Comissão Especial deliberou no sentido de aprovar a proposta do Secretário Geral da Conferência da Haia de constituição de um Fórum que poderá admitir discussões entre os Estados Contratantes da Convenção de 1980 e organizações representativas dos interesses dos genitores e das crianças. O Fórum poderá sugerir a continuidade dos trabalhos da Conferência da Haia acerca desse tema (conforme item 29 do Documento de Trabalho n. 28, da Comissão Especial).

Tal encaminhamento revela, na visão dos Juízes de Enlace brasileiros, medida necessária e imprescindível para o aprofundamento do debate do tema da violência doméstica e da exceção ao retorno da criança ao Estado da sua residência habitual.

Em maio de 2024, será realizado 1º Encontro de Juízes de Enlace da América Latina e Caribe, na cidade do Rio de Janeiro, e a aposta do grupo brasileiro de Juízes de Enlace é de que os debates em torno do tema da violência doméstica sejam profícuos, com aportes que permitam pensar e aplicar a Convenção da Haia de 1980 desde uma perspectiva latinoamericana e caribenha.

*Daniele Maranhão (TRF-1) é desembargadora federal e Juíza de Enlace da 1.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Guilherme Calmon Nogueira da Gama (TRF-2) é desembargador federal e coordenador do grupo nacional de Juízes de Enlace

*Fernando Quadros (TRF-4) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 4.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Inês Virgínia Prado Soares (TRF-3) é desembargadora federal e Juíza de Enlace da 3.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Pedro Felipe Santos (TRF- 6) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 6.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Rogério de Menezes Fialho Moreira (TRF-5) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 5.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Theophilo Antônio Miguel Filho (TRF-2) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 5.ª Região para Convenção da Haia de 1980

Em outubro deste ano, magistrados federais integraram a delegação brasileira que participou, na Haia, Holanda, da 8ª Reunião da Comissão Especial sobre aplicação das Convenções da Haia de 1980 e 1996, respectivamente sobre aspectos civis da subtração internacional de crianças e sobre a proteção internacional da criança.

No sentido horário, Daniele Maranhão, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Fernando Quadros, Inês Virgínia Prado Soares, Pedro Felipe Santos, Rogério de Menezes Fialho Moreira e Theophilo Antônio Miguel Filho Foto: Autores/arquivo pessoal

A presença de quatro Juízes de Enlace como integrantes da delegação brasileira - do Coordenador Nacional do Grupo de Juízes de Enlace, Desembargador Federal Guilherme Calmon e os Juízes de Enlace das 1ª, 2ª e 3ª Regiões, respectivamente os Desembargadores Federais Daniele Maranhão, Theophilo Miguel e Inês Virgínia Soares -, refletiu a recente estruturação do Judiciário para lidar com esse tema. Desde 2021, por designação do STF, há uma coordenação nacional do grupo de juízes de enlace e um Desembargador de cada TRF indicado como Juiz de Enlace da respectiva Região. Vale lembrar que a atribuição precípua do Juiz de Enlace (ou de Ligação) é a de, a partir da conexão entre juízes de países diversos, mediar a comunicação e obter informações relevantes para que o Brasil cumpra a Convenção de 1980. A atribuição do Juiz de Enlace não é jurisdicional, embora possa haver essa coincidência, a depender da estruturação interna de trabalho de cada TRF. O processamento das ações sobre esse tema é regulado pela Resolução nº 449/22, do Conselho Nacional de Justiça.

Nesta 8ª Reunião realizada na Haia, além da apresentação para as outras delegações da atual estrutura do judiciário no tratamento do tema, quatro pontos foram explorados pelos juízes de enlace brasileiros: 1. a oposição à afirmação de que a vinculação da demora do julgamento (segundo a Convenção de 1980 o processo deve ser solucionado em seis semanas) à violação dos direitos humanos; 2. a importância da mediação antes e durante o ajuizamento da ação para retorno da criança, como forma mais rápida e efetiva de solução dos casos; 3. a necessidade de se considerar o termo “violência doméstica” em amplitude, conforme previsto na Lei Maria da Penha, para efeitos da exceção de não retorno da criança prevista na Convenção de 1980 (art. 13 (1) b, da Convenção); e 4. a urgência de o Judiciário ter mecanismos para acompanhar, de forma efetiva e institucional, a situação da criança e o cumprimento da decisão judicial no retorno, no país de residência habitual, ou seja, de se criar ou usar mecanismos pós-decisão.

Os pontos 1, 2 e 4 são temas que também têm sido considerados nas atuações das instituições envolvidas no cumprimento da Convenção, como a ACAF/MJSP, Ministério das Relações Exteriores, AGU e Poder Legislativo, com ações e interações.

A manifestação sobre o ponto da violência doméstica como exceção ao retorno da criança foi apresentada oralmente no 8º Encontro pela Desembargadora Federal Daniele Maranhão, juíza de Enlace da 1ª Região, a partir de estudos e texto redigido pela Rede Nacional de Juízes de Enlace. A fala, breve e objetiva, como todas que aconteceram no Encontro, teve por finalidade lançar luzes para a questão de gênero que permeia a aplicação da Convenção de 1980 pelo Judiciário brasileiro. O teor da manifestação foi o seguinte:

“Senhoras e senhores,

A jornada foi longa, mas o Brasil fez avanços notáveis. Ao abordarmos as regras da Convenção de Haia de 1980 para o repatriamento de crianças em meio a questões de violência doméstica é imperativo que atuemos com discernimento. Devemos garantir que não agravaremos o estado já vulnerável da criança afetada.

O sistema jurídico brasileiro reconheceu que quando há provas documentadas de exposição à violência doméstica, existe um grave risco no retorno da criança à sua residência habitual. Isto se deve principalmente a potenciais ameaças do agressor, conforme descrito no Artigo 13, b, da Convenção.

É essencial destacar a Lei Maria da Penha do Brasil – um marco legal monumental que salvaguarda a esfera familiar. Esta lei identifica diversas formas de violência doméstica, incluindo física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.

As origens desta lei estão enraizadas na resistência. Decorrente de uma denúncia contra a violência doméstica sofrida por Maria da Penha, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomendou que o Brasil combatesse seus problemas de violência doméstica. Em 2002, após a prisão do agressor de Maria da Penha, os movimentos civis intensificaram o debate, levando à promulgação desta lei fundamental.

A Lei Maria da Penha não apenas significa a resposta do Brasil ao julgamento da Organização dos Estados Americanos- OEA e aos movimentos pelos direitos das mulheres, mas também exemplifica o compromisso do Estado no combate à violência contra as mulheres. A lei fornece um quadro abrangente para prevenção, proteção e acolhimento. Na análise da exceção da Convenção da Haia de 1980, o artigo 7º da Lei Maria da Penha desempenha um papel crucial.

No Brasil, a violência doméstica não é apenas física. A nossa legislação reconhece os abusos patrimoniais, psicológicos e sexuais como formas de violência doméstica.

Ao abordar estas questões, o Conselho Nacional de Justiça do Brasil tem sido fundamental.

Resoluções recentes, incluindo as Resoluções 254 e 492 do CNJ, reforçaram nosso compromisso com o combate à violência contra as mulheres, alinhando-se com o ODS 5 da Agenda 2030 da ONU.

O parlamento brasileiro envolveu-se ativamente com organizações, funcionários e, nomeadamente, mães que sofreram abusos no estrangeiro, na promoção destas discussões. Um exemplo foi a recente reunião da Comissão Mista de Migração e Refugiados do Senado Brasileiro, em outubro de 2023, que teve como objetivo definir diretrizes para uma proposta legislativa que abordasse a Convenção da Haia no contexto da violência doméstica.

Para encerrar, em nome da delegação brasileira, continuamos receptivos e ansiosos por novos diálogos e sugestões. Obrigada.”

Como a violência doméstica pode ensejar o reconhecimento de uma exceção à determinação judicial de retorno da criança ao país de residência habitual, para que neste país se resolva a guarda dos filhos, há uma frequência significativa de alegações de violência doméstica pelas mães brasileiras que retornam ao país com seus filhos sem autorização do outro genitor.

As maiores discussões entre os Estados signatários da Convenção residem no fato desse olhar mais atento à violência contra mulheres inviabilizar a devolução da criança ao país de residência habitual no tempo previsto na Convenção, alterando seu foco.

Após a fala do Brasil e de outros países, houve manifestações das delegações a favor da criação de um Grupo de Trabalho-GT para discutir a questão da violência doméstica. Com posições favoráveis mas também contrárias à criação do GT, especialmente por existir um guia de boas práticas sobre o tema publicado pela HCCH, o secretário-geral da Conferência da Haia, de pronto, rejeitou a criação do GT no momento, como produto do 8º Encontro, porque a criação de GTs exige planejamento e orçamento para execução das tarefas, ou seja, por limitações operacionais de acordo com o estatuto que rege o funcionamento da Conferência da Haia.

A posição da delegação brasileira foi a de insistir na necessidade de se considerar a criação do GT temático num futuro próximo, por entender que a proteção da mãe contra os tipos de violência doméstica previstos na Lei Maria da Penha repercute intrínseca e diretamente na segurança da criança.

Como, no Brasil, as mães são as que trazem os filhos ao país sem a autorização dos pais (cerca de 80 por cento dos casos que tramitam no Judiciário são de mães subtratoras), há uma questão de gênero que não pode ser ignorada, seja quando se decide pelo não retorno, baseado na exceção da violência doméstica, seja quando se determina o retorno, para solução da guarda no país de residência habitual. O julgamento sob a perspectiva de gênero foi institucionalizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2022, pela Resolução 492, e, atualmente, compõe o mosaico protetivo da criança e de sua mãe, quando da aplicação da Convenção da Haia de 1980.

Ao final, a Comissão Especial deliberou no sentido de aprovar a proposta do Secretário Geral da Conferência da Haia de constituição de um Fórum que poderá admitir discussões entre os Estados Contratantes da Convenção de 1980 e organizações representativas dos interesses dos genitores e das crianças. O Fórum poderá sugerir a continuidade dos trabalhos da Conferência da Haia acerca desse tema (conforme item 29 do Documento de Trabalho n. 28, da Comissão Especial).

Tal encaminhamento revela, na visão dos Juízes de Enlace brasileiros, medida necessária e imprescindível para o aprofundamento do debate do tema da violência doméstica e da exceção ao retorno da criança ao Estado da sua residência habitual.

Em maio de 2024, será realizado 1º Encontro de Juízes de Enlace da América Latina e Caribe, na cidade do Rio de Janeiro, e a aposta do grupo brasileiro de Juízes de Enlace é de que os debates em torno do tema da violência doméstica sejam profícuos, com aportes que permitam pensar e aplicar a Convenção da Haia de 1980 desde uma perspectiva latinoamericana e caribenha.

*Daniele Maranhão (TRF-1) é desembargadora federal e Juíza de Enlace da 1.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Guilherme Calmon Nogueira da Gama (TRF-2) é desembargador federal e coordenador do grupo nacional de Juízes de Enlace

*Fernando Quadros (TRF-4) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 4.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Inês Virgínia Prado Soares (TRF-3) é desembargadora federal e Juíza de Enlace da 3.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Pedro Felipe Santos (TRF- 6) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 6.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Rogério de Menezes Fialho Moreira (TRF-5) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 5.ª Região para Convenção da Haia de 1980

*Theophilo Antônio Miguel Filho (TRF-2) é desembargador federal e Juiz de Enlace da 5.ª Região para Convenção da Haia de 1980

Opinião por Daniele Maranhão, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Fernando Quadros, Inês Virgínia Prado Soares, Pedro Felipe Santos, Rogério de Menezes Fialho Moreira e Theophilo Antônio Miguel Filho*

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