O direito quando aplicável nas relações familiares, aqui mais especificamente, na relação de um casal, está sempre um passo atrás da dinâmica social orgânica. Não é o ordenamento jurídico que cria fatos na vida de um casal, mas, inversamente, são os acontecimentos da vida comum que exigem do legislador a criação de norma para garantia de direitos e, porque não dizer, deveres de um para com o outro. Leis não são criadas para atender situações familiares imaginárias, mas sim respondem a uma demanda coletiva existente. Não raro o direito está alguns passos mais distantes do que deveria, como a tardia retirada da expressão “mulher honesta” do Código Penal que refletia a indisposição social misógina em proteger também as mulheres que não preenchiam os requisitos de moralidade impostos como ferramenta de controle.
No campo dos direitos de gênero, a Lei Maria da Penha, embora não isenta de adições e melhorias, representa um necessário avanço. Não nos entendam mal, não é motivo de orgulho termos uma lei tão completa inovando nos meios de combate à violência doméstica, já que essa assertividade da redação é consequência das múltiplas e interseccionais formas de violência praticada contra a mulher.
Enquanto cada vez mais nos unimos comunitariamente para erradicar a subjugação da mulher em todas as camadas sociais, a Lei Maria da Penha é valioso instrumento de combate principalmente porque acertadamente dispõe e pune para além da violência física e sexual, acrescentando as violências psicológica, moral e patrimonial. Diferentemente das duas primeiras usualmente conhecidas, as outras três espécies deixam marcas diferentes, nem sempre rastreáveis ou comprováveis.
As postagens em redes sociais (excluídas aquelas de cunho comercial) trazem em sua esmagadora maioria o desejo de pessoas compartilharem o melhor de suas vidas, por vezes até com certa dose de exagero. Todavia, essas mesmas redes sociais ganharam novo impulso e têm sido utilizadas como ferramenta de conscientização tornando-se um recurso providencial para viabilizar denúncias de violências psicológica, moral e patrimonial. É possível observar um movimento de conscientização especialmente acerca da violência patrimonial, sendo comum mulheres perceberem somente após lerem um relato ou um exposed de quem se encontra nessa situação.
Violência patrimonial é classificada na lei como “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos”. Ou seja, ao contrário do senso comum, a violência patrimonial não se resume a prejuízo financeiro pura e simplesmente.
Podemos citar como violência patrimonial o ato de reter o celular da esposa, namorada, companheira etc. Violência dupla nos casos em que o celular pode ainda ser uma ferramenta de trabalho. Quebrar objetos da casa, proibir o uso do veículo comum ao casal, proibir ou coibir que a mulher utilize seus próprios rendimentos da forma que melhor lhe aprouver, fazer investimentos com os recursos comuns do casal sem consulta e anuência da outra parte, tudo isso é violência patrimonial. E como sabido, independe de classe social.
O caso mais comum de violência patrimonial ainda é o abuso sofrido pelas mulheres que se dedicam, exclusivamente ou não, ao trabalho doméstico e são excluídas da administração e usufruto dos recursos do casal, resultado da desvalorização e desqualificação das atividades domésticas enquanto trabalho. Imagine trabalhar uma vida inteira beneficiando a sua família para na separação descobrir que tem direito a nada, ou quase nada...
Essa é a realidade de grande parte da população feminina brasileira, principalmente das gerações anteriores que eram incentivadas a ocupar, quando possível, o lugar prescritivo da “dona de casa”. Diferente do que se poderia imaginar, o aumento de mulheres no mercado de trabalho, não diminui a violência patrimonial enquanto violência doméstica, já que com as mudanças dos arranjos sociais as opressões também se moldam aos novos formatos. O alerta deve ser constante.
Ainda hoje é comum a mulher tardiamente descobrir que o patrimônio que pensou estar construindo com seu parceiro foi liquidado em investimentos ruins ou utilizado para finalidades que não eram do seu conhecimento; em vez do fruto de uma vida inteira, o que essa mulher recebe são dívidas e desamparo.
O fim da violência patrimonial não depende tão-somente de leis ou do peso da punição legal. A conscientização e até mesmo a represália social verificável nas interações (civilizadas) do mundo digital manda uma mensagem importante de intolerância para com agressores. A violência doméstica patrimonial não só ofende como vulnerabiliza a mulher, sendo muito importante não minimizar, subestimar, essa dor e sobretudo: falar.
Enquanto houver meios para denúncia teremos caminhos seguros de apoio e luta.
*Luiz Kignel e Thaís da Costa são, respectivamente, sócio e advogada da área de Família do PLKC Advogados