No início de março, escrevi um artigo sustentando a necessidade de o Congresso entrar em campo e corrigir a distorção provocada pela retomada do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). À época, o tema era tratado via medida provisória pelo governo federal e já provocava polêmica. Antes do recesso de julho, a Câmara deu um passo importante e agora a bola está com o Senado, que, na retomada dos trabalhos, já apontou o assunto como uma das prioridades das próximas semanas.
As mudanças no Carf estão detalhadas no Projeto de Lei (PL) 2.384/2023. Só a alteração na forma de tramitação da proposta já demonstra o tamanho da contenda em cena. A restauração do voto de Minerva pró-governo estava prevista na MP 1.160, lançada em janeiro como parte do pacote fiscal do Ministério da Fazenda. Em abril, sem força no Congresso para manter a iniciativa, o governo teve de recuar e aceitar transformar o texto em um projeto de lei, que agora está sendo ajustado pelos parlamentares.
O foco do embate está na devolução à Fazenda Nacional do poder de desempatar julgamentos de processos administrativos sobre dívidas tributárias. O Carf é um órgão vinculado ao Ministério da Fazenda que tem a missão de julgar contestações nas áreas tributária e aduaneira (importação e exportação). Composto por conselheiros e dividido em turmas e em câmaras inferiores e superior, o tribunal analisa processos administrativos nos quais empresas que se sentiram prejudicadas questionam cobranças feitas pelo Fisco. Os conselheiros são, de forma paritária, representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes, indicados por confederações econômicas e entidades de classe.
A questão é que os julgamentos são sempre presididos por um representante da Fazenda Nacional. Ou seja, na última instância de julgamento de questões tributárias na administração federal, a tendência de desempate será sempre favorável à União. Embora o Carf não faça parte do Judiciário, são esperadas desse órgão decisões técnicas e imparciais, proporcionando segurança jurídica e jurisprudência sólida. E o voto de Minerva, que vigorou até 2020, mina esse princípio.
Compreendendo a distorção, o governo passado tentou reverter o quadro. A Lei 13.988/2020, sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro, previa que, em caso de empate no Carf, o contribuinte teria ganho da causa, retirando da Fazenda Nacional a prerrogativa de dar o voto decisivo nos julgamentos. É essa regra que a atual gestão busca reverter, primeiro por meio da MP e agora por meio do PL.
No início de julho, a Câmara deu importante contribuição fazendo alterações na redação em favor do contribuinte. Aprovada em plenário, a nova versão do PL, um substitutivo do relator, deputado Beto Pereira (PSDB-MS), barra a cobrança de multas e juros do contribuinte no caso da aplicação da metodologia de desempate. Além disso, ele poderá parcelar o valor apurado e terá a possibilidade de utilizar precatórios e créditos obtidos a partir de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL. E a Receita Federal não poderá representar ao Ministério Público por crime tributário. As novidades vão valer para os casos já julgados pelo Carf e ainda pendentes de análise pelo Tribunal Regional Federal competente na data em que a lei entrar em vigor.
Há outras boas mudanças promovidas na redação do PL, como a redução no valor de multas, mas o essencial permaneceu: a retomada do voto de qualidade. Por princípio, o voto de Minerva dado por uma das partes em uma contenda já é questionável. Estudos do Insper e da Fundação Getulio Vargas e dados do Carf e do próprio governo já demonstraram que a União obtém vitórias esmagadoras quando o voto de peso duplo é aplicado.
Se é inegável que o voto de qualidade beneficia a Fazenda Nacional em detrimento do contribuinte, o cenário é ainda mais preocupante quando o governante de plantão vê nas decisões do Carf uma forma de reforçar o caixa. E isso está claro desde as primeiras declarações da atual gestão a respeito do tema em janeiro. O governo não esconde que a meta é viabilizar aumento bilionário na receita, tanto que a medida foi anunciada dentro de um pacote de ajuste fiscal na largada do mandato.
Ora, o Carf deveria ser visto como um órgão estritamente julgador, e a arrecadação deveria ser um problema apenas da Receita e da Fazenda. É por isso que o Senado pode, agora, dar mais um passo para frear esse ímpeto. Seria um gol a ser comemorado pela torcida (no caso, o contribuinte e todos os interessados no dinamismo da iniciativa privada) se os senadores incluíssem no projeto de lei algum mecanismo capaz de restringir a pressão arrecadatória embutida no voto de qualidade e, com isso, prestigiar o princípio da justiça tributária.
*Francisco Gaiga, advogado tributarista