O advogado criminalista e professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo Maurício Zanoide de Moraes acreditava que apenas as conversas de WhatsApp entre o grupo de oito empresários investigado no inquérito sobre as milícias digitais não justificariam o decreto de busca e apreensão autorizado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, no dia 23 de agosto. Mas, depois de ler as 32 páginas da decisão do ministro, Zanoide de Moraes concluiu que não havia outro meio eficaz para apurar se houve ou não prática dos delitos investigados.
A busca e a apreensão dos celulares e dos dados armazenados em nuvens, além da quebra de sigilo dos acusados, eram necessários, segundo ele. O criminalista manteve, porém, uma ressalva: a decisão de bloqueio das contas bancárias dos envolvidos não “teria lastro suficiente”. Para ele, essa decisão só se justificaria após a apuração determinar o que houve de fato, se os crimes foram praticados ou se tudo não passou de bravatas entre os empresários no aplicativo. Leia, a seguir, a entrevista concedida ao Estadão:
A decisão do ministro Alexandre de Moraes mostra que a Polícia Federal considerou que o empresário José Koury, dono do Shopping Barra World, forneceu aos investigadores o principal argumento para se fazer as buscas. Pelas mensagens, Koury teria proposto ao grupo pagar bônus a todos os funcionários de suas empresas para garantir votos para Jair Bolsonaro. Também teria prometido comprar bandeiras e distribuí-las, o que poderia configurar compra de votos e financiamento ilícito de campanha. Diante disso, a busca não poderia ter se circunscrito a ele em vez de abranger os demais investigados?
Os crimes que estão sendo investigados são cinco: incitação ao crime, formação de quadrilha, organização criminosa, golpe de estado e abolição violenta do estado democrático de direito. Em uma investigação é preciso verificar a quem uma medida cautelar deve ser dirigida e quais medidas são necessárias. Você está me fazendo uma pergunta sobre o aspecto subjetivo, que é importante. Ou seja, a quem a medida devia se dirigir. Uma ação cautelar tem um conteúdo objetivo, que é o que fazer e quais os limites do que vai se fazer, e outro subjetivo, que é a quem se dirige, quem vai sofrer. Ele (Alexandre de Moraes) precisava dirigir contra as pessoas envolvidas nos cinco crimes. Se ele investiga uma organização criminosa e outros falam abertamente de golpe, mas não falam em tomar providências para executá-lo, o espectro de pessoas que ele escolheu são todos aqueles que ou se manifestaram de maneira favorável, aderente a um golpe de estado ou de qualquer modo propuseram algum tipo de comportamento, como o Koury. Dentro da visão de que estamos falando em uma organização para a prática de crimes, limitar aos 8 empresários e não a todos os que participavam do grupo (cerca de 200 empresários) já foi uma limitação razoável. Esse corte que ele fez foi ponderado. Ele pegou só as pessoas que efetivamente se manifestaram.
Mas as provas eram suficientes para tomar a decisão de se fazer as buscas?
Voltemos à questão dos elementos de prova. As informações que ele (Moraes) tinha e, ao que parece na decisão, são só mesmo as conversas das reportagens do site Metrópoles. Ele cita outros inquéritos, mas não indica nenhum tipo de elemento de que essas pessoas teriam reiterado qualquer coisa que tenham participado. A base probatória dele, o que ele chama de indícios, são as conversas que não foram negadas. Nenhuma pessoa buscou a imprensa para dizer que não falou aquilo. Enfim, ele (Moraes) diz que as pessoas sabiam e anuíram. Ele (Moraes) escolhe algumas medidas cautelares de captação de elementos de prova, de busca e apreensão. E toma uma providência que é, em relação ao bloqueio das contas, que, para mim, é uma coisa diferente.
Por quê?
Estamos falando de crimes que estariam sendo planejados na internet, por meios virtuais. Esse tipo de lugar novo de cometimento de crimes exige medidas de investigação próprias para esses lugares novos. Não há como investigar um crime que acontece nas redes sociais apenas no mundo real. Quais são então as medidas de busca de obtenção de provas? A busca e apreensão dos aparelhos celulares e a busca e apreensão das informações contidas no espaço virtual, armazenadas em nuvens. E aí uma coisa é você interceptar conversas, outra coisa é buscar e apreender conversas escritas ou gravadas em mensagens pelo WhasApp. Elas são dados que permanecem, como se fossem bilhetes ou cartas, enfim. Então isso pode ser buscado e apreendido. O delegado diz na representação que quer os celulares para saber o contexto da conversa e pede o direito de apreender eventuais registros ou informações que estejam no icloud. Para isso, ele pede uma ordem específica. Crimes que são cometidos dentro do contexto da internet, o material para ser verificado se ele aconteceu ou não, é nesse lugar virtual mesmo que se deve verificar. Se ele chamasse as pessoas e perguntasse ou chamasse testemunhas não ia ter a mesma eficácia de pegar o contexto das conversas, alguns dias antes e depois para entender como as pessoas conversam ali. Existe uma razão para fazer isso. A busca e apreensão do aparelho celular para ter acesso ao seu conteúdo seria útil à investigação, dentro da perspectiva de que ‘estou investigando’, é uma medida lógica.
E as outras medidas, como a suspensão da comunicação deles pelas redes sociais e o bloqueio das contas bancárias dos envolvidos?
Vamos falar dessas medidas, que são preventivas, e não são de busca de prova. Nesse aspecto, eu sou capaz de imaginar que uma faça sentido dentro do contexto, embora ela seja muito grave no mundo de hoje (o bloqueio das contas nas redes sociais). A segunda, o bloqueio das contas, eu confesso que tenho dificuldade de entender isso como medida preventiva. A suspensão da comunicação das pessoas por meio de redes sociais até se justifica como medida preventiva dado que os fatos que estavam acontecendo se davam por meio dessas redes. Seria mais ou menos como uma pessoa que comete crime em estádio de futebol ser impedida de ir ao estádio enquanto se apura seu caso. É uma medida preventiva para evitar que a pessoa frequente o mesmo ambiente ou tenha o mesmo imput circunstancial para repetir a sua conduta. Trata-se de medida cautelar diversa da prisão e que limita a atuação da pessoa naquele ambiente. Com relação à outra medida preventiva, o bloqueio das contas bancárias, aí, se prestar atenção nesse capítulo da decisão, ele (Moraes) usa a possibilidade, disse que decreta o bloqueio das contas para evitar a possibilidade do financiamento. Isso eu achei que, talvez, tenha sido um ato além do que as circunstâncias e os elementos obtidos até aquele momento justificassem.
E a quebra do sigilo bancário dos acusados?
A quebra do sigilo bancário era para saber se as movimentações estavam condizentes com o financiamento de atos ilícitos. Olhar os registros bancários do passado tem a ver com uma conduta que se está investigando. Se a pessoa está dizendo que vai fazer isso, talvez, ela já tenha começado o financiamento. Ele (Moraes) pede os dados bancários do passado para investigar. Mas, quando se pede o bloqueio das contas bancárias, está se tomando uma atitude para o futuro, uma atitude invasiva, levando-se em consideração que eles são pessoas economicamente ativas. Está se fazendo isso por uma conclusão, para que se evite a possibilidade do financiamento, o que parece uma coisa um tanto distante. Ela não está ligada à linha inicial da investigação dos fatos, mas à vedação de comportamentos futuros. Bloquear as contas bancárias da pessoa por uma possibilidade, eu tenho críticas a essa parte da decisão. As medidas para frente me parecem que, talvez, não devessem ser determinadas nesse momento. Isso me parece que foi excessivo. Isso extrapolou. A medida necessitava de mais consistência probatória do que as mensagens que foram examinadas.
Temos uma situação diversa da que se imaginava na semana passada? A investigação devia acontecer, mas o problema era saber se havia razões para a busca e apreensão. Pelas hipóteses das investigações, justifica-se então a apreensão de celulares como forma de se chegar à verdade dos fatos?
Mais do que a verdade, eu diria que se justifica para saber se aquilo que se falava era bravata, conversa sem nenhum possibilidade de executar aquilo ou se realmente já era uma reiteração de comportamento ou desdobramento de comportamento. A investigação, portanto, desse contexto mais amplo, justificava-se. As medidas para investigar se justificavam. Olhando para trás. Porque o meio só foi aquele, o das redes sociais. Não se reuniram em algum lugar, como era no passado, em que as pessoas faziam reuniões secretas para discutir planos contra regimes políticos. Era virtual. Dentro da investigação, a grande pergunta é: como eu vou apurar esse tipo de crime se eu não tiver acesso às conversas? Então, faz sentido, é o meio eficaz de você realmente poder apurar se os envolvidos estavam cometendo crime ou não. E os dados bancários verificam o contexto do passado. Eu não determinaria a quebra de todos, mas, talvez, só das pessoas que se manifestaram, concordaram e falaram em financiamento. Mas, olhando para trás para saber se coisa se efetivou. No Brasil, falta uma teoria e uma lógica que determine como deve ser uma investigação para orientar a quem vai apurar um delito. A autoridade policial tem de relacionar a conduta, o ato praticado, e dizer a quais crimes ela se encaixa. E por que ele tem de fazer isso de largada? Porque todas as medidas de investigação que ele vai tomar dependem de qual crime ele está investigando. O que o delegado define na portaria de inquérito policial mostra se existe coerência entre o que ele está investigando e o que ele está pedindo. Por exemplo, só faz sentido pedir a quebra de sigilo bancário em um crime de homicídio se o agente que matou foi remunerado para isso. Por isso, o inquérito tem de começar com um fato que seja aparentemente crime para definir como será investigado.