BRASÍLIA - Isolado no Palácio do Planalto após a derrota eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro (PL) agiu para nomear aliados em cargos estratégicos do governo. Parte deles terá até mesmo poder de investigar a conduta do primeiro escalão durante o mandato do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). É o caso do ministro da Secretaria de Governo, Célio Faria Junior, e do advogado João Henrique Nascimento de Freitas, chefe da Assessoria Especial de Bolsonaro, designados na sexta-feira para integrar por três anos a Comissão de Ética Pública da Presidência.
Os dois foram nomeados por decreto, a 44 dias de Bolsonaro deixar o Palácio do Planalto. Na prática, integrantes da Comissão de Ética podem apontar conflitos de interesse envolvendo ministros e até recomendar a exoneração de servidores por violação de conduta.
Na reta final do mandato, Bolsonaro descobriu um caminho para fustigar Lula. Ele também indicou diretores e ouvidores para agências reguladoras, além de diplomatas para embaixadas e consulados. Acelerou, por exemplo, a nomeação para o cargo de chefia das representações consulares em Londres, no Reino Unido, e em Orlando, nos Estados Unidos. Ambos são considerados importantes por integrantes da equipe de Lula.
O vice-consulado em Orlando, aberto por Bolsonaro em junho, foi entregue à conselheira Marcela Braga, assessora da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Marcela foi uma das diplomatas promovidas recentemente pela atual cúpula do Itamaraty, passando à frente de colegas mais experientes.
Gabinete do ódio
Os decretos da Comissão de Ética Pública foram publicados há quatro dias no Diário Oficial da União. Servidor civil da Marinha, o economista Célio Faria Junior é um dos mais próximos auxiliares de Bolsonaro. Chefiou a Assessoria Especial e o gabinete do presidente no Planalto. É visto como um colaborador da ala ideológica conservadora, avesso à imprensa, e chegou a ser apontado como um dos integrantes do “gabinete do ódio”.
João Henrique Nascimento de Freitas, por sua vez, é ligado ao senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), com quem trabalhou por sete anos na Assembleia Legislativa do Rio. Foi alvo de investigação na denúncia sobre um esquema de rachadinha no gabinete do então deputado estadual, revelado pelo Estadão. No governo, atuou como presidente da Comissão de Anistia e assessorou o vice-presidente Hamilton Mourão, inclusive com assento no Conselho Nacional da Amazônia.
A Comissão de Ética Pública pode ser uma pedra no sapato de qualquer governo. Em dezembro de 2011, por exemplo, no primeiro ano do mandato da então presidente Dilma Rousseff, o ministro do Trabalho Carlos Lupi pediu demissão após receber uma advertência do órgão por denúncias de cobrança de propina e irregularidades em convênios com ONGs. Lupi sempre negou as acusações.
Órgão consultivo
Criada durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, em 1999, a comissão é um órgão consultivo. Todos os atuais sete integrantes foram indicados por Bolsonaro. Compete ao colegiado zelar pela aplicação do Código de Conduta da Alta Administração Federal, analisar casos de potencial conflito de interesses e desvios de ocupantes de cargos de confiança, inclusive durante as eleições. O grupo tem acesso a dados sigilosos de patrimônio dos integrantes do primeiro escalão do governo.
O colegiado também vai decidir se os ministros de Bolsonaro deverão cumprir quarentena por até seis meses antes de exercer outras atividades profissionais. No caso dos novos conselheiros, há pouco o que fazer, segundo integrantes do gabinete de transição. Nomeados por decreto, eles não passam pelo crivo do Congresso e só podem ser substituídos em caso de renúncia. O mandato é de três anos.
A lei determina que a comissão seja integrada por “brasileiros que preencham os requisitos de idoneidade moral, reputação ilibada e notória experiência em administração pública”. Eles não recebem remuneração, uma vez que o trabalho é considerado como “prestação de relevante serviço público”.
Reformulação
No gabinete de transição, o grupo ligado aos órgãos de controle deve discutir uma reformulação da Comissão de Ética Pública. Há uma avaliação de que o colegiado perdeu protagonismo e não atuou em casos relevantes durante o mandato de Bolsonaro. A preocupação da equipe de Lula é a de que a comissão passe a “perseguir”, indo “da omissão ao excesso”.
Ontem, a comissão indicou haver conflito de interesses em consultas de ministros como Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência) e Daniel Duarte Ferreira (Desenvolvimento Regional), além do secretário do Tesouro, Esteves Colnago, do secretário Nacional de Portos e Transportes Aquaviários, Diogo Piloni e Silva, do diretor-presidente da Valec, André Kuhn, e da secretária de Articulação e Promoção da Ciência, Christiane Corrêa, braço direito do ex-ministro de Ciência, Tecnologia e Inovações e senador eleito por São Paulo, Marcos Pontes. Eles deverão cumprir a quarentena.
Além disso, o órgão optou por instauração de procedimento de apuração sobre o ex-presidente da Caixa Pedro Guimarães, por denúncias de assédio sexual, e o assessor internacional da Presidência Filipe Martins, por suposto gesto racista. O ex-presidente da Fundação Cultural Palmares Sérgio Camargo, acusado de assédio moral e discriminação a religiões, recebeu censura ética.
Agências
Bolsonaro também enviou ao Senado para avaliação os nomes de sete diretores e cinco ouvidores de agências reguladoras. As indicações, fruto de apadrinhamento político, envolvem as cúpulas da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Agência Nacional de Mineração (ANM), Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
O Estadão apurou que, assim como fizeram com as indicações para as embaixadas, o PT avalia recorrer ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para que segure a votação de indicados de Bolsonaro. Parte das sabatinas deve ocorrer amanhã, com nomes para Antaq, ANTT e ANPD.
Relações exteriores
O Senado convocou um esforço concentrado para avaliar indicações nesta semana. Na Comissão de Relações Exteriores (CRE) há 21 sabatinas pendentes, de diplomatas já indicados por Bolsonaro. Nove ainda não foram encaminhados à comissão, o que deixa o processo em suspenso.
O Estadão apurou com integrantes do gabinete de transição que há um acordo nos bastidores com o Senado e o Itamaraty para que as sabatinas sejam destravadas a partir de hoje, mas comecem por postos de menor expressão política como FAO, Unesco, Tunísia, Mauritânia, Guiné Equatorial, Sudão e Jordânia. Já embaixadas consideradas estratégicas, como Buenos Aires, Paris, Organização Mundial do Comércio (OMC), Roma e até Santa Sé, não devem ser votadas sem o aval de Lula.
“O governo possui legitimidade para indicar, é o que define a Constituição. Mas essa indicação deve observar o contexto, não é vale-tudo. Algumas, como as de embaixador, podem implicar altos custos para ajuste posterior. É importante priorizar a prudência e o diálogo”, disse o senador Jean Paul Prates (PT-RN), integrante do governo de transição.
Consulados
A chefia do consulado em Londres foi entregue por Bolsonaro ao embaixador João Alfredo dos Anjos Junior, atualmente assessor especial da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), comandada pelo almirante Flávio Rocha. Será o primeiro posto dele de chefia no exterior. Apesar de servir no Planalto, o embaixador não é visto como um bolsonarista. Durante a gestão do ex-ministro Ernesto Araújo, ele chefiou a Assessoria de Imprensa do Gabinete e foi subchefe da Assessoria de Relações Federativas e com o Congresso Nacional.
Diferentemente das missões diplomáticas permanentes, as chefias de repartições consulares podem ser definidas por decreto pelo presidente da República. No caso das embaixadas é necessário aval do Legislativo.
Além de Londres e Orlando, haverá mudanças em ao menos mais dois consulados imediatamente. O embaixador Francisco Carlos Soares Luz vai trocar de posto. Cônsul-geral em Lagos, na Nigéria, ele foi removido para Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia.
A troca na chefia do consulado-geral em Madri envolve uma colaboradora direta de Amorim. A embaixadora Gisela Padovan, ex-assessora do chanceler durante o governo Lula, foi removida para a Secretaria de Estado em Brasília. No lugar dela assumirá a embaixadora Vera Cíntia Álvarez, atualmente representante do Brasil na Guatemala.
Além do apreço de Amorim até hoje, Padovan traz no currículo a direção do Instituto Rio Branco, em 2018, e experiências pregressas em missões de prestígio na diplomacia, nas Nações Unidas, em Nova York, em Buenos Aires e Washington.
Como o Estadão mostrou, o PT agiu para evitar que o Senado aprovasse às pressas embaixadores escolhidos por Bolsonaro, cujas sabatinas estão pendentes. O PT quer embaixadores escolhidos por Lula na linha de frente e em cargos considerados estratégicos.
A transição envolve nomes da cúpula do Itamaraty, inclusive o futuro do chanceler Carlos França, que telefonou ao ex-ministro Celso Amorim, principal conselheiro de Lula para a política externa e mais longevo titular do ministério. Amorim indicou que a equipe petista avaliará os embaixadores caso a caso sem “espírito de perseguição”.
Já houve a primeira conversa presencial entre os dois lados, em São Paulo. Do lado petista fala-se em boa disposição para diálogo. Segundo diplomatas que despacham na Secretaria de Estado, em Brasília, França teria saído insatisfeito da tratativa. Auxiliares do chanceler afirmam reservadamente que o atual ministro havia sinalizado interesse em ser designado embaixador em Londres. O cargo, porém, pode ser endereçado a outro ex-titular das Relações Exteriores, o embaixador Antônio Patriota, atualmente no Cairo, Egito. Lula viajou ao país para participar da Cúpula do Clima (COP-27). Diplomatas dizem que, além de ter bagagem, Patriota está “no lugar certo, na hora certa”.
A Presidência da República e o Itamaraty não esclareceram se haverá mais substituições na rede consular. O Ministério das Relações Exteriores informou apenas que a nomeação é competência legal do presidente da República. Questionado o gabinete de Lula havia sido consultado, o Itamaraty disse que segue a legislação em vigor e que “está em contato constante com a equipe de transição sobre todos os assuntos pertinentes, com total transparência”. O Palácio do Planalto não se manifestou sobre os decretos de Bolsonaro.