O presidente Jair Bolsonaro (PL) pode ter cometido infração eleitoral ao mesclar as celebrações oficiais do bicentenário da Independência à campanha para promover sua candidatura à reeleição, supostamente infringindo a Lei da Ficha Limpa e a Lei Eleitoral. Durante discursos em meio a uma série de eventos por ocasião da data cívica em Brasília e no Rio de Janeiro, o chefe do Executivo repetiu slogans de campanha e pediu votos. “Vamos todos votar, vamos convencer aqueles que pensam diferente de nós, vamos convencê-los do que é melhor para o nosso Brasil”, disse.
O especialista em Direito Eleitoral Fernando Neisser afirmou ao Estadão que a atitude de Bolsonaro pode configurar abuso de poder econômico, uma vez que o presidente se beneficiou da estrutura pública montada para os desfiles cívico-militares. “Ele usa a função de presidente da República e recursos financeiros do Estado para desviar um evento que deveria ser institucional e público para fins indiscutivelmente eleitorais. Ele fez discurso político, falou da própria campanha, falou de adversários. Todos os elementos para caracterizar esses atos como eleitorais aparecem ali”, disse.
O glossário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) define como abuso de poder econômico “a utilização excessiva, antes ou durante a campanha eleitoral, de recursos materiais ou humanos que representem valor econômico, buscando beneficiar candidato, partido ou coligação”. O fato que suscita o enquadramento de Bolsonaro nessa definição é o uso da estrutura de evento público oficial, caso do 7 de Setembro.
O local exato dos discursos pode ser determinante para o julgamento de eventual ilícito pelo presidente e causa controvérsia entre os especialistas. “Se ele estivesse em evento oficial ou se utilizando de estrutura custeada pelo Poder público, se constituiria abuso”, disse o advogado Hélio João Pepe de Moraes, sócio do SGMP Advogados . “Mas o fato de ele ter discursado no 7 de Setembro, em palanque privado, não.”
O advogado e professor de direito constitucional Lênio Streck, que faz parte do grupo Prerrogativas, afirma que não é possível desvincular o presidente do candidato, mesmo que o chefe do Executivo tenha partido para um palanque privado logo após o fim do desfile. “O candidato traz consigo toda a máquina pública, toda a segurança, é impossível desindexar isso”.
Eis o que diz a Lei da Ficha Limpa sobre abuso de poder econômico:
Os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes.
Especialistas também apontam abuso de poder político, uma vez que ele teria usado sua posição como presidente da República para se beneficiar eleitoralmente da ocasião. Por dispor do cargo de chefe do Executivo, Bolsonaro usufruiu de um grau de exposição no evento que outros candidatos não teriam.
Segundo Neisser, atos de abuso justificam cassação de mandato ou impugnação de candidatura de acordo com a gravidade. A legislação não é precisa sobre o que pode ser considerado grave, mas um dos elementos que guiam a jurisprudência nessa interpretação é a repercussão do ocorrido. No caso de Bolsonaro, como aponta o advogado, o fato foi acompanhado por centenas de milhares de cidadãos. Outro fator levado em consideração pela jurisprudência é o quão responsável pelo ato ilícito foi o candidato. É considerado menos grave se a atitude for tomada por terceiros, como integrantes de sua campanha, por exemplo, e não por ele diretamente, como ocorreu em alguns casos (a exemplo de manifestações da plateia).
O advogado especialista em direito eleitoral Sidney Neves afirma que, em tese, diante de processos semelhantes já julgados pela Justiça Eleitoral, o presidente poderia ser punido por abuso de poder econômico. “Não é vedado que o candidato compareça a um evento institucional, mas há limitações. Quando há pedido de voto, diante da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, é possível, sim, que seja enquadrado”.
“A figura do presidente da República demanda gasto com aparato de segurança, deslocamento (...) O 7 de Setembro demanda gastos das aeronaves, os tanques que vão às ruas, aquela mobilização de tropas para a apresentação militar”, afirma Neves, acrescentando que o presidente Bolsonaro teria, em tese, que explicar o uso desse aparato com fim eleitoral.
Além de abuso de poder, a atitude do presidente pode contrariar, a depender da interpretação dada em eventual julgamento, o artigo 73 da Lei Eleitoral, incisos I e II. Eis o que diz o texto:
São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:
I - ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a realização de convenção partidária;
II - usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram.
Como mostrou o Estadão, partidos acionaram o TSE contra uso o político do 7 de Setembro por Bolsonaro. O PDT de Ciro Gomes apresentou à Corte uma denúncia apontando abuso de poder econômico e político na manhã desta quinta-feira. Se o tribunal julgar o mérito e considerá-lo culpado, o presidente pode se tornar inelegível por 8 anos. Se for vitorioso na eleição, ele pode ser cassado e perder o mandato. Nesse caso, um novo pleito seria convocado.
Procurados, o Palácio do Planalto e o PL, partido de Bolsonaro, não se manifestaram.