A troca de presentes valiosos, como os que o entorno do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tentou vender, é comum em protocolos diplomáticos. Mas existem regras que disciplinam o tratamento a ser dado a esses objetos. A Polícia Federal vê indícios de que Bolsonaro e assessores podem ter descumprido essas normas e praticado o crime de peculato, quando um agente público usa o cargo para obter ou desviar bens públicos.
Em primeiro lugar, um presidente recebe presentes como representante do País, e não como “pessoa física”. Os casos em que os objetos que ele ganha podem ser levados, sem serem destinados ao acervo público da Presidência, são muito específicos.
A principal referência sobre os critérios é um entendimento fixado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) ao analisar diferentes leis e decretos em 2016. O tribunal decidiu que os presentes recebidos em agendas e viagens oficiais devem ser incorporados ao patrimônio da União.
Há exceções para os “itens de natureza personalíssima”. Como exemplo, o TCU citou “medalhas personalizadas, bonés, camisetas, gravata, chinelo e perfumes”. Para que um presidente possa ficar com o material, é preciso que seja algo pessoal e também que tenha um valor baixo.
O relator do caso à época, ministro Walton Alencar, deixou claro que joias preciosas não poderiam ser consideradas “personalíssimas”. “Imagine-se, a propósito, a situação de um Chefe de Governo presentear o Presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do Presidente”, afirmou no voto.
Em março deste ano, após vir à tona a tentativa de Bolsonaro reaver joias de valor milionário dadas pela Arábia Saudita, o TCU determinou a devolução de objetos. No julgamento, o presidente do tribunal, ministro Bruno Dantas, ressaltou que “o baixo valor” também é uma condicionante a ser observada.
Bruno Dantas, presidente do TCU
Na operação Lucas 12:2, deflagrada nesta sexta-feira, 11, a Polícia Federal apontou que além de ter vendido - e depois recomprado - um relógio de alto valor, o entorno do ex-presidente também tentou vender esculturas douradas de um barco e de uma palmeira e um conjunto de joias com anel, abotoaduras e rosário islâmico. Um Rolex e um outro relógio de luxo, da marca Patek Philippe, foram vendidos por US$ 68 mil, cerca de R$ 332 mil na cotação da época.
Segundo a investigação, Bolsonaro recebeu valores oriundos das negociações realizadas por aliados em dinheiro vivo, o que pode configurar crime de peculato. A polícia vasculhou endereços ligados ao advogado Frederick Wassef e ao general Mauro Cesar Lourena Cid, pai do ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid, apontou indícios de que Bolsonaro estaria envolvido no esquema de venda de presentes.
Tanto os episódios investigados pela operação desta sexta-feira quanto o caso das joias que o Estadão revelou em março têm em comum o fato de que presentes recebidos por Jair Bolsonaro durante compromissos oficiais não foram cadastrados pela Comissão Permanente de Valoração de Bens Móveis (CPVBM/PR), vinculado à Presidência, nem incorporados ao patrimônio público da União.
O cadastramento dos objetos, uma das exigências do decreto nº 4.344/2002, também é uma proteção contra eventuais tentativas de oferta de presentes ao chefe do Executivo em troca de favores.
O caso das joias de março é investigado pela Polícia Federal em Guarulhos, local em que foram retidas. Já a operação de sexta-feira está vinculada ao inquérito das milícias digitais e foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Nas duas situações, Bolsonaro é investigado, mas não é réu. No final das apurações, o Ministério Público pode ou não denunciá-lo para que ele vá ao banco dos réus, dependendo da interpretação que fizer das provas colhidas.
O que é peculato?
A conduta de Bolsonaro, segundo as investigações, poderia ser enquadrada como peculato. Como explica o criminalista André Lozano, sócio do Lozano Barranqueira Advocacia e mestre em Direito Penal pela PUC-SP, “o crime de peculato acontece quando um funcionário publico subtrai um bem que está em poder dele em razão do cargo”. A pena prevista no Código Penal é de dois a doze anos de prisão.
De acordo com o advogado, o motivo das investigações é o fato de que os presentes que Bolsonaro recebeu durante as agendas oficiais são do cargo, e não da pessoa física. “Quando são dados presentes dessa magnitude a um chefe de Estado, não é para a pessoa, e sim, para o cargo.”
Um dos objetos investigados na operação da PF desta sexta é um conjunto de joias que esteve à venda em um site de leilões virtuais por R$ 120 mil. O relógio da marca Rolex recomprado por Frederick Waasef para ser devolvido ao Tribunal de Contas da União custou mais de R$ 300 mil ao advogado.
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Motivos de presentes podem levar a outros crimes
Lozano aponta para a possibilidade de outro crime ser incluído no rol de investigações da Polícia Federal - corrupção passiva. Isso porque, nas conversas que PF interceptou entre Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e o pai, o general Lourena Cid, há a menção ao fato de as estátuas e outros bens de alto valor não terem documentos. Nos e-mails do ex-ajudante de ordens aos quais a CPI do 8 de Janeiro teve acesso, ele tenta vender um relógio da marca Rolex, mesmo modelo do que foi recomprado por Wassef, sem documentação.
“Pelas normas de Direito Internacional, a cessão também precisa ser registrada pelo país que deu as joias”, explica Lozano. “Se não há registro, é necessário verificar o motivo de ele não ter sido feito.”
Para que o crime de corrupção passiva esteja caracterizado há outros requisitos. “Seria necessário demonstrar que esse presente recebido foi, em verdade, uma contraprestação a algum ato praticado pelo servidor público em favor do doador do presente”, pondera Pedro Paulo de Medeiros, também advogado criminalista e pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. O texto do Código Penal usa a expressão “vantagem indevida”.
Contas à disposição
A banca de advogados que defende Jair Bolsonaro divulgou uma nota após a operação da PF. O texto nega quaisquer crimes e diz que as contas do ex-presidente estão à disposição da Justiça.
“A defesa do presidente Jair Bolsonaro voluntariamente e sem que houvesse sido instada, peticionou junto ao TCU — ainda em meados de março, p.p. —, requerendo o depósito dos itens naquela Corte, até final decisão sobre seu tratamento, o que de fato foi feito”, diz a manifestação assinada por Paulo Amador da Cunha Bueno, Daniel Bettamio Tesser e Fábio Wajngarten.