Principal aposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições municipais deste ano, o deputado Guilherme Boulos (PSOL) chega ao dia de votação do primeiro turno carregando não apenas o desafio de garantir um lugar na segunda etapa da disputa pelo comando da Prefeitura de São Paulo, mas também toda uma expectativa sobre o futuro da esquerda na maior cidade da América Latina.
Essa avaliação é compartilhada por cientistas e analistas políticos ouvidos pela reportagem. Caso o candidato do PSOL não vença a eleição, seu nome poderá sofrer um desgaste semelhante ao que ocorreu com sua vice, Marta Suplicy (PT), que, após governar a cidade (2001-2004), perdeu duas eleições para a Prefeitura: em 2004, para José Serra (PSDB), e em 2008, para Gilberto Kassab (DEM, à época). Além disso, se Boulos não alcançar o segundo turno – um cenário considerado menos provável, mas ainda assim não desprezado por completo – isso poderia marcar o colapso definitivo, ou quase definitivo, da esquerda na cidade.
O entorno de Boulos refuta a ideia de que o candidato não seguirá para a próxima etapa do pleito, argumentando que Lula obteve a maioria dos votos na capital paulista na última eleição presidencial. Também afirmam que, devido ao perfil eleitoral de São Paulo, é improvável que não haja um candidato de esquerda no segundo turno. O histórico da cidade reforça essa tese: desde 1988, quando Luiza Erundina (PT, à época) venceu Paulo Maluf (PJ, à época), todas as disputas tiveram um representante da direita e outro da esquerda no segundo turno. A única exceção foi em 2016, quando João Doria (PSDB, à época) venceu no primeiro turno.
Apesar da confiança de que vai estar no segundo turno, a campanha do PSOL tem enfrentado desafios. Boulos lida com pressões tanto de seus apoiadores, que durante a campanha chegaram a exigir uma postura mais combativa contra o candidato Pablo Marçal (PRTB) – o que resultou na convocação de um ato em defesa da democracia na Praça Roosevelt –, quanto de adversários que buscam desestabilizá-lo.
Ricardo Nunes (MDB), o prefeito que tenta a reeleição, tem trabalhado para reforçar a imagem de radical associada a Boulos, explorando seu histórico como líder do movimento dos sem-teto. Ao mesmo tempo, Marçal passou parte da campanha tentando vincular o candidato de Lula, sem provas, ao consumo de drogas. As acusações do ex-coach levaram Boulos a apresentar um exame toxicológico durante o último debate. O clímax desse embate ocorreu às vésperas da eleição, quando Marçal divulgou um laudo falso, alegando que Boulos teria sido internado por abuso de cocaína.
Em resposta ao post de Marçal, Boulos iniciou uma transmissão ao vivo no Instagram, afirmando que o documento divulgado por seu adversário é falso e que o dono da clínica mencionada, Luiz Teixeira da Silva Júnior, seria um apoiador de Marçal. Neste sábado, 5, uma perícia realizada pela Polícia Civil confirmou que o documento publicado pelo candidato do PRTB é falso. Marçal chegou a ter as redes sociais suspensas novamente por conta do caso.
Um teste para a maturidade política alcançada em 2020
“Em 2020, podemos dizer que Boulos alcançou maturidade política”, afirma o professor de teoria política Paulo Nicolli Ramirez, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), destacando que, na eleição anterior, o candidato do PSOL chegou ao segundo turno contra Bruno Covas (PSDB) sem o apoio de grandes partidos e com pouco tempo de TV. “Isso foi importante porque ele conseguiu conquistar um capital político na cidade. Agora, a eleição de 2024 é o verdadeiro teste dessa maturidade”.
A articulação para que o PT apoiasse o nome de Boulos na disputa pela Prefeitura de São Paulo começou a ser gestada em 2022. Na época, Lula pediu que o ex-líder dos sem-teto desistisse de concorrer ao governo do Estado para fortalecer a candidatura de Fernando Haddad (PT), que terminou sendo derrotada por Tarcísio de Freitas (Republicanos). Em troca, o PSOL receberia o apoio do PT na eleição municipal seguinte, com Boulos à frente da chapa. Essa costura política também envolveu o retorno de Marta Suplicy ao PT – após ter rompido com a sigla e atuado como secretária de Relações Internacionais na gestão de Ricardo Nunes – para ocupar a vaga de vice-prefeita.
Apesar das críticas internas, principalmente de membros do Diretório Municipal do PT que temiam que abrir mão da cabeça de chapa enfraquecesse as candidaturas petistas à Câmara Municipal, Lula impôs, mais uma vez, sua vontade. A decisão garantiu um marco histórico: pela primeira vez, o PT não teve uma candidatura própria à Prefeitura de São Paulo. O partido jogou R$ 30 milhões na campanha de Boulos, único candidato a contar com a presença de Lula em eventos de campanha. Muitos candidatos petistas não conseguiram, sequer, gravar vídeos com o presidente.
“Diria que esta é a melhor chance que Boulos tem de ganhar a Prefeitura de São Paulo”, afirma o analista político Felipe Berenguer, da Levante Corp. “Na minha visão, se ele não conseguir vencer agora, considerando que esta é a melhor conjuntura possível, é improvável que ele faça uma terceira tentativa em 2028. Talvez precise explorar outras alternativas para sua carreira política, mas continuará sendo uma figura influente na esquerda”, completa.
Boulos se destacou como o candidato que mais realizou agendas de rua durante a campanha, com 56 caminhadas em áreas comerciais, 14 carreatas e três comícios – dois deles ao lado de Lula. A presença do presidente também marcou sua propaganda eleitoral na TV e no rádio, com a primeira peça publicitária mostrando Lula visitando a casa de Boulos no Campo Limpo, zona sul. Apesar do apoio de Lula, o deputado tem enfrentado dificuldades para conquistar o eleitorado de baixa renda, especialmente entre aqueles que ganham até dois salários mínimos, segmento em que Nunes ainda lidera.
Imagem moderada
Um dos principais objetivos da campanha de Boulos foi tentar desfazer a imagem de radical que lhe é atribuída. Pesquisas qualitativas apontam que essa percepção é a principal razão pela qual eleitores rejeitam o deputado do PSOL. Para modificar essa impressão, Boulos adotou um visual mais formal e buscou evitar temas polêmicos. Além disso, ajustou seu discurso em diversas questões: chegou a classificar o regime de Nicolás Maduro, na Venezuela, como uma ditadura e declarar que não apoia a descriminalização das drogas, posições que contrastam com suas declarações anteriores.
A campanha também adotou um coração como logo, e o jingle utiliza uma paródia do samba “Tá Escrito”, popularizado pelo grupo Revelação, com o verso: “Erga essa cabeça / Vai com Boulos / Vai com fé / Faz o coração agora.” A estratégia de moderação de imagem conta ainda com outro elemento: a experiência de Marta Suplicy como prefeita da capital paulista, partindo da ideia de que a trajetória da ex-prefeita poderia compensar a falta de experiência de Boulos no Executivo.
Integrantes da equipe de campanha do PSOL reconhecem que, inicialmente, a estratégia de comunicação buscava apresentar o candidato como um moderado, posicionando Boulos como principal adversário de Ricardo Nunes, que é formalmente apoiado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), sob o mote “defesa da democracia contra o bolsonarismo”. No entanto, o estouro de Pablo Marçal, com uma retórica agressiva que frequentemente ultrapassou os limites do debate político, forçou ajustes na estratégia original.
Após pressão de seus apoiadores, Boulos adotou uma postura mais agressiva contra Marçal, destacando a ligação de membros do PRTB com o crime organizado. Ao mesmo tempo, ele buscou igualar Marçal a Nunes, afirmando que ambos representam diferentes facetas do bolsonarismo. Pesquisas indicam que Boulos teria mais facilidade em vencer Marçal em um eventual segundo turno, mas enfrentaria maior dificuldade contra Nunes. Apesar disso, integrantes da campanha evitam demonstrar preferência entre o atual prefeito e o influenciador como possíveis adversários no segundo turno.
Pablo Marçal e seus efeitos colaterais
Marçal já é visto como uma das figuras centrais desta eleição, tumultuando o debate ao reduzir drasticamente o foco nas propostas dos candidatos. Os debates eleitorais se transformaram em verdadeiros “reality shows”, com as redes sociais, a TV e o rádio se tornando arenas de disputa por direitos de resposta. No segundo debate, dos 11 realizados no primeiro turno, o ex-coach chegou a “exorcizar” Boulos com uma carteira de trabalho, e o candidato do PSOL tentou arrancar o objeto da mão de Marçal, em uma cena que viralizou nas redes sociais, prejudicando a imagem de Boulos.
Além disso, Marçal afirmou, sem apresentar provas, que Boulos seria usuário de cocaína, o que resultou em quase uma dezena de condenações contra ele por direitos de resposta nas redes sociais. No entanto, a acusação também forçou Boulos a se defender, revelando aspectos inéditos de sua vida pessoal, como uma internação no Hospital do Servidor aos 19 anos para tratar de depressão. O candidato também admitiu que a única droga que experimentou foi um cigarro de maconha na juventude, mas que teve uma dor de cabeça após o uso, o que o levou a nunca mais consumir a droga.
O desfecho desse embate ocorreu no sábado, 5, quando uma perícia da Polícia Civil confirmou que o laudo divulgado por Pablo Marçal contra Guilherme Boulos em suas redes sociais era falso. No entanto, antes mesmo dessa confirmação, já havia fortes indícios de que o documento não era autêntico. O número de identidade de Boulos estava incorreto no receituário falso, e, além disso, o dono da clínica onde o suposto atendimento teria ocorrido é aliado de Marçal.
Paulo Nicolli Ramirez, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), avalia que a tentativa de Boulos de reduzir sua imagem negativa foi ofuscada pelos ataques de Marçal e pelos confrontos nos debates. Segundo ele, além dessas disputas, Boulos teve que enfrentar acusações falsas, como a alegação de que teria sido internado por uso de cocaína, o que desviou ainda mais a atenção do eleitorado. “Apesar do esforço em melhorar sua imagem, isso não foi suficiente diante dos estragos causados por Marçal”, conclui o professor da FESPSP, acrescentando que Boulos é uma figura importante na esquerda, mas que apenas os resultados das eleições dirão até que ponto sua campanha será bem-sucedida.
“Ele provavelmente chegará ao segundo turno, mas, se perder novamente, seu nome sofrerá desgaste, como já ocorreu com Haddad e Marta”, diz o especialista em ciências políticas. “Perdendo [a eleição], seu nome pode ser retirado das opções futuras de liderança, especialmente como um possível substituto de Lula. Por isso, acredito que este seja o momento mais crucial de sua vida política: ou ele permanece no Legislativo até se aposentar ou avança para cargos mais elevados, como prefeito ou, quem sabe um dia, governador”.
O Estadão terá apuração do resultado do primeiro turno das eleições 2024, ao vivo, a partir das 17h deste domingo, 6.