Em meio aos desafios enfrentados pela esquerda nas eleições de 2024, a cientista política e professora emérita da USP Maria Hermínia Tavares de Almeida, de 82 anos, defende uma tática mais eficaz para atrair o eleitor centrista, especialmente considerando o fortalecimento das legendas de direita e de centro, e sugere que Guilherme Boulos (PSOL) precisará construir uma nova persona política para superar a sua rejeição.
Hermínia avalia que o foco excessivo na desconstrução de Ricardo Nunes (MDB) — em vez de destacar mais seu próprio projeto — pode ter prejudicado o desempenho do candidato do PSOL na disputa pela Prefeitura de São Paulo. “Não sei se foi a melhor estratégia”, observa, ressaltando que Nunes, com ampla coalizão e apoio da máquina municipal, atraiu o eleitorado pragmático, que valorizou as entregas da prefeitura em uma abordagem menos ideológica. “Entre um prefeito que mostra o que fez e um candidato que diz que fará, o eleitor prudente pode estar inclinado a votar no primeiro.”
Em entrevista ao Estadão, a cientista política avalia que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), saiu das eleições com uma imagem política fortalecida, consolidando-se como um nome relevante na disputa pela liderança da direita no Brasil, principalmente após apostar em candidatos bem-sucedidos. Hermínia pondera, porém, que essa liderança ainda é disputada por figuras como o governador Ronaldo Caiado (União-GO) e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Para a professora emérita da USP, as eleições desafiaram a expectativa de uma polarização centrada em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Bolsonaro, revelando uma política local mais pragmática, impulsionada pelo fortalecimento de partidos como PSD, MDB e União Brasil. Em sua avaliação, a influência direta dos dois líderes foi “irrelevante”, enquanto o desempenho do Centrão e da direita reafirmou seu domínio no cenário municipal e evidenciou o desafio de renovação para a esquerda.
Hermínia afirma que ainda é cedo para conclusões definitivas sobre perda de votos da esquerda, mas destaca o novo segmento do “eleitor-empreendedor” e vê uma mudança terminológica, na qual o termo “empreender” dá status mais positivo e digno ao trabalho informal, em contraste com expressões como “se virar” ou “fazer bico.” Mesmo assim, adverte contra generalizações apressadas e ressalta a importância de compreender melhor o comportamento do voto no Brasil.
Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida ao Estadão:
Como a senhora avalia o papel de Ricardo Nunes, especialmente considerando que ele herda o mandato de Bruno Covas? O pragmatismo da política local tem ganhado mais força do que projetos ideológicos?
Tudo indica que Ricardo Nunes fez coisas, que a prefeitura esteve presente nos bairros mais pobres e que o prefeito tem o que mostrar. Coisas que a imprensa não cobriu e os estudiosos não viram. Mas não é possível deixar de lembrar que o que parece estar acontecendo aqui — ou seja, a reeleição — ocorreu em muitas outras cidades e costuma ocorrer. Prefeitos se reelegem. Nunes tem uma enorme coalizão e muitos recursos do fundo eleitoral. A máquina da prefeitura é poderosa. Entre um prefeito que mostra o que fez e um candidato que diz que fará, o eleitor prudente pode estar inclinado a votar no primeiro. Eleição é sempre condicionada à oferta de candidatos.
Talvez a campanha de Guilherme Boulos tenha se baseado na ideia de que ele [Nunes], por ser figura apagada, nada tinha a mostrar. E talvez tenha se concentrado demasiadamente em desconstruir o prefeito, mostrar suas alianças duvidosas, seus comportamentos pessoais reprováveis, sua falta de pulso. Não sei se foi a melhor estratégia.
Na avaliação da senhora, o que faltou à campanha de Boulos para obter um desempenho eleitoral mais favorável?
Não teve que ver com a campanha propriamente. Para superar a rejeição da maioria, ele precisará construir uma outra persona política. A de líder de movimento social que aposta na ação direta tem alta rejeição dos eleitores.
Os partidos de esquerda enfrentaram dificuldades em várias capitais e grandes centros urbanos, incluindo São Paulo, onde Guilherme Boulos teve dificuldades para conquistar o eleitorado das classes C e D. Em um de seus artigos, a senhora menciona a expressão ‘esquerda brâmane’, desenvolvida pelo economista francês Thomas Piketty, para descrever a transformação dos partidos progressistas na França, que antes tinham uma forte base na classe operária, mas passaram a atrair eleitores com alto nível educacional e cultural. A senhora enxerga essa dinâmica se replicando na esquerda brasileira?
Thomas Piketty documentou esse processo, na França, com extenso estudo baseado em resultados eleitorais e pesquisas de opinião. Para afirmar com certeza que isso está acontecendo aqui, seria preciso olhar os resultados para as principais cidades do país. Um trabalho ainda a ser feito. Baseada apenas em resultados preliminares de São Paulo, o que sabemos é que o PT perdeu votos em áreas da periferia, em pedaços da zona leste e especialmente na zona sul [no primeiro turno]. São áreas habitadas por pessoas de baixa renda.
Por outro lado, a votação de Boulos concentrou-se em bairros da zona oeste, onde moram pessoas de alta escolaridade e alta renda. Mas é preciso tomar cuidado para não inferir o comportamento de eleitores de determinada classe ou estrato de renda a partir da distribuição espacial dos votos. Os bairros têm composição social heterogênea.
A esquerda ficou menor. Em 2020-2024, governava 14,8% dos brasileiros. Agora, governará 11,25%. Desde 2016, o PT vem perdendo espaço nas capitais e nos municípios com mais de 200 mil eleitores. Essa é uma perda importante.
Nas periferias, historicamente mais favoráveis à esquerda, os partidos desse campo político também enfrentaram dificuldades. A que fatores podemos atribuir esse cenário eleitoral? A mudança no perfil desse eleitorado, que agora parece valorizar mais o empreendedorismo e a ideologia do mérito pessoal, influenciou esse resultado? As políticas públicas deixaram de dialogar com essas camadas?
Por enquanto, ainda não é possível dizer coisas consistentes sobre as razões dessa redução dos votos na esquerda em regiões da cidade onde seu peso já foi maior. Todas as explicações que você levanta são hipóteses a serem testadas. Pessoas trabalhando por conta própria sempre existiram aos montes. Nos melhores momentos da economia brasileira, o trabalho formal, com carteira assinada, mal ultrapassou os 50% da força de trabalho. Ou seja, o trabalho informal sempre esteve presente e era a situação de um enorme contingente de trabalhadores. Hoje diz-se que eles empreendem; no passado, dizia-se que “se viravam” ou “faziam bico”. Do ponto de vista da dignidade do trabalhador, da autoimagem da pessoa que trabalha, dá mais conforto falar que ela empreende do que dizer que “se vira” ou “faz trabalho informal”.
É possível que o discurso que valoriza esse tipo de inserção no mercado de trabalho arrebanhe votos. Mas esses empreendedores já estavam aí há muito tempo, já votavam há muito tempo. Lula II fez políticas beneficiando esses setores, como a Lei do Microempreendedor Individual (MEI), de 2008. Então, devagar com generalizações muito rápidas. Melhor dizer que precisamos entender melhor a cabeça do eleitor, por que vota como vota. Os resultados eleitorais não dizem nada sobre isso.
Considerando os resultados dessas eleições, quem saiu mais fortalecido na chamada “primária” da direita em São Paulo? Como a senhora avalia a figura de Pablo Marçal como uma liderança emergente na direita?
Em São Paulo, saem fortalecidos o prefeito e o governador. No País, do PSD de Gilberto Kassab, a direita pragmática, ávida de recursos e poder. Direita pragmática que sempre predominou nas eleições municipais e para a Câmara Federal desde 1985.
O governador Tarcísio de Freitas apoiou ativamente Nunes e outros candidatos em São Paulo. Ele sai maior politicamente para 2026? Tarcísio pode consolidar uma nova liderança à direita, fora do espectro bolsonarista, ou sua influência ainda está atrelada ao bolsonarismo?
O governador apostou e ganhou. Saiu com uma imagem mais nítida. A liderança à direita está em disputa: há outros candidatos fortes, como o governador Caiado, por exemplo, Jair Bolsonaro tem força e catalisa eleitores de extrema direita. Por enquanto, tem que ser levado em conta por qualquer político que aspire a ser governador ou presidente unificando as forças de direita. O discurso do governador Tarcísio continua mostrando sua lealdade ao ex-presidente e sua identificação com propostas e políticas caras aos bolsonaristas, na educação especialmente. O empenho de separá-lo de Bolsonaro é maior entre os analistas, que buscam figuras de direita mais “razoáveis”, do que do próprio governador, que não se cansa de proclamar sua lealdade ao ex-presidente.
Os resultados das eleições mostraram um fortalecimento dos partidos do Centrão, como MDB, PSD e União Brasil. Como a senhora avalia esse movimento?
Não há nada de novo nisso. O MDB já foi o maior partido brasileiro em termos de prefeituras e câmaras municipais. O União Brasil vem dos Democratas e, antes deles, do PFL. O centro-direita e a direita pragmática sempre foram os grandes vencedores de eleições municipais e para a Câmara Federal. A novidade é o crescimento do PSD de Kassab e, na extrema direita, o fortalecimento do PL. Não sei qual o futuro de Pablo Marçal. Ele pode voltar para o YouTube e TikTok ou pode continuar na política. Há uma minoria de direita radical que ele pode disputar com outros líderes, especialmente com Bolsonaro.
Olhando para o cenário nacional, os resultados municipais podem influenciar as eleições presidenciais de 2026? Existe um “recado” das urnas que já sinaliza tendências?
Não creio. Eleições municipais se correlacionam com eleições para a Câmara Municipal. O pleito presidencial tem outra lógica: é mais plebiscitário e depende muito da capacidade de atração de líderes mobilizadores. De toda forma, essas eleições confirmaram que as direitas são muito fortes, o centro tende a gravitar em torno delas, e as esquerdas são minoritárias e precisam pensar em como atrair, de maneira consistente, centristas mais resistentes a ideias escancaradamente reacionárias como escolas cívico-militares, cura gay, proibição total do aborto, predação ambiental.
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Qual foi o impacto da atuação de Lula e Bolsonaro nessas eleições? Por que suas presenças parecem não ter tido o efeito esperado?
Foi muito pequena. Eu diria irrelevante.
Muito se falava que a polarização dominaria as eleições municipais, mas os resultados parecem apontar para um caminho diferente, com a política tradicional ganhando força. Em um de seus artigos, a senhora mencionou que há uma interpretação extensiva do conceito de “polarização” no Brasil, citando o recorte do Datafolha sobre a segunda preferência dos paulistanos entre os candidatos a prefeito. Poderia falar um pouco sobre a aparente perda de protagonismo da polarização nessas eleições?
Impossível pensar que 5.565 disputas pudessem reproduzir as linhas de conflito da disputa presidencial, cujos resultados deram origem à ideia discutível de polarização. Mesmo os resultados de São Paulo, com três candidatos quase empatados, negam a ideia de um eleitorado dividido irremediavelmente entre dois polos extremos. A vitória de partidos pragmáticos de centro-direita também nega a hipótese da polarização. Finalmente, os dados da pesquisa da Folha de S.Paulo sobre a segunda preferência dos eleitores indicam ausência de polarização no eleitorado paulistano. Da mesma forma, a vitória esmagadora de João Campos em Recife e, em menor medida, de Eduardo Paes no RJ contradizem aquela hipótese.