BRASÍLIA - O Brasil consolidou um acordo sigiloso de exportação de produtos e tecnologias para a Arábia Saudita construir a sua primeira fábrica própria de explosivos militares. As plantas foram criadas por uma empresa brasileira sob demanda da ditadura saudita que pretende, até 2030, “suprir toda a demanda militar” do país por explosivos e espoletas de detonação de bombas, itens que podem ser úteis em guerras e conflitos no Oriente Médio.
A autorização para a venda de equipamentos e serviços ao regime de Mohammed bin Salman foi concedida ainda no segundo semestre de 2018, na reta final da gestão de Michel Temer, porém as principais etapas da construção se desenvolveram sob o governo Jair Bolsonaro, entre 2019 e 2022. Em paralelo, ele aumentou autorizações para exportação de tecnologia militar aos sauditas. Negócios da indústria privada de defesa com outros países precisam do aval de três ministérios: Defesa, Ciência e Itamaraty.
Dados inéditos obtidos pelo Estadão mostram que o interesse das companhias brasileiras pela Arábia Saudita despertou no governo Temer e cresceu nos anos Bolsonaro. Entre 2017 e 2018 foram dez pedidos, sendo oito autorizados. Em 2019, 2020 e 2021 foram 21 pedidos de empresas à gestão Bolsonaro, dos quais 17 foram deferidos. Eram contratos para vendas de armas, blindados, bombas e serviços, por exemplo. Em 2015 e 2016 não houve solicitações.
A construção da fábrica de explosivos militares com mão de obra e tecnologia brasileiras está dentro de um conjunto de investidas militares do reino saudita. Mais recentemente, a Arábia Saudita ergueu um complexo para produção de mísseis balísticos em um movimento que ligou o alerta de potências mundiais por conta dos riscos de instabilidade no Oriente Médio.
A empresa que pediu e recebeu autorização do governo brasileiro para fechar o contrato com os sauditas é a Mac Jee, com sede em São José dos Campos (SP). A estrutura montada na Arábia Saudita tem cerca de 500 mil metros quadrados e fica dentro da Saudi Chemical Company Limited (SCCL), maior companhia de produção de energia civil e militar daquele país.
A fábrica produz TNT e RDX, componentes usados para determinados tipos de bombas. Todo o processo de autorização e de contratação é protegido por sigilo. Procurados, os ministérios que lidam com o tema informaram que não poderiam comentar motivações ou condições do acordo da Mac Jee. O valor do contrato também é desconhecido.
Fontes ligadas ao projeto afirmaram ao Estadão, sob a condição de não terem os nomes revelados, reconhecer que a Mac Jee subiu de patamar no mercado ao ser contratada para o serviço. Ao passar a fazer negócios com o regime, a empresa adotou em suas dependências até salas de oração para acolher clientes muçulmanos. Por outro lado, dizem que plantas de TNT e RDX têm tecnologias dominadas pelo Brasil e consideradas pouco sofisticadas, se comparadas com a gama de ofertas da indústria militar mundial.
A empresa era comandada pelo francês radicado Brasil Simon Jeannot. Em uma entrevista ao site Defesa Aérea e Naval em 2020, ele disse que a diplomacia é determinante para os seus negócios. “A venda de sistemas de defesa é, antes de tudo, diplomacia. Antes de ser técnica, antes de ser financeira, é diplomacia”, disse.
Em um fórum de empreendedoras em agosto passado, a atual presidente da Mac Jee, Alessandra Stefani, disse que era preciso “aproveitar o momento” na relação com os sauditas. “No setor de defesa, eles veem o país como amigo e grande parceiro. A indústria de defesa precisa aproveitar esse momento, e a gente está surfando essa onda”, afirmou. Jeannot e Stefani não quiseram dar entrevistas.
No período da construção da fábrica de explosivos e do aval a novos acordos militares com os sauditas, comitivas de Bolsonaro e do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, foram recebidas em Riade para agendas variadas. Em uma delas, joias avaliadas em R$ 5 milhões que seriam um presente da monarquia árabe foram entregues a Bento, que tentou entrar com elas ilegalmente no Brasil. O caso, revelado pelo Estadão, está sob investigação.
O perigo do RDX
Uma reportagem da CNN Internacional publicada em dezembro de 2021 revelou que agências de inteligência do governo dos Estados Unidos descobriram que a Arábia Saudita estava produzindo seus próprios mísseis balísticos com a ajuda da China. Imagens de satélite obtidas e analisadas por pesquisadores Middlebury Institute of International Studies confirmaram a investida. A montagem do parque militar, dizia a publicação, complicava a administração de Joe Biden por causa dos esforços que a Casa Branca empreendia para restringir ambições nucleares do Irã, rival da Arábia Saudita na região.
Apesar da concomitância do projeto dos mísseis e do contrato da fábrica da Mac Jee, técnicos ligados ao projeto brasileiro afirmaram que a tecnologia nacional não seria destinada à fabricação de mísseis balísticos. Por serem armas consideradas de altíssimo poder destrutivo, o governo brasileiro não poderia permitir a exportação em razão de acordos internacionais dos quais é signatário. Em 1995, o País assumiu o compromisso com o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR), para não proliferação de armas de destruição em massa.
Ao Estadão, especialistas estrangeiros por trás da descoberta do parque de mísseis balísticos relataram que, em teoria, seria possível que o regime saudita usasse, para a estrutura mais complexa, a produção de RDX na fábrica construída pela Mac Jee. O componente poderia ser usado, por exemplo, nas ogivas dos mísseis. Contudo, por se encaixar nas premissas do MTCR, o Brasil deveria ter pedido garantias da Arábia Saudita de que isso não ocorreria, sob pena de sanções. O governo diz não poder se manifestar.
Em nota, a Mac Jee informou que “que possui contrato de venda de equipamentos com entidade industrial da Arábia Saudita, deferido pelo governo brasileiro em julho de 2018″ e afirmou que “o acordo cumpre rigorosamente as legislações atinentes ao setor, sendo firmado a partir da anuência de ambos os países”.
Investimentos frustrados
Os negócios militares e a aproximação do clã Bolsonaro com a realeza saudita se intensificaram no momento em que bin Salman era visto como um pária mundial e o príncipe tentava limpar a própria imagem. Em 2018, o assassinato do jornalista Jamal Khashoogii pelo regime saudita afastou líderes mundiais.
O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) começou a viajar ao Oriente Médio ainda nos primeiros meses do governo do pai. “Tivemos uma excelente reunião com o Príncipe Mohammed bin Salman (...) o Príncipe espera a visita do PR Bolsonaro, o que deve ocorrer nos próximos meses”, escreveu, em junho de 2019.
O país foi um dos primeiros visitados por Jair Bolsonaro. No fim do mandato, o ex-presidente condecorou o embaixador saudita em Brasília. Foi uma homenagem atípica. Ele era o único agraciado com a comenda. Em geral, a Ordem do Rio Branco é entregue a diversas personalidades, em cerimônias coletivas.
As relações que o governo Jair Bolsonaro mantinha com o regime da Arábia Saudita envolveram anúncios de acordos bilionários feitos diretamente pelo então presidente e pelo príncipe saudita. O principal deles, porém, nunca se concretizou.
Eram até US$ 10 bilhões em investimentos previstos em um acordo firmado ainda em 2019 durante uma visita de Bolsonaro a Riade. Os recursos seriam garantidos por meio do Fundo de Investimento Público saudita (PIF), voltado a explorar “oportunidades em parceria com o governo brasileiro”.
A concretização dos investimentos foi condicionada a visitas de emissários sauditas ao Brasil para tratar de potenciais projetos. Em paralelo, eles buscavam mais segurança contra riscos de dupla tributação. Segundo observadores da relação bilateral consultados pela reportagem, as condicionantes não foram solucionadas e os investimentos bilionários não avançaram.