Apesar da confusão feita pelas pessoas sobre o que é ser de direita ou de esquerda, perceptível principalmente quando se realizam pesquisas qualitativas, o brasileiro em sua maioria, sempre que entrevistado, coloca-se no espectro girondino da força. Em pesquisa realizada pelo PoderData, em fevereiro deste ano, mesmo após a posse de Lula, presidente oriundo da esquerda, 28% dos brasileiros se consideram de direita, 7 pontos a mais do que aqueles que se identificam como esquerdistas.
Essa percepção se dá de maneira mais clara quando se debruça sobre a opinião do brasileiro acerca dos diferentes temas comportamentais da sociedade. Em levantamento feito pelo mesmo PoderData, em janeiro, 46% dos brasileiros se dizem contrários ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Já, de acordo com a XP/Ipespe, 72% são favoráveis à redução da maioridade penal, 59% contrários à descriminalização do aborto e 75% refutam a liberação do comércio de drogas.
Com essa realidade de pensamento parece inconcebível que o país em nove eleições presidenciais democráticas, desde o final da ditadura militar, tenha eleito em cinco oportunidades um candidato que ocupasse a raia da esquerda no pleito presidencial. Lula, em 2002, 2006 e 2022, e Dilma, sua indicação, em 2010 e 2014, venceram a disputa pelo Planalto mesmo representando um pensamento antagônico ao da maioria do povo brasileiro. O mais interessante nisso tudo é que justamente nas camadas mais baixas da população, segmento no qual tiveram sua base absoluta de votos, reside a maior quantidade do sentimento conservador da sociedade.
Derrotado três vezes seguidas nos anos 90, Lula entendeu que não venceria uma eleição presidencial, caso não mudasse sua apresentação ao público. Essa compreensão, aliada a um excelente trabalho de recomposição de imagem, feito à época por seu marqueteiro Duda Mendonça, transformou o líder sindicalista que pregava calote internacional nas dívidas do país em um homem preocupado com as camadas mais pobres e consciente de que a crise de desemprego pela qual o país passava precisava de alguém equilibrado e com olhar especial para a justiça social. Surgiu o “Lulinha Paz e Amor”, que escreveu a Carta aos Brasileiros, desdizendo tudo que pregou anos a fio e comprometendo-se com o mercado, o símbolo maior do capitalismo.
Depois de eleito, Lula entendeu que mais do que qualquer ideologia, o brasileiro mais pobre sentia-se órfão de um político mais paternal e que o enxergasse como prioridade, ao menos nos discursos. Amparado pela lógica do varguismo e pelos grandes líderes populares que o Brasil teve, casos de Juscelino Kubitschek e até mesmo do general Médici, Lula abandonou na sua macro comunicação o discurso mais à esquerda e centrou fogo no combate à desigualdade, lançando uma série de programas sociais, como Bolsa Família, Fome Zero, Luz para Todos e Fies, que lhe renderam fidelidade desse público.
Com o avanço das pautas identitárias no mundo, que viraram plataformas políticas dos partidos mais progressistas, Lula buscou se esquivar de ser o grande porta voz dessas agendas. Seu partido e as demais agremiações que sempre estiveram no mesmo campo ideológico do PT, assumiram essas bandeiras e carregaram o ônus de serem suas guardiãs. Lula apartou-se do PT e o resultado disso pode ser percebido quando seu partido só elegeu quatro governadores em vinte e sete possíveis e nenhum prefeito de capital nas últimas eleições.
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Em 2022, ano em que Lula foi conduzido ao seu terceiro mandato presidencial, o desempenho dos partidos à esquerda nas disputas regionais foi tímido. Na Bahia, Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte, o PT elegeu governadores. No Espírito Santo, Maranhão e Paraíba, o PSB, partido socialista, do vice-presidente Geraldo Alckmin, saiu vitorioso, assim como no Amapá, o Solidariedade, partido fundado por sindicalistas da Força Sindical e inspirado no homônimo polonês, liderado por Lech Walęsa. Oito Estados que totalizam pouco mais de 44,5 milhões de habitantes, ou seja apenas 1/5 do Brasil.
Mesmo hegemônico na esquerda, os melhores desempenhos do PT em eleições para os Estados foram em 2010 e 2014, quando elegeu cinco governadores, número que não é compatível com quem venceu tanto a Presidência da República. Desde 1989, o Brasil foi cinco vezes governado pelo PT, duas pelo PSDB e duas pelos extintos PRN (Collor) e PSL, partido pelo qual foi eleito Bolsonaro, que depois migraria para o PL. O segredo para tanto foi justamente o descolamento da figura de Lula do seu partido. Em sondagem realizada durante a eleição, o Ipespe mostrou que 10% dos brasileiros que se consideravam de direita ou centro-direita podiam votar em Lula, número importantíssimo, já que a eleição foi decidida por 0,20% dos votos.
Com o voto da esquerda garantido pela primazia do PT nesta raia e com o entendimento de que o seu eleitor mais fiel é mais conservador nos costumes, Lula, em poucas oportunidades, faz acenos à sua base ideológica e majoritariamente foca em falar sobre a economia real, aquela do bolso do brasileiro. Discute com muita perspicácia a realidade das pessoas e tem a capacidade e a oratória, aliados a um invejável carisma, que o torna uma figura acima de espectros doutrinários. O lulismo é muito maior que o petismo ou que o esquerdismo, é uma força popular que promove um fenômeno de complexa explicação: fazer com que um país conservador eleja em sua maioria das vezes a esquerda para governá-lo.