Bruno Soller analisa o comportamento do eleitor brasileiro com base em big data e pesquisa

Opinião|Qual o futuro do Lulismo? A resposta passa necessariamente por Janja


Corrente ideológica é parecida com demais frentes personalistas que a América do Sul já experimentou, mas o seu futuro é bastante incerto.

Por Bruno Soller

Eu vou viver até os 120 anos, eu vou demorar. Porque ainda preciso disputar umas 10 eleições, mais uns 20 anos”. No meio da calamidade pública que o Rio Grande do Sul atravessa, Lula não poupou, dentro de sua sabedoria estratégica, os ouvidos dos brasileiros, para dar um recado que parece cada vez mais real: o lulismo não tem um sucessor natural. O presidente eleito pela terceira vez ao cargo máximo da nação solapou o seu partido, o PT, que hoje amealha cada vez menos fieis seguidores e conseguiu criar um movimento que tem muito mais adeptos do que aqueles que simpatizam com o partido que ajudou a fundar. O lulismo é uma corrente ideológica parecida com demais frentes personalistas que a América do Sul já experimentou, mas o seu futuro é bastante incerto.

Futuro do lulismo passa muito pela atuação de Janja, que tem despontado como figura proeminente no governo Foto: WILTON JUNIOR/ ESTADÃO

Sofrendo pela primeira vez com uma oposição consistente e numerosa, durante seu governo, Lula tem vivido algo que o caudilhismo costumeiramente passa, uma certa quebra de expectativas com os feitos que consagrou seus líderes. No Brasil, Getúlio Vargas depois de 15 anos de poder com altíssima aprovação popular, que lhe rendeu a alcunha de “pai dos pobres”, voltou ao comando da Presidência da República, por meio de eleições, tendo que suceder um militar com características extremamente diferentes das suas, Eurico Gaspar Dutra, e que deixou um legado inflacionário com a desvalorização brutal do Cruzeiro, moeda à época. O político gaúcho voltou nos braços do povo, em um país muito dividido, em que a soma de seus opositores Eduardo Gomes (UDN) e Cristiano Machado (PSD) superava sua votação – Vargas teve 48,7% dos votos e os adversários somados 51,2%.

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O retorno do Varguismo, todavia, foi sofrível. Perdendo capacidade de defesa nas classes mais altas e apenas fincado na expectativa de melhorias econômicas, à medida que o resultado não aparecia, sua aprovação foi derretendo. O brasileiro esperava um retorno aos anos áureos do Estado Novo, com conquistas sociais, empregos e uma moeda mais forte. A entrega desses pontos não chegava e a pressão foi cada vez mais aumentando, chegando ao extremo ponto do suicídio do presidente, que deixou a célebre carta com a mais famosa de suas frases: “saio da vida para entrar para a história.”

O seu legado enquanto movimento, entretanto, manteve-se forte. Na eleição subsequente, Juscelino Kubitschek armou-se de diversos elementos que criavam semelhanças com Vargas para garantir a vitória contra a oposição udenista. O seu pacto nacional-desenvolvimentista remontava ao período de industrialização do Estado Novo e seu companheiro de chapa foi o gaúcho João Goulart, que por ser oriundo da mesma São Borja, de Vargas, e tendo sido seu ministro do Trabalho, foi alçado à condição de herdeiro do movimento.

Juscelino (direita) armou-se de diversos elementos que criavam semelhanças com Vargas (centro) para garantir a vitória contra a oposição udenista  Foto: CPDOC/FGV/DIVULGAÇÃO
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O retorno de Perón ao poder, na Argentina, depois de seu exílio teve um desfecho de tango. Altamente aprovado pelas camadas mais pobres da população, que lembravam de suas políticas de distribuição de renda, valorização de salários, congelamento de preços, avanços trabalhistas, o militar argentino gerava uma grande esperança na população que o elegeu com mais de 60% dos votos, em uma chapa pura, em que a vice-presidente era sua esposa Isabel Perón. O falecimento de Perón, no entanto, logo no início de mandato, não permitiu que seu retorno tivesse sido avaliado pelos argentinos. A assunção de Isabelita não foi bem aceita pela população, que não conseguia enxergar um sucessor imediato para o seu líder mais popular. A morte trouxe Perón para um patamar ainda mais mítico e um certo sebastianismo se criou em torno da sua figura. A força do peronismo foi criando alguns herdeiros e que teve em Néstor Kirchner o mais proeminente deles, criando uma nova linha de movimento personalista no país, o kirchnerismo, herdado por sua esposa, Cristina Kirchner.

Com idade avançada e sendo desafiado a suprir as expectativas de um povo que lhe conferiu uma nova oportunidade após uma prisão, Lula vivencia momentos difíceis à frente da presidência. A inflação dos alimentos, entregas ainda tímidas e polêmicas internacionais têm afetado a sua popularidade entre os eleitores que o trouxeram de volta. Uma pesquisa Quaest, contratada pelo banco Genial, mostra que 55% dos brasileiros não querem que Lula tenha um quarto mandato. Além da própria decadência, chama a atenção o fato de que mesmo sendo um líder político ativo nos últimos 45 anos, desde as greves do ABC, Lula ainda não conseguiu criar um sucessor que represente suas ideias.

Dilma Rousseff, escolhida para sucede-lo em 2010, foi um tiro n’água. Apesar da vitória eleitoral, Dilma representou uma perda de capital político para Lula e quase que um afundamento completo do PT. De um resultado eleitoral expressivo em que ganhou por uma diferença de 12 pontos contra José Serra, atingindo 56% dos eleitores brasileiros a um impeachment que lhe conferia 8% de aprovação, segundo o Datafolha, Dilma nem de longe conseguiu ser um bastião do lulismo. Fernando Haddad, alçado ao posto em 2018, não empolgou e acabou derrotado nas eleições presidenciais daquele ano. Há quem aposte em Guilherme Boulos, mas é uma construção ainda difícil, que passa por uma vitória na eleição paulistana, vista como muito complicada, e depois uma assunção nacional.

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Um movimento, contudo, tem sido observado no entorno de Lula. Janja, a primeira-dama do país, tem tido um destaque político que nunca outra pessoa na mesma função teve na história. Apesar de alguma popularidade, Ruth Cardoso se concentrava mais em afazeres administrativos da gestão de seu marido FHC, do que propriamente se dedicava à política. Seu programa Comunidade Solidária foi uma inspiração para diversas ações sociais, mas sempre se restringiu a essa porção de significância. Janja, não. A socióloga paranaense governa ao lado do marido. Pelo menos, essa é a sensação que a propaganda oficial procura dar. Janja recebe chefes de Estado, palpita em áreas ministeriais e tem um trabalho de imagem que a linka com temas que Lula talvez tenha maior dificuldade, por questões até mesmo geracionais, como a causa animal, o empoderamento feminino, as questões dos direitos LGBT e o ambientalismo.

Comparada com Evita Perón, a primeira e popular esposa do caudilho argentino, pela Revista Notícias, do país vizinho, Janja tem uma narrativa forte por trás da construção de sua imagem. De ativista social, filha de um comerciante e uma dona de casa, saída do interior do Paraná, que conseguiu uma boa formação acadêmica, à mulher que enfrentou, ao lado de Lula, o seu maior calvário, a prisão por corrupção, e que ativamente participou da campanha que o trouxe de volta para o cargo supremo do país e que, ainda, o ajuda a governar.

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Essa história, segundo levantamento do instituto Paraná Pesquisas, gera alguma aprovação popular. Para 49% dos brasileiros, a participação de Janja nas agendas ao lado de Lula são bem aceitas. Os que reprovam são 44%. Chama a atenção que entre mulheres e os mais jovens esse número tem aumento substancial. Para 53% das mulheres e 61% dos jovens de 16 a 24 anos, Janja deve estar ladeada do marido. Em um país cada vez mais feminino e com o lulismo envelhecido, esses dois públicos são fundamentais para a construção de futuro.

Janja pode protagonizar futuro embate com Michelle Bolsonaro na polarização brasileira Foto: Taba Benedicto/Estadão

A escolha por Janja parece intencional e frustra a política tradicional. Geraldo Alckmin, que fez um giro de 180 graus em sua vida pública ao compor chapa com Lula, espera ansiosamente para ser esse sucessor. Ministros petistas mais técnicos e ex-governadores como Rui Costa e Camilo Santana sonham com esse dedaço, mas não conseguem criar imagem e semelhança ao líder, se este líder não os abraçar. O lulismo é personalista e vive unicamente de seu criador. Janja é sua mulher. É natural sua vida ao lado do marido. Parece menos forçado, mais crível aos olhos da população. O compartilhamento de visões de mundo e valores é quase que osmótico e com a potência do marketing e da comunicação pode alçar voos muito maiores.

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Se a estratégia vai ser de sucesso é impossível saber. O fato é que sem alarde, Lula vai criando uma sucessora. E não só política, mas conceitual. O populismo brasileiro e a exacerbação narcisística dos líderes nacionais pode fazer com que nas próximas eleições, o Brasil venha a ver um confronto entre primeiras-damas. Janja e Michelle Bolsonaro, cogitada após a suspensão de direitos do ex-presidente Jair Bolsonaro, estão caminhando a passos largos para serem as herdeiras dos dois movimentos mais populares do Brasil. Para que Janja pudesse concorrer a uma eventual sucessão com Lula estando na função, seria necessário uma mudança de ordem Constitucional. Hoje, o art. 14, § 7º da Constituição aponta que o cônjuge do presidente da República é inelegível para qualquer cargo, a não ser que já estivesse nele e disputando a reeleição. Fato é que a polarização brasileira pode ganhar contornos femininos, por mais que estes contornos ainda carreguem o machismo, de serem elas levadas ao palco pela função social do matrimônio com os homens fortes da nação.

Eu vou viver até os 120 anos, eu vou demorar. Porque ainda preciso disputar umas 10 eleições, mais uns 20 anos”. No meio da calamidade pública que o Rio Grande do Sul atravessa, Lula não poupou, dentro de sua sabedoria estratégica, os ouvidos dos brasileiros, para dar um recado que parece cada vez mais real: o lulismo não tem um sucessor natural. O presidente eleito pela terceira vez ao cargo máximo da nação solapou o seu partido, o PT, que hoje amealha cada vez menos fieis seguidores e conseguiu criar um movimento que tem muito mais adeptos do que aqueles que simpatizam com o partido que ajudou a fundar. O lulismo é uma corrente ideológica parecida com demais frentes personalistas que a América do Sul já experimentou, mas o seu futuro é bastante incerto.

Futuro do lulismo passa muito pela atuação de Janja, que tem despontado como figura proeminente no governo Foto: WILTON JUNIOR/ ESTADÃO

Sofrendo pela primeira vez com uma oposição consistente e numerosa, durante seu governo, Lula tem vivido algo que o caudilhismo costumeiramente passa, uma certa quebra de expectativas com os feitos que consagrou seus líderes. No Brasil, Getúlio Vargas depois de 15 anos de poder com altíssima aprovação popular, que lhe rendeu a alcunha de “pai dos pobres”, voltou ao comando da Presidência da República, por meio de eleições, tendo que suceder um militar com características extremamente diferentes das suas, Eurico Gaspar Dutra, e que deixou um legado inflacionário com a desvalorização brutal do Cruzeiro, moeda à época. O político gaúcho voltou nos braços do povo, em um país muito dividido, em que a soma de seus opositores Eduardo Gomes (UDN) e Cristiano Machado (PSD) superava sua votação – Vargas teve 48,7% dos votos e os adversários somados 51,2%.

O retorno do Varguismo, todavia, foi sofrível. Perdendo capacidade de defesa nas classes mais altas e apenas fincado na expectativa de melhorias econômicas, à medida que o resultado não aparecia, sua aprovação foi derretendo. O brasileiro esperava um retorno aos anos áureos do Estado Novo, com conquistas sociais, empregos e uma moeda mais forte. A entrega desses pontos não chegava e a pressão foi cada vez mais aumentando, chegando ao extremo ponto do suicídio do presidente, que deixou a célebre carta com a mais famosa de suas frases: “saio da vida para entrar para a história.”

O seu legado enquanto movimento, entretanto, manteve-se forte. Na eleição subsequente, Juscelino Kubitschek armou-se de diversos elementos que criavam semelhanças com Vargas para garantir a vitória contra a oposição udenista. O seu pacto nacional-desenvolvimentista remontava ao período de industrialização do Estado Novo e seu companheiro de chapa foi o gaúcho João Goulart, que por ser oriundo da mesma São Borja, de Vargas, e tendo sido seu ministro do Trabalho, foi alçado à condição de herdeiro do movimento.

Juscelino (direita) armou-se de diversos elementos que criavam semelhanças com Vargas (centro) para garantir a vitória contra a oposição udenista  Foto: CPDOC/FGV/DIVULGAÇÃO

O retorno de Perón ao poder, na Argentina, depois de seu exílio teve um desfecho de tango. Altamente aprovado pelas camadas mais pobres da população, que lembravam de suas políticas de distribuição de renda, valorização de salários, congelamento de preços, avanços trabalhistas, o militar argentino gerava uma grande esperança na população que o elegeu com mais de 60% dos votos, em uma chapa pura, em que a vice-presidente era sua esposa Isabel Perón. O falecimento de Perón, no entanto, logo no início de mandato, não permitiu que seu retorno tivesse sido avaliado pelos argentinos. A assunção de Isabelita não foi bem aceita pela população, que não conseguia enxergar um sucessor imediato para o seu líder mais popular. A morte trouxe Perón para um patamar ainda mais mítico e um certo sebastianismo se criou em torno da sua figura. A força do peronismo foi criando alguns herdeiros e que teve em Néstor Kirchner o mais proeminente deles, criando uma nova linha de movimento personalista no país, o kirchnerismo, herdado por sua esposa, Cristina Kirchner.

Com idade avançada e sendo desafiado a suprir as expectativas de um povo que lhe conferiu uma nova oportunidade após uma prisão, Lula vivencia momentos difíceis à frente da presidência. A inflação dos alimentos, entregas ainda tímidas e polêmicas internacionais têm afetado a sua popularidade entre os eleitores que o trouxeram de volta. Uma pesquisa Quaest, contratada pelo banco Genial, mostra que 55% dos brasileiros não querem que Lula tenha um quarto mandato. Além da própria decadência, chama a atenção o fato de que mesmo sendo um líder político ativo nos últimos 45 anos, desde as greves do ABC, Lula ainda não conseguiu criar um sucessor que represente suas ideias.

Dilma Rousseff, escolhida para sucede-lo em 2010, foi um tiro n’água. Apesar da vitória eleitoral, Dilma representou uma perda de capital político para Lula e quase que um afundamento completo do PT. De um resultado eleitoral expressivo em que ganhou por uma diferença de 12 pontos contra José Serra, atingindo 56% dos eleitores brasileiros a um impeachment que lhe conferia 8% de aprovação, segundo o Datafolha, Dilma nem de longe conseguiu ser um bastião do lulismo. Fernando Haddad, alçado ao posto em 2018, não empolgou e acabou derrotado nas eleições presidenciais daquele ano. Há quem aposte em Guilherme Boulos, mas é uma construção ainda difícil, que passa por uma vitória na eleição paulistana, vista como muito complicada, e depois uma assunção nacional.

Um movimento, contudo, tem sido observado no entorno de Lula. Janja, a primeira-dama do país, tem tido um destaque político que nunca outra pessoa na mesma função teve na história. Apesar de alguma popularidade, Ruth Cardoso se concentrava mais em afazeres administrativos da gestão de seu marido FHC, do que propriamente se dedicava à política. Seu programa Comunidade Solidária foi uma inspiração para diversas ações sociais, mas sempre se restringiu a essa porção de significância. Janja, não. A socióloga paranaense governa ao lado do marido. Pelo menos, essa é a sensação que a propaganda oficial procura dar. Janja recebe chefes de Estado, palpita em áreas ministeriais e tem um trabalho de imagem que a linka com temas que Lula talvez tenha maior dificuldade, por questões até mesmo geracionais, como a causa animal, o empoderamento feminino, as questões dos direitos LGBT e o ambientalismo.

Comparada com Evita Perón, a primeira e popular esposa do caudilho argentino, pela Revista Notícias, do país vizinho, Janja tem uma narrativa forte por trás da construção de sua imagem. De ativista social, filha de um comerciante e uma dona de casa, saída do interior do Paraná, que conseguiu uma boa formação acadêmica, à mulher que enfrentou, ao lado de Lula, o seu maior calvário, a prisão por corrupção, e que ativamente participou da campanha que o trouxe de volta para o cargo supremo do país e que, ainda, o ajuda a governar.

Essa história, segundo levantamento do instituto Paraná Pesquisas, gera alguma aprovação popular. Para 49% dos brasileiros, a participação de Janja nas agendas ao lado de Lula são bem aceitas. Os que reprovam são 44%. Chama a atenção que entre mulheres e os mais jovens esse número tem aumento substancial. Para 53% das mulheres e 61% dos jovens de 16 a 24 anos, Janja deve estar ladeada do marido. Em um país cada vez mais feminino e com o lulismo envelhecido, esses dois públicos são fundamentais para a construção de futuro.

Janja pode protagonizar futuro embate com Michelle Bolsonaro na polarização brasileira Foto: Taba Benedicto/Estadão

A escolha por Janja parece intencional e frustra a política tradicional. Geraldo Alckmin, que fez um giro de 180 graus em sua vida pública ao compor chapa com Lula, espera ansiosamente para ser esse sucessor. Ministros petistas mais técnicos e ex-governadores como Rui Costa e Camilo Santana sonham com esse dedaço, mas não conseguem criar imagem e semelhança ao líder, se este líder não os abraçar. O lulismo é personalista e vive unicamente de seu criador. Janja é sua mulher. É natural sua vida ao lado do marido. Parece menos forçado, mais crível aos olhos da população. O compartilhamento de visões de mundo e valores é quase que osmótico e com a potência do marketing e da comunicação pode alçar voos muito maiores.

Se a estratégia vai ser de sucesso é impossível saber. O fato é que sem alarde, Lula vai criando uma sucessora. E não só política, mas conceitual. O populismo brasileiro e a exacerbação narcisística dos líderes nacionais pode fazer com que nas próximas eleições, o Brasil venha a ver um confronto entre primeiras-damas. Janja e Michelle Bolsonaro, cogitada após a suspensão de direitos do ex-presidente Jair Bolsonaro, estão caminhando a passos largos para serem as herdeiras dos dois movimentos mais populares do Brasil. Para que Janja pudesse concorrer a uma eventual sucessão com Lula estando na função, seria necessário uma mudança de ordem Constitucional. Hoje, o art. 14, § 7º da Constituição aponta que o cônjuge do presidente da República é inelegível para qualquer cargo, a não ser que já estivesse nele e disputando a reeleição. Fato é que a polarização brasileira pode ganhar contornos femininos, por mais que estes contornos ainda carreguem o machismo, de serem elas levadas ao palco pela função social do matrimônio com os homens fortes da nação.

Eu vou viver até os 120 anos, eu vou demorar. Porque ainda preciso disputar umas 10 eleições, mais uns 20 anos”. No meio da calamidade pública que o Rio Grande do Sul atravessa, Lula não poupou, dentro de sua sabedoria estratégica, os ouvidos dos brasileiros, para dar um recado que parece cada vez mais real: o lulismo não tem um sucessor natural. O presidente eleito pela terceira vez ao cargo máximo da nação solapou o seu partido, o PT, que hoje amealha cada vez menos fieis seguidores e conseguiu criar um movimento que tem muito mais adeptos do que aqueles que simpatizam com o partido que ajudou a fundar. O lulismo é uma corrente ideológica parecida com demais frentes personalistas que a América do Sul já experimentou, mas o seu futuro é bastante incerto.

Futuro do lulismo passa muito pela atuação de Janja, que tem despontado como figura proeminente no governo Foto: WILTON JUNIOR/ ESTADÃO

Sofrendo pela primeira vez com uma oposição consistente e numerosa, durante seu governo, Lula tem vivido algo que o caudilhismo costumeiramente passa, uma certa quebra de expectativas com os feitos que consagrou seus líderes. No Brasil, Getúlio Vargas depois de 15 anos de poder com altíssima aprovação popular, que lhe rendeu a alcunha de “pai dos pobres”, voltou ao comando da Presidência da República, por meio de eleições, tendo que suceder um militar com características extremamente diferentes das suas, Eurico Gaspar Dutra, e que deixou um legado inflacionário com a desvalorização brutal do Cruzeiro, moeda à época. O político gaúcho voltou nos braços do povo, em um país muito dividido, em que a soma de seus opositores Eduardo Gomes (UDN) e Cristiano Machado (PSD) superava sua votação – Vargas teve 48,7% dos votos e os adversários somados 51,2%.

O retorno do Varguismo, todavia, foi sofrível. Perdendo capacidade de defesa nas classes mais altas e apenas fincado na expectativa de melhorias econômicas, à medida que o resultado não aparecia, sua aprovação foi derretendo. O brasileiro esperava um retorno aos anos áureos do Estado Novo, com conquistas sociais, empregos e uma moeda mais forte. A entrega desses pontos não chegava e a pressão foi cada vez mais aumentando, chegando ao extremo ponto do suicídio do presidente, que deixou a célebre carta com a mais famosa de suas frases: “saio da vida para entrar para a história.”

O seu legado enquanto movimento, entretanto, manteve-se forte. Na eleição subsequente, Juscelino Kubitschek armou-se de diversos elementos que criavam semelhanças com Vargas para garantir a vitória contra a oposição udenista. O seu pacto nacional-desenvolvimentista remontava ao período de industrialização do Estado Novo e seu companheiro de chapa foi o gaúcho João Goulart, que por ser oriundo da mesma São Borja, de Vargas, e tendo sido seu ministro do Trabalho, foi alçado à condição de herdeiro do movimento.

Juscelino (direita) armou-se de diversos elementos que criavam semelhanças com Vargas (centro) para garantir a vitória contra a oposição udenista  Foto: CPDOC/FGV/DIVULGAÇÃO

O retorno de Perón ao poder, na Argentina, depois de seu exílio teve um desfecho de tango. Altamente aprovado pelas camadas mais pobres da população, que lembravam de suas políticas de distribuição de renda, valorização de salários, congelamento de preços, avanços trabalhistas, o militar argentino gerava uma grande esperança na população que o elegeu com mais de 60% dos votos, em uma chapa pura, em que a vice-presidente era sua esposa Isabel Perón. O falecimento de Perón, no entanto, logo no início de mandato, não permitiu que seu retorno tivesse sido avaliado pelos argentinos. A assunção de Isabelita não foi bem aceita pela população, que não conseguia enxergar um sucessor imediato para o seu líder mais popular. A morte trouxe Perón para um patamar ainda mais mítico e um certo sebastianismo se criou em torno da sua figura. A força do peronismo foi criando alguns herdeiros e que teve em Néstor Kirchner o mais proeminente deles, criando uma nova linha de movimento personalista no país, o kirchnerismo, herdado por sua esposa, Cristina Kirchner.

Com idade avançada e sendo desafiado a suprir as expectativas de um povo que lhe conferiu uma nova oportunidade após uma prisão, Lula vivencia momentos difíceis à frente da presidência. A inflação dos alimentos, entregas ainda tímidas e polêmicas internacionais têm afetado a sua popularidade entre os eleitores que o trouxeram de volta. Uma pesquisa Quaest, contratada pelo banco Genial, mostra que 55% dos brasileiros não querem que Lula tenha um quarto mandato. Além da própria decadência, chama a atenção o fato de que mesmo sendo um líder político ativo nos últimos 45 anos, desde as greves do ABC, Lula ainda não conseguiu criar um sucessor que represente suas ideias.

Dilma Rousseff, escolhida para sucede-lo em 2010, foi um tiro n’água. Apesar da vitória eleitoral, Dilma representou uma perda de capital político para Lula e quase que um afundamento completo do PT. De um resultado eleitoral expressivo em que ganhou por uma diferença de 12 pontos contra José Serra, atingindo 56% dos eleitores brasileiros a um impeachment que lhe conferia 8% de aprovação, segundo o Datafolha, Dilma nem de longe conseguiu ser um bastião do lulismo. Fernando Haddad, alçado ao posto em 2018, não empolgou e acabou derrotado nas eleições presidenciais daquele ano. Há quem aposte em Guilherme Boulos, mas é uma construção ainda difícil, que passa por uma vitória na eleição paulistana, vista como muito complicada, e depois uma assunção nacional.

Um movimento, contudo, tem sido observado no entorno de Lula. Janja, a primeira-dama do país, tem tido um destaque político que nunca outra pessoa na mesma função teve na história. Apesar de alguma popularidade, Ruth Cardoso se concentrava mais em afazeres administrativos da gestão de seu marido FHC, do que propriamente se dedicava à política. Seu programa Comunidade Solidária foi uma inspiração para diversas ações sociais, mas sempre se restringiu a essa porção de significância. Janja, não. A socióloga paranaense governa ao lado do marido. Pelo menos, essa é a sensação que a propaganda oficial procura dar. Janja recebe chefes de Estado, palpita em áreas ministeriais e tem um trabalho de imagem que a linka com temas que Lula talvez tenha maior dificuldade, por questões até mesmo geracionais, como a causa animal, o empoderamento feminino, as questões dos direitos LGBT e o ambientalismo.

Comparada com Evita Perón, a primeira e popular esposa do caudilho argentino, pela Revista Notícias, do país vizinho, Janja tem uma narrativa forte por trás da construção de sua imagem. De ativista social, filha de um comerciante e uma dona de casa, saída do interior do Paraná, que conseguiu uma boa formação acadêmica, à mulher que enfrentou, ao lado de Lula, o seu maior calvário, a prisão por corrupção, e que ativamente participou da campanha que o trouxe de volta para o cargo supremo do país e que, ainda, o ajuda a governar.

Essa história, segundo levantamento do instituto Paraná Pesquisas, gera alguma aprovação popular. Para 49% dos brasileiros, a participação de Janja nas agendas ao lado de Lula são bem aceitas. Os que reprovam são 44%. Chama a atenção que entre mulheres e os mais jovens esse número tem aumento substancial. Para 53% das mulheres e 61% dos jovens de 16 a 24 anos, Janja deve estar ladeada do marido. Em um país cada vez mais feminino e com o lulismo envelhecido, esses dois públicos são fundamentais para a construção de futuro.

Janja pode protagonizar futuro embate com Michelle Bolsonaro na polarização brasileira Foto: Taba Benedicto/Estadão

A escolha por Janja parece intencional e frustra a política tradicional. Geraldo Alckmin, que fez um giro de 180 graus em sua vida pública ao compor chapa com Lula, espera ansiosamente para ser esse sucessor. Ministros petistas mais técnicos e ex-governadores como Rui Costa e Camilo Santana sonham com esse dedaço, mas não conseguem criar imagem e semelhança ao líder, se este líder não os abraçar. O lulismo é personalista e vive unicamente de seu criador. Janja é sua mulher. É natural sua vida ao lado do marido. Parece menos forçado, mais crível aos olhos da população. O compartilhamento de visões de mundo e valores é quase que osmótico e com a potência do marketing e da comunicação pode alçar voos muito maiores.

Se a estratégia vai ser de sucesso é impossível saber. O fato é que sem alarde, Lula vai criando uma sucessora. E não só política, mas conceitual. O populismo brasileiro e a exacerbação narcisística dos líderes nacionais pode fazer com que nas próximas eleições, o Brasil venha a ver um confronto entre primeiras-damas. Janja e Michelle Bolsonaro, cogitada após a suspensão de direitos do ex-presidente Jair Bolsonaro, estão caminhando a passos largos para serem as herdeiras dos dois movimentos mais populares do Brasil. Para que Janja pudesse concorrer a uma eventual sucessão com Lula estando na função, seria necessário uma mudança de ordem Constitucional. Hoje, o art. 14, § 7º da Constituição aponta que o cônjuge do presidente da República é inelegível para qualquer cargo, a não ser que já estivesse nele e disputando a reeleição. Fato é que a polarização brasileira pode ganhar contornos femininos, por mais que estes contornos ainda carreguem o machismo, de serem elas levadas ao palco pela função social do matrimônio com os homens fortes da nação.

Opinião por Bruno Soller

Bruno Soller é estrategista eleitoral. Especializado em pesquisas de opinião pública, é graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, com especialização em Comunicação Política pela George Washington University. Trabalhou no governo federal, Câmara dos Deputados e Comissão Europeia.

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