Para compreender a rumorosa "reforma ministerial" promovida pelo presidente Jair Bolsonaro, é preciso juntar as partes, dar-lhes sentido, organizando-as em dois grupos. Um grupo é resultado de pressão e reação a erros em série cometidos pelo presidente e seu governo. Outro é tentativa de demonstrar força e emitir sinais capazes de, mais à frente, constranger e fazer recuar os que o pressionaram. No primeiro caso, Bolsonaro cedeu; no segundo, no seu modo peculiar de pensar Estado e política, busca contra-atacar.
O primeiro bloco reúne os ministérios da Saúde, Relações Exteriores, Secretaria de Governo e Casa Civil. Diz respeito ao desgaste causado pela má condução da pandemia e da economia; vincula-se ao fracasso do negacionismo bolsonarista. Nesse contexto, o Itamaraty -- complicador desenvolvido desde o primeiro dia de governo -- não tardou a tornar-se agravante, bloqueando o diálogo e pedidos de socorro do Brasil ao mundo.
Some-se a isso o aprofundamento da crise fiscal: recursos ainda mais escassos, disputados com maior disposição por agentes ainda mais vorazes, resultaram na lambança no Orçamento Geral da União 2021: as contas não fecham; faltarão recursos, é certo. Só não se sabe para quem. No estilo "farinha pouca, meu pirão primeiro", o Centrão preocupa-se com seu quinhão e que o governo honre acordos que lhe proporcionam maioria e "blindagem" no Congresso. Acautela-se para que, em véspera de eleição, as verbas do clientelismo cheguem ao destino. Arthur Lira lançou seu sinal amarelo também por isso.
Esse conjunto de fatores, obrigou Bolsonaro a promover alterações na Saúde, no MRE e na Secretaria de Governo e entregar as cabeças de seus diletos Eduardo Pazuello e Ernesto Araújo. Levou também a admitir Flávia Arruda como zelosa fiscal dos acordos assumidos na Comissão Mista do Orçamento, numa explícita a intervenção do Centrão no governo.
A segunda parte da reforma é ousada e voluntariosa tentativa de Bolsonaro reagir à primeira. Ele parece cansado da inevitável frustração do poder, da exiguidade de recursos e da realidade de pressões políticas que não lhe permitem se impor às instituições. Lança o olhar sobre órgãos que deveriam monopolizar o uso da força física: o ministério da Justiça, em suas atribuições com a Polícia Federal, liberação de armas e conexões com as PMs; o Ministério da Defesa na tentativa de alinhar as Forças Armadas a seus interesses; a Advocacia Geral da União, no enfrentamento a governadores e prefeitos; a opositores e até ao Supremo Tribunal Federal.
Instituições que, soube-se no processo, resistiam nos bastidores. Esse, por sinal, parece ser o aspecto positivo demonstrado nesses dias negativos: há instituições que resistem na defesa de seus papéis de Estado. Pois, Jair Bolsonaro tentou submeter a AGU e não conseguiu; tentou enquadrar o comandante do Exército e não conseguiu; e é provável que sua tentativa de controlar a PF, denunciada por Sérgio Moro, tampouco tenha se efetivado, mesmo após um ano.
Assim, as duas partes da reforma parecem se encontrar na complexidade de um paradoxo: se bem-sucedido em alinhar as instituições aos seus interesses, o presidente poderá, mais à frente, "dar a volta"; utilizá-las para reprimir e coagir os que hoje o pressionam e o fazem ceder em sua disposição e voluntarismo políticos.
Nada disso é simples: não se toma instituições mudando poucas cabeças. Ainda assim, a impressão que se consolida é que que Bolsonaro aceitou dar um passo atrás, mas igualmente sinalizou (de modo espalhafatoso) que também opera para dar saltos à frente.
Os recuos do presidente, são sempre assim: recolhimento e comedimento circunstanciais, temporários; antevéspera de novas tormentas. Na tentativa afobada de eliminar freios e contrapesos que o amarram democraticamente, desta vez não aguardou. Isso não interessa ao Centrão, cujas condições fundamentais de conforto e proliferação dependem da manutenção de posições eleitorais e da relativa fragilidade de um Executivo submetido ao sistema de trocas nos balcões do Legislativo. Se esse jogo fizer sentido, o Centrão já compreendeu o desenho no tabuleiro. Não tardará em mexer novas peças.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.