Com a vitória de Javier Milei à Presidência da Argentina, as preocupações sobre o futuro da sua democracia aumentaram. O risco seria de que Milei venha a se aproveitar de sua alta popularidade para concentrar ainda mais poderes e minar a capacidade das instituições de controle, como o Congresso e o Judiciário, de impor limites ao novo chefe do Executivo.
Entretanto, nem todo populista eleito consegue ser bem sucedido nas suas iniciativas iliberais de fragilizar as instituições democráticas. Na realidade, a grande maioria dos populistas eleitos tem falhado e, ao contrário das previsões pessimistas dos autores que argumentam a existência de uma recessão democrática no mundo, as democracias têm demonstrado grande resiliência institucional mesmo diante de ameaças de governantes autocráticos.
No artigo intitulado “Why do autocrats not always succeed in weakening democracy?”, que será apresentado na conferência “Four decades of the third wave of democratization in Latin America” na Universidad Torcuato Di Tella, Buenos Aires, nos dias 27 e 28 de novembro, eu e meus coautores (Marcus Melo e Gabriel Negretto) argumentamos que existem fatores político-institucionais chave que ajudam a explicar a resiliência de democracias a governos populistas.
Primeiro, é a existência de um sistema multipartidário plural e competitivo, no qual nem o partido do presidente nem o principal partido de oposição consigam sozinhos ser majoritários no Legislativo. Essa característica institucional cria uma estrutura de incentivos para que o governo eleito monte e gerencie coalizões para poder governar, o que estimula concessões, moderação e saídas negociadas para os conflitos e políticas implementadas. Além disso, aumenta as chances de alternância no poder e, ao mesmo tempo, reforça a existência de um padrão de competição em que o governo não tenha condições de neutralizar a oposição.
O segundo fator seria um legado de autonomia e de independência do Judiciário. O poder e a autoridade judicial não são construídos do dia para a noite. A força de juízes de Cortes Supremas para bloquear e/ou invalidar decisões que enfraqueçam as estruturas de peso e contrapeso e as proteções legais e políticas da oposição dependem do grau de vulnerabilidade do sistema judiciário no passado. A frequência com que a composição de tribunais superiores foi alterada e o número de vezes em que as decisões judiciais foram ignoradas pelos outros poderes é um importante indicador da sua capacidade de resistir a tentativas de retrocesso democrático.
Terceiro, a existência de divisões internas no partido governante. Iniciativas iliberais de populistas perdem força sem o apoio político consistente dos membros do partido do presidente. Isso normalmente ocorre quando existe alta competição pelo poder entre as variadas facções internas do partido do presidente, especialmente quando o líder populista foi incapaz de construir e/ou capturar uma organização partidária centralizada e personalizada em torno da sua imagem e influência pessoal, e quando lideranças alternativas podem emergir e se fortalecer.
Um quarto e importante elemento é a capacidade de mobilização da sociedade civil para reagir contra transgressões iliberais de líderes de perfil populista. Mobilizações sociais não são apenas importantes para demandar políticas de inclusão social, mas também para defender a proteção do Estado de Direito. A existência de organizações autônomas da sociedade civil é central em processos de resistência contra retrocessos democráticos, especialmente quando os partidos de oposição são fracos e divididos e quando as organizações de controle são incapazes de atuar.
A eleição que elegeu Milei para ser o novo presidente da Argentina também elegeu o Legislativo mais fragmentado desde 1983 no qual nenhuma força política será majoritária.
A aliança política “La Libertad Avanza”, do novo presidente eleito, aumentou consideravelmente a sua representação na Câmara dos Deputados (de 3 para 37) e também no Senado (de zero para 8), mas não o suficiente para ser majoritário nas casas legislativas. Na realidade, a Argentina nunca teve um presidente cujo partido ocupasse menos de 20% das cadeiras legislativas.
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Mesmo que consiga montar uma coalizão com a centro-direita, de Patrícia Bullrich e Mauricio Macri, provavelmente o governo Milei não teria maioria suficiente de cadeiras, pois nem todos os membros da coligação “Juntos por el Cambio”, que saiu esfacelada desse processo eleitoral, apoiaria o novo presidente. Precisamente, “Juntos por el Cambio” perderam espaço tanto na Câmara (de 118 para 93) como no Senado (de 33 para 24). Mesmo que minoritário, um governo de coalizão, que também seria uma novidade na Argentina, teria como um efeito potencial “domesticar” Milei, assim como a aliança com o Centrão “domesticou” Jair Bolsonaro no Brasil.
Embora os peronistas, sob a liderança de Sergio Massa da “Unión por la Pátria”, tenham sido derrotados para a Presidência, mantiveram uma representação expressiva na Câmara dos Deputados: por um lado, menor do que na atual legislatura (de 118 para 108); mas por outro lado, aumentou a sua representação no Senado (de 32 para 34). Ou seja, os interesses da oposição não poderão ser ignorados.
O novo presidente, entretanto, obteve um mandato da maioria do eleitorado para implementar sua agenda de reformas radicais. Milei sabe que para manter o apoio político de seu eleitorado precisa implementar algumas dessas reformas. Durante sua campanha, afirmou que faria uso de consultas diretas ao povo argentino via plebiscitos caso o Congresso oferecesse resistências para aprovar as suas reformas e projetos. Porém, a Constituição argentina prevê que consultas populares também devem ser aprovadas pelo Congresso.
Diante desses potenciais elementos de veto do sistema político argentino, o governo Milei, por um lado, perderá eficiência. Mas, por outro lado, ganhará mais estabilidade política e institucional, pois raramente suas propostas radicais e/ou extremas serão aprovadas e implementadas sem ajustes provenientes de longos processos de negociação e de barganha.