Políticos de perfil autocrata, sejam eles de esquerda ou de direita, governam quase que invariavelmente confrontando as instituições que lhes impõem restrições.
No jantar de lançamento do livro “Por que a democracia brasileira não morreu?”, que aconteceu na semana passada no restaurante Cícero Bistrot, em Lisboa, o Ministro Gilmar Mendes do STF, com quem tivemos a honra de interagir como debatedor no evento, destacou que o ex-presidente Jair Bolsonaro manteve estratégias distintas para lidar com o Legislativo e com o Judiciário.
De fato, no início de seu mandato, Bolsonaro desenvolveu uma estratégia conflituosa com o Legislativo, negando montar uma coalizão e preferindo desenvolver conexões diretas com os seus eleitores. Saiu, inclusive, do partido político pelo qual havia sido eleito e, de forma inusitada, governou por quase dois anos sem filiação partidária.
Mas, ao se fragilizar politicamente durante a pandemia, reviu essa estratégia e se aproximou do Congresso ao montar uma coalizão de sobrevivência com os partidos do Centrão. Essa decisão domesticou o ex-presidente ao jogo do presidencialismo de coalizão e, consequentemente, reduziu as chances de que uma agenda de políticas iliberais progredisse no Legislativo.
Por outro lado, pontes similares não foram construídas com o Judiciário. Praticamente durante todo o seu mandato, Bolsonaro desenvolveu uma relação de confronto aberto, especialmente com a Suprema Corte, que em vários momentos contrariou os interesses do governo.
Um bom exemplo foi a decisão do STF que garantiu a autonomia aos estados e municípios na definição de medidas de isolamento social durante a pandemia. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também foi alvo de investidas do ex-presidente, especialmente contra as urnas eletrônicas e a favor do retorno do voto impresso.
Bolsonaro fez uso explícito de retórica autocrática ao ameaçar não mais cumprir as decisões do Ministro do STF, Alexandre de Moraes. Chegou, inclusive, a requerer formalmente o impeachment do ministro e ameaçou fazer o mesmo com o ministro Luís Roberto Barroso.
Essa estratégia mista de cooperar com o Congresso, por um lado, mas confrontar o Judiciário, por outro, permitiu a Bolsonaro não correr riscos de ver seu mandato abreviado por um processo de impeachment no Legislativo. Contudo, cooperar com o Judiciário não traria benefícios políticos para o ex-presidente. Muito pelo contrário, ao atacar o Judiciário, Bolsonaro alimentava e agregava a sua base eleitoral mais radical e identitária com baixos riscos de perdas no curto prazo.