Com derrotas cada vez mais frequentes do Executivo na esfera legislativa, tem sido argumentado que o presidencialismo multipartidário, caracterizado por governos de coalizão, estaria em crise.
Mas quais seriam os indicadores de que um sistema político está em crise?
Seria quando o presidente enfrenta maiores derrotas no Legislativo? Quando a coalizão formada pelo presidente apresenta baixa coesão e disciplina como decorrência da alta fragmentação partidária? Ou ainda, seria quando parlamentares teriam capacidade de alocar uma parcela cada vez maior do orçamento público com políticas locais sem o ônus político de serem responsabilizados por eventuais fracassos na implementação de tais políticas, situação conhecida como “tragédia dos comuns”?
O governo Lula tem enfrentado (assim como o do ex-presidente Bolsonaro enfrentou) várias derrotas no Legislativo. Mas também alcançou várias vitórias expressivas, tais como a reforma tributária, novo arcabouço fiscal, Bolsa Família, Mais Médicos, igualdade salarial entre homens e mulheres, indicação de novos ministros para a Suprema Corte, manteve a discricionariedade no cronograma de execução das emendas dos parlamentares etc. Portanto, como não vivemos uma situação de “paralisia decisória”, a taxa de sucesso/insucesso do Executivo no Legislativo não é um bom preditor de crise do sistema.
Ao contrário do que se tem argumentado, a fragmentação partidária no Brasil diminuiu drasticamente. Chegou ao patamar mais alto de 30 partidos com pelo menos um assento na Câmara dos Deputados (16,4 partidos efetivos) em 2018. Entretanto, caiu acentuadamente para 19 partidos (9,27 partidos efetivos) como consequência das reformas nas regras eleitorais de 2017, notadamente o fim das coligações proporcionais.
A coesão partidária média de todos os partidos com representação no Legislativo se manteve em patamar elevadíssimo nas últimas duas décadas (0.89 pontos). Em 2023, primeiro ano do novo governo Lula foi de 0.87 pontos. O partido menos coeso da atual coalizão do presidente Lula, União Brasil, apresentou uma taxa de coesão de 0.72. Assim, a fragmentação e coesão partidária também não são bons indicadores de que o sistema político estaria em crise.
O que dizer do risco de o orçamento público vir a enfrentar disfuncionalidades em função de os legisladores terem cada vez maior influência individual na sua alocação? No livro seminal “Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Actions” Elinor Olstrom, laureada com o Nobel de economia em 2009, demonstra empiricamente soluções institucionais capazes de superar a “Tragédia dos Comuns”, situação na qual indivíduos, agindo de forma independente, racional e de acordo com seus próprios interesses, terminam por gerar consequências trágicas aos interesses coletivos.
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O processo orçamentário brasileiro é formado por um conjunto de regras e procedimentos institucionais muito específicos. Mesmo as emendas individuais e coletivas, que passaram a ser impositivas, precisam de um projeto técnico e serem aprovadas pelas instâncias legislativas e sancionadas pelo Executivo para fazerem parte da lei orçamentária. O Executivo ainda possui discricionariedade com relação ao timing de sua execução, podendo, assim, utilizá-lo estrategicamente em seu favor como moedas de troca com o Legislativo. Todo esse processo está sob o escrutínio dos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas. Além do mais, os parlamentares que alocarem mal as suas emendas, correm riscos de serem punidos eleitoralmente pelas suas redes locais de interesse e eleitores. Esse jogo não é, portanto, disfuncional nem ausente de responsabilização.
Os insucessos legislativos de presidentes estão, na realidade, relacionados às suas escolhas de como montar e gerenciar sua coalizão. Coalizões com um número muito alto de partidos, ideologicamente heterogêneos, não recompensados pelo presidente de forma proporcional ao seu tamanho e distantes da preferência agregada do Legislativo, como a do presidente Lula, vão gerar mais dificuldades governativas e, consequentemente, maiores derrotas.
Paradoxalmente, esse quadro tende a ser mais gravoso quando a disciplina e coesão partidária aumentam, pois os parlamentares membros da coalizão tendem a votar com o líder do partido e não necessariamente com os interesses da coalizão do presidente.