Durante o governo Bolsonaro, a grande maioria dos analistas políticos se alinhou à interpretação, até então dominante, de que as quebras democráticas não mais aconteceriam por meio de rupturas institucionais drásticas, golpes militares com tanques nas ruas, como era comum no século passado.
Tal interpretação, conhecida mundialmente como democratic backsliding, defende que retrocessos e eventuais derrocadas de democracias no século 21 são fruto de processos mais insidiosos, paradoxalmente iniciados pela eleição de presidentes populistas que, uma vez no poder, procuram concentrar ainda mais poderes e enfraquecer as estruturas e organizações capazes de controlar o próprio Executivo, como o Judiciário, o Ministério Público, a imprensa livre etc.
Essa expectativa, entretanto, se mostrou equivocada no caso brasileiro, que não teve a sua democracia nem fragilizada nem tampouco quebrada.
Tal equívoco interpretativo é consequência de os riscos à democracia brasileira terem sido avaliados apenas levando-se em consideração as iniciativas iliberais do agressor. Desconsideraram-se a capacidade de vigilância da sociedade civil, o legado deixado por eventos democráticos anteriores, bem como a capacidade de resiliência institucional às iniciativas iliberais de populistas eleitos. Projetos populistas iliberais de backsliding só vingam quando encontram um ambiente institucional frágil e sociedades desatentas.
Como a quebra da democracia por backsliding não se verificou, argumenta-se agora que a sobrevivência da democracia brasileira somente foi possível porque os comandantes militares não aderiam ao projeto do golpe e se mantiveram leais à Constituição...
8 de Janeiro
J.R.Guzzo: Celebração do 8 de Janeiro acabou sendo uma cena de comédia com discursos de Lula e Moraes
Carlos Pereira: Apesar das ameaças de Bolsonaro e dos incidentes de 8/1, a democracia brasileira não se fragilizou
Eliane Cantanhêde: Golpe foi arquitetado antes mesmo da eleição de 2018, mas não vingou. A democracia foi mais forte
Diz-se até que essa sobrevida da democracia teria sido consequência da sapiência da primeira-dama, Janja, que teria convencido seu marido a não decretar uma GLO, que fatalmente entregaria o poder de mão beijada a militares golpistas após os atos antidemocráticos de 8 de janeiro... ou mesmo porque o ministro Alexandre de Moraes agiu de forma firme e implacável como paladino da democracia...
Alardeia-se que o resultado teria sido outro se não fosse a conduta individual desses “verdadeiros heróis” da democracia no Brasil.
Mas o grande herói da defesa da democracia brasileira não foram indivíduos, mas as suas instituições políticas, uma peculiar combinação de presidencialismo, multipartidarismo e organizações de controle fortes e independentes que têm servido como antídotos contra iniciativas iliberais e autoritárias de populistas eleitos, independentemente da sua coloração ideológica.
Os rompantes autoritários no Brasil, que teve no 8 de Janeiro a sua expressão mais explícita, se parecem muito mais com o último suspiro de grupos delirantes e saudosistas da ditadura. Ou seja, significaram o ocaso ou o esgotamento das esperanças de um projeto autoritário que não tinha as mínimas condições de vingar em uma democracia sofisticada e consolidada como a brasileira.