BRASÍLIA – O Senado discute uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pode conceder “bônus” na remuneração das carreiras da magistratura e do Ministério Público, o chamado quinquênio. Caso passe pelo crivo do Congresso Nacional, a proposta pode trazer um impacto anual de R$ 40 bilhões, a depender da possibilidade de outras carreiras serem beneficiadas. A estimativa é do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O texto que tramita no Congresso estabelece um acréscimo de 5% nos salários a cada cinco anos, até o limite de 35%. O valor será pago sem ser computado dentro do limite do teto salarial que um funcionário público pode receber por mês. Hoje, esse valor é o equivalente à remuneração de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), R$ 44.008,52.
Na justificativa da PEC 10/2023, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), defende que o quinquênio é uma forma de valorizar as carreiras do Judiciário e do Ministério Público, evitando que profissionais desistam de ingressar no serviço público. “Nós não podemos permitir que bons magistrados vocacionados queiram sair das suas carreiras para irem para a iniciativa privada, para a política ou para o exterior porque a atividade da vocação deles deixou de ser atrativa”, afirmou.
Com esse cenário, o Estadão listou os principais argumentos contra a aprovação da PEC do Quinquênio:
Aumento da desigualdade no serviço público e no País
A vice-presidente do Instituto República.Org, Vera Monteira, avalia que, caso seja aprovada, a PEC do Quinquênio vai aprofundar a desigualdade de renda entre servidores públicos.
“A base ganha muito pouco e é quem trabalha na área da saúde, da educação, da assistência social. Essa PEC faz com que essa pirâmide, que já é muito ruim, piore. Isso vai na contramão de qualquer proposta de transformação do Estado”, disse ao Estadão.
O Ministério da Fazenda estima que o custo anual do penduricalho concedido para integrantes do Judiciário e do Ministério Público pode chegar a R$ 40 bilhões. Esse montante, que supera o orçamento de pastas do governo federal, deve ser pago a um universo restrito de servidores, destaca Vera. Levantamento realizado pela República.Org contabiliza 11 milhões de servidores públicos em atividade no País. Na magistratura, uma das carreiras atingidas pela PEC, o contingente de profissionais é de pouco mais de 18 mil servidores ativos, segundo dados de 2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Wagner Lenhart, diretor-executivo do Instituto Millenium, destaca que a PEC aumenta os vencimentos da elite do funcionalismo público num contexto de tentativa de ajuste fiscal.
“A gente não pode esquecer que vivemos num País de renda média baixa, que tem diversos problemas sociais, onde quem recebe R$ 7 mil já é enquadrado entre os 10% mais ricos. Num cenário como esse, uma proposta que traz esse tipo de benefício para pessoas que têm níveis remuneratórios muito mais altos não parece fazer qualquer sentido e, se aprovada, mais uma vez a maioria mais pobre e que não tem poder de lobby vai pagar a conta”, afirmou.
Furo no teto salarial do Poder Judiciário previsto na Constituição
“A PEC é um fura teto, na medida em que está estabelecido que esse valor do quinquênio não entra no teto remuneratório dos ministros do STF”, defendeu Antonio Carlos Jr, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP). Ele explicou que o quinquênio produz um incremento salarial que não se enquadra como parte do “subsídio”, que é o salário recebido pelos membros do Poder Judiciário.
Segundo Vera Monteiro, a medida cria um “novo” teto salarial ainda mais alto do que o atual de R$ 44 mil para as carreiras beneficiadas. Ela afirma que o aumento de 5% a cada cinco anos será pago somente às carreiras beneficiadas pela PEC, enquanto os demais servidores públicos continuarão submetidos ao teto constitucional.
PEC vai na contramão da reforma administrativa
“Isso vai na contramão de qualquer proposta de transformação do Estado e reforma administrativa que gere melhoria na qualidade do serviço público. Não dá pra falar em reforma administrativa com uma PEC como essa. Isso aqui é a contrarreforma”, disse Vera Monteiro.
A vice-presidente do República.Org argumenta que a PEC do Quinquênio turbina os gastos do Poder Judiciário com pessoal. Esse tipo de despesa consome a maior fatia dos recursos atualmente.
“No fundo, estamos falando da alocação eficiente de recursos. Quando você estabelece o orçamento do Judiciário, é o Poder que vai decidir como gerir esse dinheiro. Se ele quer gastar 100% do orçamento com salário, a decisão é dele”, destacou Vera.
Os dados do CNJ mostram que o Poder Judiciário atuou com o orçamento de R$ 119 bilhões em 2022. Naquele ano foram empenhados R$ 118 bilhões – ou seja, dinheiro que foi destinado a alguma despesa –, dos quais R$ 72 bilhões foram direcionados apenas para o pagamento de pessoal ativo. Esse valor corresponde a 61% dos gastos dos tribunais do País. Ainda há outras despesas com servidores, como o pagamento de pensões e remuneração de membros inativos. Os investimentos, em contrapartida, somaram pouco mais de R$ 2 bilhões em 2022 – cerca de 1,6% do orçamento.
Premiação pelo quinquênio desafia gestão de pessoas eficiente na administração pública
Lenhart argumenta que a lógica do quinquênio de premiar os servidores pelo tempo de trabalho afronta os princípios da gestão de pessoas eficiente, que, segundo ele, deveria prezar por “produtividade, comprometimento, entrega e avaliação de desempenho”.
De acordo com ele, a PEC provoca um efeito “contraprodutivo” na administração pública e, por consequência, retrocessos. “Vai na contramão daquele que deveria ser um processo de modernização do Estado”, afirmou.
PL dos Supersalários não neutraliza riscos da PEC do Quinquênio
Na legislatura passada, Pacheco atendeu a um pedido do então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, para pautar o “bônus” de cinco anos no Senado. Em novembro de 2022, o presidente do Senado disse que a PEC só seria promulgada após a aprovação do fim dos supersalários, mas agora deu tratamento diferente para as duas medidas.
“Não haverá uma coisa sem a outra, de modo que isso significaria a reestruturação da carreira para evitar uma distorção que existe hoje de magistrados, ao final de carreira, percebendo remunerações menores do que os que iniciam as suas carreiras e evitando que verbas indenizatórias sejam criadas para além do que é o razoável”, afirmou Pacheco em pronunciado no Senado naquela data.
Nas últimas semanas, o presidente do Senado reforçou que pretende avançar com as duas propostas, mas não deu um prazo para a votação do fim dos supersalários.
Vera Monteiro explica que, diferentemente do que é pregado por Pacheco, “uma coisa não tem nada a ver com a outra”. “Vota-se primeiro a PEC do Quinquênio para depois votar o PL dos Supersalários. São duas coisas completamente diferentes, uma coisa não tem nada a ver com a outra, e estão colocando tudo no mesmo bolo”, disse.
A vice-presidente do República.Org explica que o Projeto de Lei (PL) dos Supersalários cria uma regra para disciplinar o pagamento de verbas indenizatórias, também conhecidos como penduricalhos. O texto determinará quais benefícios são válidos e de que forma serão pago. Já a PEC do Quinquênio trata da remuneração dos integrantes do Poder Judiciário e prevê aumento de 5% nos vencimentos desses profissionais a cada cinco anos de trabalho. Portanto, enquanto um projeto corta despesas, o outro faz elas crescerem.