Cultura do extermínio se amplifica após 30 anos das chacinas da Candelária e Haximu


Massacres ocorridos no centro do Rio e na floresta amazônica, em julho de 1993, são capítulos de uma história contínua de matanças e agora de agressividade nas redes sociais e busca de curtidas a qualquer custo

Por Leonencio Nossa

Neste domingo, o País deveria lembrar os mortos de duas chacinas que revelam muito sobre o que somos. As memórias dos massacres de jovens em frente à Candelária, no Rio, e de adultos e crianças na aldeia indígena de Haximu, na fronteira de Brasil e Venezuela, ocorridos quase em sincronia, se perdem no turbilhão de embates verbais e físicos da semana que seguem a mesma lógica da cultura perene de extermínio do outro.

Os massacres são histórias afastadas na geografia e aproximadas na barbárie. Na manhã de 23 de julho de 1993, 12 yanomamis foram mortos a tiros e a golpes de facão por garimpeiros brasileiros na mata, no lado venezuelano. “Amigo garimpeiro”, suplicou um indígena diante da arma. À noite, oito moradores de rua, de 11 a 19 anos, tiveram os corpos crivados por balas disparadas por um grupo de extermínio, a 3.500 quilômetros dali, no centro do Rio e no Aterro do Flamengo.

A Justiça chegou a condenar cinco garimpeiros por genocídio. Quatro deles ficaram 14 anos presos. No Rio, sete envolvidos no massacre da Candelária foram a julgamento. Um deles recebeu sentença de 300 anos de prisão. Mas todos acabaram soltos.

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Quatro foram mortos a tiros ali mesmo Foto: Fabio Motta/AE

Matar para limpar território é prática na floresta e na cidade. É o recurso da legião que avança pela mata, ponta de lança da frente econômica, ou atua como força de segurança nas metrópoles sem ordem direta das cúpulas das polícias. Há nela também a cultura do extermínio: o jovem que atira pedra, cheira cola ou comete furto deve morrer e o indígena que “atrapalha” o garimpo precisa ser executado.

Por volta de meia noite, homens armados saltaram de dois veículos estacionados perto da Candelária e atiraram em mais de 40 crianças e jovens que dormiam no local. Mataram seis deles. Outros três seriam presos e dois deles mortos no Aterro do Flamengo. Um sobreviveu para contar a história e está até agora escondido.  Foto: ESTADÃO CONTEUDO / ESTADÃO CONTEUDO
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O número de assassinados nos últimos 30 anos permite a visualização de algumas milhares de Candelárias e Haximus. Mais recentemente, no governo Bolsonaro, os yanomamis voltaram a enfrentar a violência do garimpo. As imagens de crianças desnutridas correram o mundo. O debate sobre violência brasileira, porém, é um barco que segue pelo raso do rio, como se a questão não envolvesse águas que arrastam as pedras do fundo – o investimento na educação, a estrutura do Estado, a renda nos municípios pobres da Amazônia e nas periferias e a discussão pública, que hoje ocorre a partir das redes sociais.

O País universalizou o ensino, estabilizou a economia e mostrou-se resistente a governo com discurso contra a vacina. Nem tudo está perdido. Um presidente pode perder a reeleição se aliados próximos resolverem sair armados para disparar contra policiais federais ou perseguir um homem nas ruas dos Jardins. Entretanto, algo daquele Brasil da Candelária e de Haximu resiste. Basta ver a demora do processo do Marco Temporal, que não reconhece o direito à terra aos que estavam expulsos dela na promulgação da Constituição. Ou a incapacidade do Poder Público de incentivar formas de tirar jovens da pobreza nos centros urbanos.

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Um país agressivo ganhou maior visibilidade na era digital. Impossível não perceber agora de forma tão nítida uma cultura que imbrica crime, violência extrema, impunidade, oportunismo e malandragem, além do velho narcisismo. Essa cultura está bem próxima de nós, e não apenas no lugar distante. Ela se alimenta de pequenos gestos, se concretiza em situações aparentemente triviais.

Floresta de Roraima, divisa com a Venezuela. Um grupo de mais de 20 homens entraram na aldeia de Haximiu e assassinaram quatro adultos, três adolescentes e cinco crianças, uma delas de colo. Um outro menino levou um tiro no olho direito e sobreviveu. Foto: REUTERS / REUTERS

Nestes dias, um pastor que organizava motociatas foi às redes para agredir o ex-ministro da Economia Paulo Guedes. Mudou o governo, mas o homem continua lacrando com palavras raivosas, agora sendo curtido pela militância que ele atacava. Ataques verbais geram engajamentos nas redes e incentivam garrafadas e mortes estúpidas. Recentemente, uma torcedora do Palmeiras foi morta na fila para entrar no estádio.

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Atos corriqueiros da política expõem a cultura de destruir o outro. Após visitar o presidente Lula e o ministro da Secom, Paulo Pimenta, o ex-deputado Jean Wyllys foi para o Twitter dizer que o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, era um “gay com homofobia internalizada” porque decidiu manter no Estado as escolas cívico-militares. O Ministério da Educação havia acabado com o programa. Pesquisadores disseram que essas escolas excluíam alunos que divergiam do modelo e lideranças estudantis aproveitaram para cobrar investimento na educação em geral. Ao contrário deles, Jean Wyllys não queria debater o ensino.

Eduardo Leite apontou o preconceito. O caso foi tratado como bate-boca ou disputa de terreno eleitoral. Não era isso. Quando Jean Wyllys estava na Espanha, num autoexílio forçado pelo ódio bolsonarista, o governador enfrentava uma das campanhas mais sórdidas da história política brasileira. A cena em que o adversário Ônix Lorenzoni se recusa a apertar a mão de Leite no final de um debate ilustrará por anos a cultura de não reconhecer o outro. Numa nota, o diretório do PT gaúcho, liderado por Paulo Pimenta, declarou voto “crítico” no tucano. Não quis flertar com a infâmia.

Um governador tem atribuição para decidir sobre escolas. Ele deve conhecer o perfil de seus governados. Não deve ser fácil ser linchado nas redes por uma turba e ter que sair do País – Marielle Franco e Anderson Gomes tinham sido assassinados por motivos políticos. Também não deve ser confortável governar um Estado tendo que responder todos os dias por sua preferência sexual. Até o momento, o Planalto não deu emprego para Jean Wyllys. A nota de Pimenta continua valendo.

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A propósito, o MEC tem gente capacitada para avaliar tipos de ensino. Mas será que não faltou um pouco de cuidado no trecho da nota sobre as escolas cívico-militares que aponta “desvio de finalidade das atividades das Forças Armadas”? Pode parecer que nem todos precisam ter responsabilidade com a educação.

Não é uma associação simplória de barbáries físicas e virtuais. As redes tornaram possíveis algumas das tragédias do pós-Candelária. A Chacina do Facebook, em Belém, em 2014, foi uma delas. Numa reação à morte de um agente, um grupo combinou pela plataforma sair pelas quebradas e matar quem encontrasse pela frente. Aliás, foi pelas redes que se montou a tentativa de golpe de 8 de janeiro. E, agora, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e sua família foram atacados, em Roma, por gente feroz que transferiu seu ódio da internet para o aeroporto.

A punição tem um caráter didático, por isso a importância da sobriedade. Num evento de estudantes, o professor e também ministro da Corte Luís Roberto Barroso comemorou a “derrota” do bolsonarismo. Mais tarde, disse que não pretendia ofender eleitores. Só não explicou ainda a declaração, pronunciada em 2020, de que o TSE não tinha nada a ver com a questão dos assassinatos na política.

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Não é só ele que ainda mergulha raso, ao menos no problema dos crimes por motivações políticas. Lula e o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciaram nesta sexta, 21, um pacote de mudanças no Código Penal que prevê penas duras para quem atentar contra a vida de presidente da República, vice, ministro do Supremo e chefes da Câmara e do Senado. Quem mais morre na área é vereador, prefeito e candidatos nos municípios.

A cultura de destruir o outro mudou até a comparação de tempos. Trocamos o hábito ingênuo de olhar para o passado como um porto seguro pela criminalização de tudo o que vivemos, de nossas memórias afetivas. No anúncio dos documentários sobre Balão Mágico e Xuxa, ícones infantis dos anos 1980 e 1990, alguém escreveu que aquele foi um tempo sem filtro e uma gincana de depredação da infância. As produções mostram que até os ídolos foram vítimas da indústria do entretenimento e do processo de construção de país. Mas, se olharmos com rancor pelo retrovisor – ao som inclusive de Djavan – podemos acreditar que os maiores problemas das crianças, na floresta e na cidade, eram causados por artistas e produtores de TV. Quem se dispõe a furar a mágica do balão sem um contexto esqueceu de falar da criança de hoje, impactada pela vida sempre positiva e fantástica de coleguinhas expostas nas redes das famílias dos amigos. A escola da internet, agressiva e consumista, também captura os pequenos.

O educador Paulo Freire é bastante citado nestes tempos de polarização. Pena que poucos leram seus livros. Pedagogia do oprimido não poupa sectários de direita e esquerda. Critica práticas individualistas e propõe uma escola a partir do diálogo. “Muitos, porém”, escreve ele, “terminam usando, na sua ação, métodos que são empregados na ‘educação’ que serve ao opressor”. “Negam a ação pedagógica no processo de libertação, mas usam a propaganda para convencer”, ressalta. “Os homens se libertam em comunhão.”

Neste domingo, o País deveria lembrar os mortos de duas chacinas que revelam muito sobre o que somos. As memórias dos massacres de jovens em frente à Candelária, no Rio, e de adultos e crianças na aldeia indígena de Haximu, na fronteira de Brasil e Venezuela, ocorridos quase em sincronia, se perdem no turbilhão de embates verbais e físicos da semana que seguem a mesma lógica da cultura perene de extermínio do outro.

Os massacres são histórias afastadas na geografia e aproximadas na barbárie. Na manhã de 23 de julho de 1993, 12 yanomamis foram mortos a tiros e a golpes de facão por garimpeiros brasileiros na mata, no lado venezuelano. “Amigo garimpeiro”, suplicou um indígena diante da arma. À noite, oito moradores de rua, de 11 a 19 anos, tiveram os corpos crivados por balas disparadas por um grupo de extermínio, a 3.500 quilômetros dali, no centro do Rio e no Aterro do Flamengo.

A Justiça chegou a condenar cinco garimpeiros por genocídio. Quatro deles ficaram 14 anos presos. No Rio, sete envolvidos no massacre da Candelária foram a julgamento. Um deles recebeu sentença de 300 anos de prisão. Mas todos acabaram soltos.

Quatro foram mortos a tiros ali mesmo Foto: Fabio Motta/AE

Matar para limpar território é prática na floresta e na cidade. É o recurso da legião que avança pela mata, ponta de lança da frente econômica, ou atua como força de segurança nas metrópoles sem ordem direta das cúpulas das polícias. Há nela também a cultura do extermínio: o jovem que atira pedra, cheira cola ou comete furto deve morrer e o indígena que “atrapalha” o garimpo precisa ser executado.

Por volta de meia noite, homens armados saltaram de dois veículos estacionados perto da Candelária e atiraram em mais de 40 crianças e jovens que dormiam no local. Mataram seis deles. Outros três seriam presos e dois deles mortos no Aterro do Flamengo. Um sobreviveu para contar a história e está até agora escondido.  Foto: ESTADÃO CONTEUDO / ESTADÃO CONTEUDO

O número de assassinados nos últimos 30 anos permite a visualização de algumas milhares de Candelárias e Haximus. Mais recentemente, no governo Bolsonaro, os yanomamis voltaram a enfrentar a violência do garimpo. As imagens de crianças desnutridas correram o mundo. O debate sobre violência brasileira, porém, é um barco que segue pelo raso do rio, como se a questão não envolvesse águas que arrastam as pedras do fundo – o investimento na educação, a estrutura do Estado, a renda nos municípios pobres da Amazônia e nas periferias e a discussão pública, que hoje ocorre a partir das redes sociais.

O País universalizou o ensino, estabilizou a economia e mostrou-se resistente a governo com discurso contra a vacina. Nem tudo está perdido. Um presidente pode perder a reeleição se aliados próximos resolverem sair armados para disparar contra policiais federais ou perseguir um homem nas ruas dos Jardins. Entretanto, algo daquele Brasil da Candelária e de Haximu resiste. Basta ver a demora do processo do Marco Temporal, que não reconhece o direito à terra aos que estavam expulsos dela na promulgação da Constituição. Ou a incapacidade do Poder Público de incentivar formas de tirar jovens da pobreza nos centros urbanos.

Um país agressivo ganhou maior visibilidade na era digital. Impossível não perceber agora de forma tão nítida uma cultura que imbrica crime, violência extrema, impunidade, oportunismo e malandragem, além do velho narcisismo. Essa cultura está bem próxima de nós, e não apenas no lugar distante. Ela se alimenta de pequenos gestos, se concretiza em situações aparentemente triviais.

Floresta de Roraima, divisa com a Venezuela. Um grupo de mais de 20 homens entraram na aldeia de Haximiu e assassinaram quatro adultos, três adolescentes e cinco crianças, uma delas de colo. Um outro menino levou um tiro no olho direito e sobreviveu. Foto: REUTERS / REUTERS

Nestes dias, um pastor que organizava motociatas foi às redes para agredir o ex-ministro da Economia Paulo Guedes. Mudou o governo, mas o homem continua lacrando com palavras raivosas, agora sendo curtido pela militância que ele atacava. Ataques verbais geram engajamentos nas redes e incentivam garrafadas e mortes estúpidas. Recentemente, uma torcedora do Palmeiras foi morta na fila para entrar no estádio.

Atos corriqueiros da política expõem a cultura de destruir o outro. Após visitar o presidente Lula e o ministro da Secom, Paulo Pimenta, o ex-deputado Jean Wyllys foi para o Twitter dizer que o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, era um “gay com homofobia internalizada” porque decidiu manter no Estado as escolas cívico-militares. O Ministério da Educação havia acabado com o programa. Pesquisadores disseram que essas escolas excluíam alunos que divergiam do modelo e lideranças estudantis aproveitaram para cobrar investimento na educação em geral. Ao contrário deles, Jean Wyllys não queria debater o ensino.

Eduardo Leite apontou o preconceito. O caso foi tratado como bate-boca ou disputa de terreno eleitoral. Não era isso. Quando Jean Wyllys estava na Espanha, num autoexílio forçado pelo ódio bolsonarista, o governador enfrentava uma das campanhas mais sórdidas da história política brasileira. A cena em que o adversário Ônix Lorenzoni se recusa a apertar a mão de Leite no final de um debate ilustrará por anos a cultura de não reconhecer o outro. Numa nota, o diretório do PT gaúcho, liderado por Paulo Pimenta, declarou voto “crítico” no tucano. Não quis flertar com a infâmia.

Um governador tem atribuição para decidir sobre escolas. Ele deve conhecer o perfil de seus governados. Não deve ser fácil ser linchado nas redes por uma turba e ter que sair do País – Marielle Franco e Anderson Gomes tinham sido assassinados por motivos políticos. Também não deve ser confortável governar um Estado tendo que responder todos os dias por sua preferência sexual. Até o momento, o Planalto não deu emprego para Jean Wyllys. A nota de Pimenta continua valendo.

A propósito, o MEC tem gente capacitada para avaliar tipos de ensino. Mas será que não faltou um pouco de cuidado no trecho da nota sobre as escolas cívico-militares que aponta “desvio de finalidade das atividades das Forças Armadas”? Pode parecer que nem todos precisam ter responsabilidade com a educação.

Não é uma associação simplória de barbáries físicas e virtuais. As redes tornaram possíveis algumas das tragédias do pós-Candelária. A Chacina do Facebook, em Belém, em 2014, foi uma delas. Numa reação à morte de um agente, um grupo combinou pela plataforma sair pelas quebradas e matar quem encontrasse pela frente. Aliás, foi pelas redes que se montou a tentativa de golpe de 8 de janeiro. E, agora, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e sua família foram atacados, em Roma, por gente feroz que transferiu seu ódio da internet para o aeroporto.

A punição tem um caráter didático, por isso a importância da sobriedade. Num evento de estudantes, o professor e também ministro da Corte Luís Roberto Barroso comemorou a “derrota” do bolsonarismo. Mais tarde, disse que não pretendia ofender eleitores. Só não explicou ainda a declaração, pronunciada em 2020, de que o TSE não tinha nada a ver com a questão dos assassinatos na política.

Não é só ele que ainda mergulha raso, ao menos no problema dos crimes por motivações políticas. Lula e o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciaram nesta sexta, 21, um pacote de mudanças no Código Penal que prevê penas duras para quem atentar contra a vida de presidente da República, vice, ministro do Supremo e chefes da Câmara e do Senado. Quem mais morre na área é vereador, prefeito e candidatos nos municípios.

A cultura de destruir o outro mudou até a comparação de tempos. Trocamos o hábito ingênuo de olhar para o passado como um porto seguro pela criminalização de tudo o que vivemos, de nossas memórias afetivas. No anúncio dos documentários sobre Balão Mágico e Xuxa, ícones infantis dos anos 1980 e 1990, alguém escreveu que aquele foi um tempo sem filtro e uma gincana de depredação da infância. As produções mostram que até os ídolos foram vítimas da indústria do entretenimento e do processo de construção de país. Mas, se olharmos com rancor pelo retrovisor – ao som inclusive de Djavan – podemos acreditar que os maiores problemas das crianças, na floresta e na cidade, eram causados por artistas e produtores de TV. Quem se dispõe a furar a mágica do balão sem um contexto esqueceu de falar da criança de hoje, impactada pela vida sempre positiva e fantástica de coleguinhas expostas nas redes das famílias dos amigos. A escola da internet, agressiva e consumista, também captura os pequenos.

O educador Paulo Freire é bastante citado nestes tempos de polarização. Pena que poucos leram seus livros. Pedagogia do oprimido não poupa sectários de direita e esquerda. Critica práticas individualistas e propõe uma escola a partir do diálogo. “Muitos, porém”, escreve ele, “terminam usando, na sua ação, métodos que são empregados na ‘educação’ que serve ao opressor”. “Negam a ação pedagógica no processo de libertação, mas usam a propaganda para convencer”, ressalta. “Os homens se libertam em comunhão.”

Neste domingo, o País deveria lembrar os mortos de duas chacinas que revelam muito sobre o que somos. As memórias dos massacres de jovens em frente à Candelária, no Rio, e de adultos e crianças na aldeia indígena de Haximu, na fronteira de Brasil e Venezuela, ocorridos quase em sincronia, se perdem no turbilhão de embates verbais e físicos da semana que seguem a mesma lógica da cultura perene de extermínio do outro.

Os massacres são histórias afastadas na geografia e aproximadas na barbárie. Na manhã de 23 de julho de 1993, 12 yanomamis foram mortos a tiros e a golpes de facão por garimpeiros brasileiros na mata, no lado venezuelano. “Amigo garimpeiro”, suplicou um indígena diante da arma. À noite, oito moradores de rua, de 11 a 19 anos, tiveram os corpos crivados por balas disparadas por um grupo de extermínio, a 3.500 quilômetros dali, no centro do Rio e no Aterro do Flamengo.

A Justiça chegou a condenar cinco garimpeiros por genocídio. Quatro deles ficaram 14 anos presos. No Rio, sete envolvidos no massacre da Candelária foram a julgamento. Um deles recebeu sentença de 300 anos de prisão. Mas todos acabaram soltos.

Quatro foram mortos a tiros ali mesmo Foto: Fabio Motta/AE

Matar para limpar território é prática na floresta e na cidade. É o recurso da legião que avança pela mata, ponta de lança da frente econômica, ou atua como força de segurança nas metrópoles sem ordem direta das cúpulas das polícias. Há nela também a cultura do extermínio: o jovem que atira pedra, cheira cola ou comete furto deve morrer e o indígena que “atrapalha” o garimpo precisa ser executado.

Por volta de meia noite, homens armados saltaram de dois veículos estacionados perto da Candelária e atiraram em mais de 40 crianças e jovens que dormiam no local. Mataram seis deles. Outros três seriam presos e dois deles mortos no Aterro do Flamengo. Um sobreviveu para contar a história e está até agora escondido.  Foto: ESTADÃO CONTEUDO / ESTADÃO CONTEUDO

O número de assassinados nos últimos 30 anos permite a visualização de algumas milhares de Candelárias e Haximus. Mais recentemente, no governo Bolsonaro, os yanomamis voltaram a enfrentar a violência do garimpo. As imagens de crianças desnutridas correram o mundo. O debate sobre violência brasileira, porém, é um barco que segue pelo raso do rio, como se a questão não envolvesse águas que arrastam as pedras do fundo – o investimento na educação, a estrutura do Estado, a renda nos municípios pobres da Amazônia e nas periferias e a discussão pública, que hoje ocorre a partir das redes sociais.

O País universalizou o ensino, estabilizou a economia e mostrou-se resistente a governo com discurso contra a vacina. Nem tudo está perdido. Um presidente pode perder a reeleição se aliados próximos resolverem sair armados para disparar contra policiais federais ou perseguir um homem nas ruas dos Jardins. Entretanto, algo daquele Brasil da Candelária e de Haximu resiste. Basta ver a demora do processo do Marco Temporal, que não reconhece o direito à terra aos que estavam expulsos dela na promulgação da Constituição. Ou a incapacidade do Poder Público de incentivar formas de tirar jovens da pobreza nos centros urbanos.

Um país agressivo ganhou maior visibilidade na era digital. Impossível não perceber agora de forma tão nítida uma cultura que imbrica crime, violência extrema, impunidade, oportunismo e malandragem, além do velho narcisismo. Essa cultura está bem próxima de nós, e não apenas no lugar distante. Ela se alimenta de pequenos gestos, se concretiza em situações aparentemente triviais.

Floresta de Roraima, divisa com a Venezuela. Um grupo de mais de 20 homens entraram na aldeia de Haximiu e assassinaram quatro adultos, três adolescentes e cinco crianças, uma delas de colo. Um outro menino levou um tiro no olho direito e sobreviveu. Foto: REUTERS / REUTERS

Nestes dias, um pastor que organizava motociatas foi às redes para agredir o ex-ministro da Economia Paulo Guedes. Mudou o governo, mas o homem continua lacrando com palavras raivosas, agora sendo curtido pela militância que ele atacava. Ataques verbais geram engajamentos nas redes e incentivam garrafadas e mortes estúpidas. Recentemente, uma torcedora do Palmeiras foi morta na fila para entrar no estádio.

Atos corriqueiros da política expõem a cultura de destruir o outro. Após visitar o presidente Lula e o ministro da Secom, Paulo Pimenta, o ex-deputado Jean Wyllys foi para o Twitter dizer que o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, era um “gay com homofobia internalizada” porque decidiu manter no Estado as escolas cívico-militares. O Ministério da Educação havia acabado com o programa. Pesquisadores disseram que essas escolas excluíam alunos que divergiam do modelo e lideranças estudantis aproveitaram para cobrar investimento na educação em geral. Ao contrário deles, Jean Wyllys não queria debater o ensino.

Eduardo Leite apontou o preconceito. O caso foi tratado como bate-boca ou disputa de terreno eleitoral. Não era isso. Quando Jean Wyllys estava na Espanha, num autoexílio forçado pelo ódio bolsonarista, o governador enfrentava uma das campanhas mais sórdidas da história política brasileira. A cena em que o adversário Ônix Lorenzoni se recusa a apertar a mão de Leite no final de um debate ilustrará por anos a cultura de não reconhecer o outro. Numa nota, o diretório do PT gaúcho, liderado por Paulo Pimenta, declarou voto “crítico” no tucano. Não quis flertar com a infâmia.

Um governador tem atribuição para decidir sobre escolas. Ele deve conhecer o perfil de seus governados. Não deve ser fácil ser linchado nas redes por uma turba e ter que sair do País – Marielle Franco e Anderson Gomes tinham sido assassinados por motivos políticos. Também não deve ser confortável governar um Estado tendo que responder todos os dias por sua preferência sexual. Até o momento, o Planalto não deu emprego para Jean Wyllys. A nota de Pimenta continua valendo.

A propósito, o MEC tem gente capacitada para avaliar tipos de ensino. Mas será que não faltou um pouco de cuidado no trecho da nota sobre as escolas cívico-militares que aponta “desvio de finalidade das atividades das Forças Armadas”? Pode parecer que nem todos precisam ter responsabilidade com a educação.

Não é uma associação simplória de barbáries físicas e virtuais. As redes tornaram possíveis algumas das tragédias do pós-Candelária. A Chacina do Facebook, em Belém, em 2014, foi uma delas. Numa reação à morte de um agente, um grupo combinou pela plataforma sair pelas quebradas e matar quem encontrasse pela frente. Aliás, foi pelas redes que se montou a tentativa de golpe de 8 de janeiro. E, agora, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e sua família foram atacados, em Roma, por gente feroz que transferiu seu ódio da internet para o aeroporto.

A punição tem um caráter didático, por isso a importância da sobriedade. Num evento de estudantes, o professor e também ministro da Corte Luís Roberto Barroso comemorou a “derrota” do bolsonarismo. Mais tarde, disse que não pretendia ofender eleitores. Só não explicou ainda a declaração, pronunciada em 2020, de que o TSE não tinha nada a ver com a questão dos assassinatos na política.

Não é só ele que ainda mergulha raso, ao menos no problema dos crimes por motivações políticas. Lula e o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciaram nesta sexta, 21, um pacote de mudanças no Código Penal que prevê penas duras para quem atentar contra a vida de presidente da República, vice, ministro do Supremo e chefes da Câmara e do Senado. Quem mais morre na área é vereador, prefeito e candidatos nos municípios.

A cultura de destruir o outro mudou até a comparação de tempos. Trocamos o hábito ingênuo de olhar para o passado como um porto seguro pela criminalização de tudo o que vivemos, de nossas memórias afetivas. No anúncio dos documentários sobre Balão Mágico e Xuxa, ícones infantis dos anos 1980 e 1990, alguém escreveu que aquele foi um tempo sem filtro e uma gincana de depredação da infância. As produções mostram que até os ídolos foram vítimas da indústria do entretenimento e do processo de construção de país. Mas, se olharmos com rancor pelo retrovisor – ao som inclusive de Djavan – podemos acreditar que os maiores problemas das crianças, na floresta e na cidade, eram causados por artistas e produtores de TV. Quem se dispõe a furar a mágica do balão sem um contexto esqueceu de falar da criança de hoje, impactada pela vida sempre positiva e fantástica de coleguinhas expostas nas redes das famílias dos amigos. A escola da internet, agressiva e consumista, também captura os pequenos.

O educador Paulo Freire é bastante citado nestes tempos de polarização. Pena que poucos leram seus livros. Pedagogia do oprimido não poupa sectários de direita e esquerda. Critica práticas individualistas e propõe uma escola a partir do diálogo. “Muitos, porém”, escreve ele, “terminam usando, na sua ação, métodos que são empregados na ‘educação’ que serve ao opressor”. “Negam a ação pedagógica no processo de libertação, mas usam a propaganda para convencer”, ressalta. “Os homens se libertam em comunhão.”

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