Não era assim. Mas de uns anos para cá a escolha de um ministro do Supremo Tribunal Federal se transformou em um verdadeiro frisson nacional. O que antes eram discretos, porém ativos, lobbys de classe como, “dessa vez precisamos de um tributarista”, se transformaram em mais uma bandeira de motivação nacional, incluindo militantes aguerridos, opiniões apaixonadas e até mesmo os já onipresentes discursos de ódio sobre qualquer assunto que anime a coletividade. De pátria de chuteiras viramos a nação de toga, o que pode significar que estamos mais interessados nos rumos Brasil, ou sintoma de alguma doença institucional ainda não acuradamente diagnosticada.
Há lobbys recentes para que o novo integrante do Supremo seja mulher, negra, seja de esquerda, ou terrivelmente evangélico. Também conta ser amigo do presidente de plantão. Alguém com quem o executivo do Palácio do Planalto possa tomar uma cerveja após uma extenuante jornada de trabalho.
O curioso é que a principal função a ser exercida por um ministro de Supremo não parece estar na prioridade do debate: a defesa da Constituição. Ou seja, alguém que, com o maior grau possível de objetividade, irá julgar se um ponto qualquer em discórdia está adequado ou não à Carta Magna. Pelo menos aprendemos assim, desde a escola, que essa é a atribuição daqueles onze togados que aparecem na televisão.
Mas o debate de hoje mostra que ninguém mais acredita na objetividade das leis, muito menos dos juízes. Acredita-se, sim, em valores, ideologia e luta política. O que se quer é um ministro ou ministra que pense e aja como um militante e estará lá para defender suas ideias. Não é uma questão jurídica, ou moral, é de disputa de poder que se trata.
Para a direita, os ministros do STF querem proteger os seus e estão a serviço de alguma grande conspiração de viés esquerdista - numa teoria que você já deve ter ouvido de um tio do churrasco. Para a esquerda, pelo menos até há pouco, o Judiciário era um braço da burguesia a barrar a chegada do poder daqueles que vivem no andar de baixo. Agora, para a esquerda identitária, o Judiciário precisa ser um esquadrão avançado da proteção de grupos determinados. Aliás, desde quando a composição do STF, de consequência se tornou causa de nossas desigualdades?
A grande verdade nisso tudo é que a comparação com futebol é verdadeira no sentido de que virou torcida. Ou, para dizer de modo menos rasteiro, essa desconfiança geral da tecnicalidade do Judiciário é o triunfo daquelas teorias pós-modernas de que não existem fatos, apenas perspectivas sobre fenômenos; ou para usar a desgastada expressão da moda: narrativa. Logo, invista em histórias, coloque seus amigos nos lugares de poder certos que sua versão deve preponderar.
Há parte de responsabilidade dos próprios integrantes do STF nesse estado de coisas? De fato, nos acostumamos com entrevistas, palestras, presença em eventos, palanques, recados, bate bocas públicos de integrantes do Judiciário. Pode ficar a impressão de que gostam de aparecer naquele sentido do Eclesiastes bíblico de que o que move o humano é a vaidade. Há também o fato de que muitos dos que foram denunciados, presos, expostos se tornaram vítimas de “erros judiciais”, o que dá pano para a manga para suspeita de que juízes se movem por meio dos humores da opinião pública. Uma dúvida sincera: quer dizer que aqueles bilhões de reais de desvios revelados pela Lava Jato com transmissão ao vivo por todas as TVs não existiram? É difícil não ficar confuso com a enxurrada de informações contraditórias e o Judiciário tem participação nisso.
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Por outro lado, o STF virou uma espécie de VAR com a decisão final sobre lances polêmicos, daí a atenção a eles é necessária. Mas acabou aquela imagem de o juiz ser um senhor taciturno, isolado, que não sabemos sobre que pensa, nem mesmo o time que torce. Acabou e a Justiça deixou de ser cega. É desde uma “corte iluminista” ou a “responsável pelos nossos atrasos”. Nesse contexto que deve ser interpretada a frase de Lula, que os votos deveriam ser secretos. Aquela história de que todo problema complexo tem uma solução simples e equivocada?
Uma razoável filosofia de vida social poderia ser: “quanto menos coisas forem proibidas, melhor; quanto menos coisas forem obrigatórias, melhor”. Mas a judicialização provoca um efeito contrário nessa proposta de organização da sociedade. Um dos corolários de nossa torcida por colocar juízes de preferência em posições de poder é o desejo por prisões de agentes políticos que temos repulsa.
Da mesma forma que parte do Brasil comemorou a prisão de Lula, outra parcela sonha em ver Bolsonaro atrás das grades (mesmo que, politicamente, uma prisão tida como política ser um trunfo pessoal no Brasil e possibilitar reviravoltas na história). Na verdade, também queremos censura e silêncio de quem pensa diferente e para isso um juiz bem afinado com o que eu penso seja ótimo para calar meus inimigos reais e imaginários.
*Filósofo e analista político