Preso preventivamente desde o último sábado, 14, o ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança do Distrito Federal Anderson Torres presta depoimento à Polícia Federal na manhã desta quarta-feira, 18, no inquérito que apura responsabilidades pelos ataques ocorridos em 8 de janeiro na capital federal, quando vândalos depredaram as sedes dos três Poderes e pediram um golpe militar. A oitiva ocorre no 4° Batalhão da Polícia Militar do Distrito Federal, onde o ex-ministro está desde que chegou dos Estados Unidos, após passar férias com a família.
Uma diligência de busca e apreensão na casa do ex-ministro revelou a existência de uma minuta não publicada que previa a decretação de estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com potencial para mudar o resultado das eleições. Especialistas consultados pelo Estadão afirmam que é cedo para atribuir responsabilização penal contra Torres, pela necessidade de elucidação dos fatos comprobatórios, mas atestam que os indícios que pesam sobre ele são suficientes para demandar uma “investigação profunda” e justificar a prisão cautelar.
Anderson Torres estava de férias em Miami, nos Estados Unidos, no dia em que extremistas invadiram os prédios dos Poderes em Brasília. Ele havia sido nomeado secretário de Segurança seis dias antes pelo então governador Ibaneis Rocha (MDB), agora afastado do cargo. O ex-ministro foi preso assim que retornou ao Brasil, por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF), e aguarda a investigação. A segurança do DF está sob intervenção federal até o fim do mês.
Nesta segunda-feira, 16, a Justiça Eleitoral deu três dias para o ex-presidente Jair Bolsonaro se manifestar sobre o teor da minuta. O prazo só começa a contar após intimação formal ao ex-presidente, o que ainda não ocorreu. Como mostrou o Estadão, investigadores avaliam que este pode ser o primeiro passo para levá-lo à inelegibilidade.
Minuta
Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e especialista em Direito Processual, Renato Stanziola Vieira avalia que a existência do documento demanda investigação, mas que o fato de o decreto não ter sido publicado afasta, a princípio, a materialidade de um atentado contra o estado democrático de direito.
“Há elementos seguros para uma investigação sobre o conteúdo, os motivos de ela existir, os motivos para ela estar acondicionada na casa do então ministro da Justiça e os motivos de isso ter sido cogitado sem que ele tivesse tomado qualquer providência a respeito. Não há motivos ainda para discutir responsabilização criminal, mas para uma investigação”, afirma.
“A única situação possível para que aquela minuta gerasse responsabilidade por crime contra o estado democrático seria a relevância disso para o impedimento ou a conturbação do resultado eleitoral. A essa altura, em que já há um novo governo empossado e exercício, não se cogita mais haver essa consequência”, completa Stanziola.
O criminalista Alexandre Wunderlich, professor de Direito Penal na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), afirma que a situação é grave por afetar “o que há de mais importante para o país, a democracia”, e que a investigação é complexa e demandará tempo. Contudo, segundo ele, em que pese a gravidade dos fatos, no processo penal, a regra é a liberdade, e a prisão cautelar, exceção. “O documento encontrado na casa do investigado é prova material de que foi cogitada uma intervenção e a apuração deve identificar se foi mera cogitação ou não”, diz.
Tentativa
A especialista em Direito Penal Marina Pinhão Coelho afirma que a minuta encontrada na residência de Torres deve ser colocada em contexto. Desde antes das eleições, o governo Jair Bolsonaro questionou a lisura e legitimidade das urnas eletrônicas, o que, segundo ela, é um elemento que deve pesar na investigação. “Ressalte-se que o argumento de o documento não ter sido ‘utilizado’ em alguma circunstância, por si só, diz muito pouco. A tentativa de abolição do estado de direito pode ficar caracterizada pelo conluio e construção do documento em si”, avalia.
Os crimes de golpe de Estado e abolição do estado democrático de direito estão previstos nos artigos 359-M e 359-L do código penal. Ambos os dispositivos descrevem o emprego de “violência ou grave ameaça” para tentar depor um governo democraticamente eleito. A minuta de decreto encontrada na casa de Torres não prevê o uso da violência, mas a grave ameaça é um elemento subjetivo, sobre o qual cabe análise durante a investigação.
O criminalista Diego Henrique, sócio do Damiani Sociedade de Advogados, afirma que uma investigação criminal deve perseguir os fatos e se restringir a eles. “Somente são fatos para a investigação e para o processo penal aqueles que podem ser materialmente comprovados, livres de dúvidas, pelo conjunto probatório colhido ao longo da investigação. Caso contrário, a presunção de inocência deve imperar”, diz.
Segundo o advogado, a apreensão da minuta na residência do ex-ministro comprova dois fatos. “O primeiro é a existência de algo que poderia vir a ser um decreto absolutamente inconstitucional e, mais do que isso, um decreto que atentaria diretamente contra a existência do Estado Democrático de Direito na medida em que estaria desvirtuando um instituto jurídico (Estado de Defesa) para legitimar a intervenção de um dos Poderes da República (o Executivo) sobre outro (o Judiciário).”
O segundo fato, mais relevante, é que “este rascunho jamais foi utilizado para qualquer fim e nem seria, pouco importando se o investigado iria descartá-lo ou guardá-lo de recordação. Isto exclui a ocorrência de qualquer crime ou tentativa, tomando-se por base única e exclusivamente a existência da minuta”, diz. “Dessa forma, a minuta encontrada é um elemento meramente circunstancial, que deve ser cotejado juntamente com os demais elementos que forem angariados ao longo da investigação.”