O Congresso substituiu há dez dias a regra fiscal criada em 2016 para impor obstáculos à gastança pública. O teto de gastos da gestão Michel Temer (MDB) se tornou uma verdadeira peneira nos últimos dois anos e, agora, deu lugar a um novo arcabouço fiscal. No horizonte legislativo, porém, não há a menor previsão de teto ou regra limitadora do uso de dinheiro público pelos partidos políticos. Longe disso. Em se tratando de recursos bilionários do Tesouro para campanhas eleitorais, nossos parlamentares já podem ser comparados a atletas de altíssimo rendimento. Sucessivamente, superam marcas. Com esse espírito, articulam um novo recorde para o chamado fundo eleitoral de 2024, ano das disputas municipais no País.
O valor previsto para o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (nome oficial do chamado fundo eleitoral) no Projeto de Lei Orçamentária de 2024 – enviado ao Congresso pelo Executivo na semana passada – é de R$ 939,4 milhões. Trata-se, porém, de um montante bem abaixo do que foi reservado no ano passado: R$ 4,9 bilhões, um recorde até então. Líderes partidários dificilmente vão considerar a proposta do governo aceitável e já planejavam ultrapassar o sarrafo de 2022, considerando um valor próximo dos R$ 5,5 bilhões para as legendas no próximo ano. Isso, se o bolo final for apenas reajustado pela inflação do período.
Para se ter uma ideia do duto de dinheiro público para os partidos, o valor do fundo eleitoral vai se somar no ano que vem ao Fundo Partidário, destinado ao custeio das siglas e distribuído de forma proporcional às suas representações parlamentares. Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou a proposta de orçamento da Justiça Eleitoral para 2024 com previsão de R$ 1,2 bilhão para o Fundo Partidário. O gasto estimado pelo tribunal para a realização das eleições nos mais de 5 mil municípios brasileiros é de R$ 1,4 bilhão, cerca de 1/4 do que os partidos reclamam.
Congresso também quer PEC para anistiar partidos
A movimentação no Congresso por mais recursos públicos para os partidos se dá ao mesmo tempo que avança uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que isenta legendas e políticos que cometeram crimes eleitorais de 2015 a 2022. A chamada PEC da Anistia, que une partidos da oposição e aliados ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi aprovada em maio na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.
A proposta permite também que empresas paguem dívidas das legendas contraídas até agosto de 2015, ano em que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a doação de pessoas jurídicas para campanhas. Punições passíveis de multa, como propaganda irregular ou abusiva no período eleitoral, assim como o descumprimento das cotas de gênero e raça nos pleitos, serão anuladas caso a proposta seja sancionada e incorporada à Constituição. Atualmente, os partidos são obrigados a destinar pelo menos 30% do financiamento público de campanhas a candidatas, e valor proporcional ao número de candidaturas de pessoas negras.
A PEC avançou na Câmara dos Deputados mesmo sob forte pressão de mais de 50 integrantes do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável – instituído pelo presidente Lula – e a mobilização de organizações da sociedade civil que atuam nos campos do combate à corrupção, do direito eleitoral e da participação política de mulheres e negros.
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Na próxima fase, o mérito passará por avaliação de uma comissão especial, instalada no início de agosto e que retomou os trabalhos na última terça-feira. Após a avaliação deste colegiado, a proposta irá a plenário. A comissão especial na Câmara será presidida pelo deputado Diego Coronel (PSD-BA). O relator será o deputado Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP), que tem cerca de um mês para apresentar o parecer, e o texto ir a votação. “Estamos aqui para cumprir o rito e, claro, quando o relator se sentir confortável para apresentar o relatório, vamos apresentar ao plenário”, disse Coronel.
Caso seja aprovada no Congresso, a PEC será a quarta anistia que os partidos concedem a si mesmos em um período de 30 anos. “Essa proposta de alteração constitucional ainda prevê a possibilidade de doações de pessoas jurídicas para pagamento de supostos gastos ocorridos até o ano de 2015. Ou seja, passados oito anos da vedação do financiamento de campanhas políticas por pessoas jurídicas e do custeio, pelo Tesouro Nacional, de vultosos valores para cobrir esses gastos, a norma cria uma brecha para o retorno, de forma pouco transparente, desse tipo de financiamento vedado”, observou a procuradora Raquel Branquinho em artigo no Blog do Fausto Macedo, do Estadão.
STF decretou fim do financiamento empresarial
A PEC admite doações de empresas para a quitação de dívidas de partidos anteriores a 2015. Naquele ano, o Supremo declarou a inconstitucionalidade do financiamento empresarial de campanhas políticas após a maioria dos ministros da Corte concluir pelo entendimento de que a doação por pessoas jurídicas era marcada por grandes repasses de dinheiro que não refletiam preferências ideológicas, mas, principalmente, uma estratégia para estreitar as relações com os partidos e o poder público.
O julgamento no Supremo ocorreu em meio às revelações da Operação Lava Jato, que levou à prisão empresários das maiores empreiteiras do País.
Na prática, porém, em volume de recursos, o fim do financiamento empresarial acabou sendo substituído nos últimos anos pelo financiamento público. Um dos objetivos com a extinção das doações de pessoas jurídicas era o barateamento das campanhas, mas os partidos políticos – que são entidades privadas – continuam tendo à disposição montantes bilionários de dinheiro.
Na semana passada, uma novidade foi incluída na discussão sobres os recursos do fundo eleitoral. Por sugestão do deputado Rubens Pereira Júnior (PT-MA), relator do grupo técnico que elabora uma minirreforma eleitoral para valer já no pleito municipal de 2024, o dinheiro público para as campanhas poderá ser usado também para cobrir gastos com creches para filhos de candidatos e candidatas no País. A ideia do parlamentar foi incluída nas discussões sobre as regras eleitorais.
Custo do Legislativo no Brasil chega a R$ 40 bilhões
A capacidade de as legendas legislarem em benefício próprio está também relacionada ao crescente fortalecimento do próprio Poder Legislativo, situação acentuada no governo de Jair Bolsonaro (PL), quando os parlamentares passaram a deter um controle cada vez maior da destinação do Orçamento da União por meio de diversas categorias de emendas parlamentares.
Em recente artigo publicado no Estadão, Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski destacaram o quanto é poderoso e caro o Legislativo no Brasil, especialmente o federal. “Considerados a União, os Estados e os municípios, o custo anual é de cerca de R$ 40 bilhões; destes, R$ 13 bilhões correspondem ao Congresso Nacional”, afirmam.
“O orçamento do Congresso Nacional o torna o segundo mais caro do mundo, atrás apenas do norte-americano. O custo do Congresso Nacional dos outros países representa 1/3, ou menos, do brasileiro”, prossegue o artigo. “Uma das razões é o portentoso contingente que assessora os parlamentares: são quase 14 mil funcionários na Câmara dos Deputados e 6 mil no Senado Federal. As emendas parlamentares, mecanismo legítimo de captura por senadores e deputados de demandas da população, pedem uma profunda revisão, em razão da falta de critérios técnicos na sua seleção e da absoluta falta de transparência em sua aplicação”, alertam os autores.
Para entender
- Fundo Partidário
Dinheiro é destinado mensalmente aos partidos políticos para o custeamento de despesas diárias, como contas de luz, água, aluguel e salários de funcionários. O fundo é constituído por uma mistura de verba pública e doações privadas, nas quais entram dotações orçamentárias da União, multas, penalidades e outros recursos atribuídos por lei.
- Fundo eleitoral
Recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha são retirados inteiramente da verba pública (Tesouro Nacional) e destinados aos partidos em anos eleitorais para bancar as campanhas de seus candidatos, como viagens, cabos eleitorais e material de divulgação.
- Fim das doações de empresas
O fundo eleitoral foi incluído na reforma eleitoral aprovada em 2017 e entrou em vigor nas eleições do ano seguinte. O movimento do Congresso ocorreu após o Supremo Tribunal Federal (STF) proibir, em 2015, o financiamento empresarial das campanhas políticas, em meio às revelações da Operação Lava Jato. Para os ministros da Corte, as doações de pessoas jurídicas causavam desequilíbrio econômico nas disputas.
- Valores
O valor do fundo eleitoral em 2022 foi de R$ 4,9 bilhões, um recorde. Já o do Fundo Partidário, no mesmo ano, foi de pouco mais de R$ 1 bilhão, distribuído para 24 partidos, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral.
- Aumento
O Ministério da Fazenda incluiu uma trava para que o montante do fundo eleitoral não passe dos R$ 4,9 bilhões desembolsados no ano passado, mas, para as eleições municipais do ano que vem, o Congresso articula furar esse teto e pressiona por um montante próximo dos R$ 5,5 bilhões para as legendas no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias.