BRASÍLIA – O Congresso Nacional quer criar um novo modelo de pagamento de emendas parlamentares, mais rápido e com menos fiscalização que o tradicional. A mudança fará com que o dinheiro seja pago antes do início das obras e sem a análise de um projeto que justifique o investimento. A proposta mexe com repasses da União para Estados e municípios, principalmente os que passam pela Caixa, banco agora controlado pelo PP, partido do presidente da Câmara, Arthur Lira (AL).
A mudança impacta 90% dos repasses feitos por meio de convênios e contratos da União com prefeituras, governos estaduais e empresas privadas. A maioria serve para para bancar obras como pavimentações, construção e reformas em prédios públicos, mas o instrumento também é usado para pagamento de shows artísticos, compra de tratores e outros projetos. O novo modelo valerá para repasses de até R$ 1,5 milhão, que representam 90% do total, e tem potencial de mexer com R$ 5 bilhões em 2024, ano de eleições municipais.
A articulação esbarrou no Planalto e promete ser mais um ponto de disputa entre o Congresso e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Lula vetou a proposta em dezembro. O projeto de lei foi aprovado em votação relâmpago durante a madrugada de um feriado em Brasília. A mesma proposta diminui o controle sobre licitações. O Executivo argumenta que o modelo desvirtua o processo orçamentário, pois dá dinheiro para as prefeituras antes do início das obras e compromete a boa aplicação das verbas públicas.
O modelo foi articulado entre a Caixa e parlamentares e tem apoio tanto da base aliada de Lula quanto da oposição no Congresso. A medida se soma a outras iniciativas do Legislativo para abocanhar mais recursos da União e acelerar o repasse de recursos para Estados e municípios, como o calendário de pagamento de emendas no Orçamento, também vetado pelo presidente, e a emenda Pix, revelada pelo Estadão.
“O projeto facilita a gestão, sobretudo para a Caixa fiscalizar. Hoje é uma burocracia sem fim. Você bota dinheiro para fazer um calçamento, que é a obra mais simples que existe no mundo, e leva dois anos. Isso é um absurdo”, afirmou o senador Marcelo Castro (MDB-PI), autor da emenda que originou o novo modelo. O parlamentar diz que a proposta veio de uma sugestão da própria Caixa. “Vou trabalhar para derrubar o veto.”
A Controladoria-Geral da União (CGU) afirmou que a proposta é inconstitucional, ao orientar o veto. De acordo com a CGU, a parcela única não vai resolver o problema das obras e vai deixar recursos parados nos municípios, “os quais poderiam ser destinados à implementação de outras políticas públicas carentes de recursos”. Além disso, o órgão é contra a liberação do dinheiro sem análise dos projetos. “Os efeitos gerados por essa omissão é a lentidão na entrega de políticas públicas para a sociedade, pois é inevitável afastar as falhas durante a execução dos convênios e contratos de repasse que não são devidamente planejados.”
Como funciona o novo pagamento de emendas de até R$ 1,5 mi planejado pelo Congresso
Quando custar até R$ 1,5 milhão, o dinheiro será pago em uma parcela única, antes da análise do projeto, da licitação, dos licenciamentos e dos documentos necessários para o início das obras. A “papelada” continua sendo necessária, mas vai ser analisada só depois que a obra estiver concluída. Atualmente, o pagamento é feito de forma gradual, de acordo com o andamento do projeto, e a fiscalização é mais rígida.
O argumento dos parlamentares é superar a burocracia, acelerar o pagamento de emendas e acabar com as obras paradas. O presidente Lula justificou o veto afirmando que a proposta do Centrão “desprestigia o planejamento” ao dispensar a análise dos documentos necessários para o início da execução das obras. O Congresso deverá convocar uma sessão para analisar esse e outros vetos presidenciais a partir de fevereiro, quando retoma os trabalhos.
Leia também
O Brasil tem 8.603 obras paralisadas com recursos federais, de acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU). Sete em cada dez custam até R$ 1,5 milhão, valor previsto pelo projeto. Uma auditoria da Corte verificou que a principal causa para a paralisia das obras, no entanto, são as falhas nos projetos, justamente o ponto que a proposta do Congresso deixa sem análise prévia. “Como ter um grau de acerto e fazer compras públicas com eficiência sem análise de projetos? Eficiência é uma exigência constitucional, não é uma palavra decorativa”, disse a presidente da Associação da Auditoria de Controle Externo do TCU, Lucieni Pereira.
Lucieni Pereira, presidente da Associação da Auditoria de Controle Externo do TCU
Novo presidente da Caixa defende pagamento mais rápido de emendas
Do lado do Executivo, a Caixa é a principal interessada no projeto, pois é responsável pela maioria dos contratos com as prefeituras e ganha uma comissão de 4,5% sobre os repasses. Ultimamente, os parlamentares estavam tirando suas emendas do modelo tradicional para aderir a outros mecanismos, como a emenda Pix, esquema sem transparência e sem nenhuma vinculação com programas do governo federal.
As emendas do novo modelo continuarão sendo fiscalizadas pelo TCU e por órgãos federais, como a própria Caixa. O controle, porém, vai ser feito depois que o dinheiro for enviado para a prefeitura. “Incluir o TCU na fiscalização é passar apenas um verniz de controle em relação às obras. Se com os repasses passo a passo, concatenados com o cronograma, as falcatruas eventualmente já ocorrem, que dirá com os repasses antecipados”, afirmou o secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco.
Marcelo Castro, senador (MDB-PI)
O presidente da Caixa, Carlos Vieira, indicado por Lira para o cargo, é defensor do novo modelo. “Nós vamos sair de um prazo de 350 dias para 90 dias para a liberação da emenda. Acredito que o Executivo vai tomar uma decisão muito positiva porque o próprio Executivo participou dessa construção”, disse Vieira, em entrevista ao programa Canal Livre, da TV Band, no dia 17 de dezembro, antes do veto de Lula. Ao Estadão, o banco confirmou que participou das discussões, mas não quis comentar o conteúdo da proposta, ressaltando que cumpre a legislação vigente.
Garantir recursos antes das eleições municipais, marcadas para outubro, é o que os prefeitos e parlamentares mais querem. A lei eleitoral proíbe repasses nos três meses anteriores à disputa, regra conhecida como “defeso eleitoral”. A mudança vai permitir que o dinheiro seja repassado antes desse período, escapando do defeso.
“O Brasil precisa de leis rígidas para punir quem desvia, mas não partir do princípio que todo mundo vai desviar”, disse o senador Marcelo Castro. “Quem está pensando em roubar, não está pensando em desviar de uma obra de R$ 500 mil, está pensando em uma obra de R$ 10 milhões, de R$ 100 milhões.”