Enquanto Bolsonaro ignora as recomendações internacionais e tenta pôr fim ao isolamento, Congresso e Supremo Tribunal Federal (STF) assumem boa parte da responsabilidade pelo combate ao novo coronavírus, afirmam brasilianistas ouvidos pelo Estado. Para eles, o Executivo enfraquecido permanece no cenário pós-crise e o comportamento do presidente, ainda que atenuado pelas instituições do País, deixa como herança a recuperação mais lenta da economia e uma reputação internacional manchada.
Apesar da maior parte dos pesquisadores de faculdades do exterior concordarem que os outros Poderes oferecem um freio às atitudes de Bolsonaro, alguns questionam se eles são realmente suficientes para impedir uma escalada antidemocrática no País.
Exemplo citado é o episódio do último domingo, 18, quando o presidente participou de atos que pediram fechamento do Congresso e intervenção militar. Nele, as instituições mostraram-se mais fortes e adaptáveis do que se poderia esperar, diz Peter Hakim, presidente emérito e membro sênior da ONG Diálogo Interamericano. “No entanto, não há certeza de que elas possam se sustentar e garantir um Brasil democrático neste período incerto, inexplorado e extremamente perigoso."
Após participar do ato, Bolsonaro foi duramente criticado por membros do Legislativo e Judiciário. A resposta mais incisiva foi a do STF, que a pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, abriu inquérito para investigar a organização das manifestações. Parlamentares e a própria cúpula militar condenaram a presença do presidente.
O tom de confronto adotado nos atos pelo mandatário ocorre após várias derrotas do governo na pandemia, a maior parte delas por divergências com os demais poderes. Para Hakim, as instituições políticas e cívicas estão atuando de forma responsável na crise do coronavírus, mas isso não é possível evitar completamente os prejuízos que Bolsonaro tenha causado. “Muito dano ainda está por vir. À economia do País e à sua reputação internacional e regional.”
O brasilianista Georg Walter Wink diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos (CLAS), enxerga nesse cenário um fortalecimento do Congresso, consequência “quase inevitável” da estratégia bolsonarista de abdicar dos tradicionais mecanismos de negociação com o legislativo. “Vejo indícios de uma tendência em direção a um parlamentarismo ‘velado’ que, apesar da (ou justamente devido à) disfuncionalidade do executivo, realiza as reformas anunciadas, sobretudo macroeconômicas.”
Durante a pandemia, Bolsonaro tem sofrido diversos reveses do Congresso. Em um dos episódios mais recentes, o Senado decidiu não votar a medida provisória do contrato Verde Amarelo, que reduz impostos às empresas na contratação de jovens de 18 a 29 anos e pessoas acima de 55 anos. A decisão ocorreu após demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e críticas do presidente a Rodrigo Maia. Para Wink, o enfraquecimento do executivo é promovido involuntariamente pelo atual presidente - e talvez intencionalmente pelo Congresso.
Apesar do fortalecimento das instituições, é preciso ter em vista que elas foram criadas para atuar com um presidente forte, o que não tem ocorrido, diz David Samuels, professor da Universidade McKnight. “A questão central parece ser a incapacidade ou a falta de vontade do presidente em usar o poder de sua posição para coordenar com o Congresso e avançar com reformas e ações abrangentes que levariam o Brasil adiante”, diz o professor.
Prova do enfraquecimento de Bolsonaro é o protagonismo dos Executivos estaduais. Apesar do presidente defender a reabertura do comércio, inclusive em pronunciamento em cadeia de rádio e televisão, governadores têm reiterado as medidas de isolamento social para combater o coronavírus.
“O papel dos governadores é surpreendente, dada a importância histórica do governo federal na coordenação de políticas de saúde e no financiamento”, diz Samuels. Se a proeminência deles continua, ele afirma que é mais um sinal da fraqueza política de Bolsonaro. “Não é intencional, mas por opção, já que a presidência do Brasil é constitucionalmente poderosa."
O prejuízo à imagem do País perante o resto do mundo é consenso entre os brasilianistas. Wink afirma que a atuação e os resultados do presente governo têm frustrado tanto as expectativas econômicas quanto as políticas. “O Brasil que parecia estar se desenvolvendo e ‘normalizando’, a partir de uma visão europeia, desde os governos de FHC, voltou a ser um país exótico, de radicalismo, isolamento e obscurantismo na política.”
As declarações e ações de Bolsonaro colocam o Brasil em uma pequena minoria de países cujos líderes negam o coronavírus, diz Anthony Pereira, diretor do Instituto King's Brasil, afirma que. “Eles incluem Bielorrússia, Nicarágua, Coréia do Norte e Turquemenistão, e são governos sem muito boas credenciais democráticas. É chocante e triste ver o Brasil nesse grupo. Isso apesar do Brasil ter uma infraestrutura de saúde pública relativamente boa, setor de pesquisa biomédica e muitos funcionários de saúde pública capazes e qualificados.”
Apesar do Brasil ser hoje um ponto fora da curva por conta do presidente, Pereira acredita haverá tolerância quando se trata de visões externas no Brasil. “O mundo exterior pode distinguir entre o presidente e a maioria do povo brasileiro.”
Šárka Grauová, vice-presidente da Associação de Brasilianistas na Europa (Abre), afirma que é preocupante o governo brasileiro não dar ouvidos a especialistas em epidemiologia e não ter formado uma força-tarefa, como a maior parte do países. "O Brasil continua sob os holofotes como um caso de uma liderança política populista, com resultados desastrados", diz a brasilianista.
6 perguntas para... Gladys Mitchell-Walthour
A pandemia do novo coronavírus vai agravar as desigualdades econômicas e raciais no Brasil, afirma a professora da Universidade de Wisconsin-Milwaukee Gladys Mitchell-Walthour. Especialista em política racial brasileira, ela elogia organizações que têm auxiliado comunidades negras e de baixa renda no País na crise, mas cobra do governo brasileiro um papel mais ativo na assistência aos mais vulneráveis. A seguir, confira os principais trechos da entrevista:
1. A pandemia de coronavírus deve piorar a desigualdade social do país? Infelizmente, a pandemia de coronavírus agravará as desigualdades econômicas e raciais existentes no Brasil e em outros países como os Estados Unidos. Já existem evidências nos Estados Unidos de que pessoas negras nos estão morrendo a taxas mais altas do que brancas. Isso não significa que mais pessoas negras tenham o coronavírus. Isso significa que mais pessoas negras estão morrendo e isso é resultado do racismo institucional ou estrutural. Os negros são mais propensos a ter cuidados de saúde de qualidade inferior, mais propensos a certas doenças devido a alimentos e condições ambientais de menor qualidade e são mais propensos a enfrentar outros estresses sociais e econômicos que os tornam mais vulneráveis do que outros grupos. Os afrodescendentes no Brasil enfrentam condições semelhantes de racismo institucional que impactam bastante a saúde.
2. Na pandemia, a população negra é mais afetada? A população negra será desproporcionalmente afetada de maneira negativa por causa de maiores vulnerabilidades de saúde e do meio em que vivem, produto do racismo institucionalizado. Alguns dos empregos menos remunerados, porém essenciais, são aqueles que os negros ocupam. Por esse motivo, eles estão mais expostos, pois não podem trabalhar em casa. Além disso, as desigualdades na saúde aumentarão dramaticamente devido às condições de saúde preexistentes que tornam os negros mais vulneráveis do que outros grupos. Muitas condições de saúde como asma, diabetes e hipertensão impactam desproporcionalmente as comunidades negras no Brasil e nos EUA. Essas condições tornam os dois grupos mais vulneráveis se contraírem o coronavírus.
3. São necessárias políticas públicas específicas para a população negra na crise do coronavírus? Acredito que políticas públicas específicas devem ser colocadas em prática para pessoas com condições pré-existentes que podem levar à morte em caso contratação do Coronavírus. Se um funcionário conscientizar um empregador de que tem asma ou uma condição imunossuprimida, não deverá ser obrigado a trabalhar, o que os colocaria em risco de contrair coronavírus. Uma porcentagem considerável da população negra é vulnerável dessa maneira. Portanto, as políticas devem protegê-las de serem colocadas em risco em seu emprego. Não conheço nenhuma política existente que considere o risco à saúde de um indivíduo se exposto ao coronavírus, mas faz sentido que isso seja discutido.
4. É diferente para mulheres negras? As mulheres negras estão em uma posição particularmente vulnerável porque são responsáveis por grande parte do trabalho doméstico, independentemente do status socioeconômico. Além disso, muitas mulheres negras trabalham fora de casa, portanto são responsáveis pela saúde econômica, social, física e bem-estar mental de suas famílias. Trabalhar em casa pode não ser uma opção para pessoas que têm empregos que exigem que elas saiam de casa. Esses trabalhos aumentam o risco de serem expostos ao coronavírus. Além disso, para aqueles que trabalham em casa, precisam realizar várias tarefas de cuidar de crianças ou de outros parentes, além de tentar manter o bem-estar de suas famílias. O estresse dessas tarefas domésticas, associado a condições já existentes, como asma, diabetes ou hipertensão, cria uma situação terrível.
5) Como você avalia as ações do governo Jair Bolsonaro em relação à população mais vulnerável (econômica e socialmente) que mora nas favelas do Brasil? Há uma falta de empatia pelos mais vulneráveis na sociedade brasileira. Essa falta de empatia, associada à retórica racista contra os negros, existia antes da crise.6) Com todo o cenário que temos hoje, que caminhos você vê para o Brasil nos próximos meses, considerando a perspectiva racial? Ativistas do movimento negro como Douglas Belchior e Juliana Góes espalharam fervorosamente a comunidade brasileira e internacional sobre o potencial genocídio dos negros durante a crise da Covid-19. Juntamente com as organizações, eles contribuíram para os esforços para arrecadar fundos para comunidades negras e de baixa renda, a fim de fornecer necessidades básicas, como artigos de higiene e alimentos. Do ponto de vista internacional, o movimento negro e outros grupos ativistas sociais estão na linha de frente da prestação de assistência imediata às comunidades negras e de baixa renda no Brasil. Esses esforços são louváveis. No entanto, espero que o governo assuma um papel mais ativo na assistência específica aos mais vulneráveis da sociedade