Por que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é condescendente com Nicolás Maduro e Daniel Ortega? Qual a razão de o petista manter o que especialistas chamam de “visão ambígua” a respeito da democracia? E o que leva o presidente a dizer que o conceito de democracia é relativo? Foram a essas perguntas que analistas ouvidos pelo Estadão buscaram responder na semana em que Lula foi mais uma vez confrontado, até por aliados, por suas declarações a respeito das ditaduras na Venezuela e Nicarágua.
Tudo isso ocorre após 50 anos do golpe de Estado no Chile, que, em 11 de setembro de 1973, depôs Salvador Allende. Desde então, a questão democrática continua a dividir a esquerda latino-americana. As manifestações de Lula expõem seu governo a críticas de variadas forças políticas no Brasil e no exterior. Os analistas ouvidos pelo Estadão apontaram para o contexto histórico para situar as posições do petista e de parte de seu partido nesse debate.
“A queda de Allende marcou profundamente o debate sobre a democracia no mundo”, afirmou o historiador Alberto Aggio, que está lançando o livro 50 Anos do Chile de Allende, uma leitura crítica. Nele estarão pela primeira vez em português os textos com que Enrico Berlinguer, então secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI), desenvolve a tese do compromesso storico, o compromisso histórico, o apoio externo do PCI aos governos da Democracia Cristã como forma de barrar uma possível deriva autoritária na Itália, capitaneada pela extrema direita. Berlinguer concluiu que não bastava a esquerda obter 50% mais um dos votos para governar. E acolheria mais tarde a tese de que a democracia era um valor historicamente universal.
No Brasil, a questão democrática rachou a esquerda. Parte dela é ainda adepta da perspectiva insurrecional, da Revolução Cubana, como forma de se chegar ao poder. Outra via a democracia como um instrumento para se alcançar o poder e que teve sua expressão mais recente – de acordo com Aggio – no chavismo venezuelano. Outra parte – inclusive no PT – adotou as formulações de Berlinguer, da democracia como valor universal, como o dirigente José Genoino.
“Essa posição do Lula, relativizando a democracia, é um retrocesso até dentro do PT, onde tivemos Genoino e (o filósofo) Carlos Nelson Coutinho afirmando a democracia como valor universal. Se formos levar Lula a sério, não houve ditadura no Brasil, pois tínhamos Congresso e STF funcionando. Todos os governos militares seriam de democracia relativa e com muito mais liberdade do que em Cuba e na Venezuela”, afirmou o professor Denis Rosenfield, autor do livro O que é democracia.
Denis Rosenfield, autor do livro O que é democracia
A análise de Rosenfield assemelha-se à do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que em sua conta no Twitter censurou a declaração de Lula de que na “Venezuela tem mais eleições do que o Brasil” e seria “relativo” o conceito de democracia. “O conceito de democracia não é relativo. Após a superação dos regimes totalitários do século 20, a democracia não pode, seriamente, ser concebida como uma fórmula vazia, apta a aceitar qualquer conteúdo”, escreveu Gilmar. A manifestação do ministro foi dada após Lula ser questionado pelo presidente do Chile, Gabriel Boric, e pelo do Uruguai, Luis Lacalle Pou, a respeito da Venezuela.
Antes, Lula dissera que as violações dos direitos humanos no regime de Nicolás Maduro, na Venezuela, eram fruto de uma “narrativa”. Boric rebateu que não se devia varrer para debaixo do tapete ou fazer vista grossa a princípios importantes. As violações aos direitos humanos na Venezuela não eram “narrativa”, mas realidade, observou o chileno.
“Boric se aproxima da ideia da democracia como uma construção e não como uma contestação à herança da ditadura chilena. Já o PT representa uma esquerda pragmática, de um pragmatismo que vem de baixo”, disse Aggio.
No dias que se seguiram, o petista fizera apenas uma concessão sobre o tema da democracia na América Latina: ao se encontrar em Roma com o papa Francisco, Lula prometeu tentar com o ditador nicaraguense Daniel Ortega obter a libertação do bispo de Matagalpa Rolando Álvarez, encarcerado após ser condenado por traição à Pátria a 26 anos de prisão. “Lula pensa que só um bispo está preso. Trata-se de uma nação inteira encarcerada por Ortega”, disse Rosenfield.
À direita, também não faltaram reações de líderes como o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que abordou a reação de Lacalle Pou à Lula na última reunião do Mercosul, negando o caráter relativo do conceito de democracia exposto pelo petista. O presidente uruguaio cobrou uma posição clara do Mercosul contra a escalada autoritária do regime venezuelano.
Na esquerda, as declarações de Lula também despertaram reações. Dentro do PT coube mais uma vez ao dirigente fluminense da legenda e integrante do Diretório Nacional Alberto Cantalice expor o descontentamento com os regimes da Venezuela e da Nicarágua. No dia 1.º de junho, ele escreveu: “A inabilitação dos opositores na Venezuela é intolerável. Esse mesmo expediente foi usado na Nicarágua e tem sido objeto de repúdio”. Disse que, diante das críticas contra os processos que atingiram Lula e o retiraram da eleição de 2018, a esquerda não poderia “aceitar a lógica de dois pesos e duas medidas”.
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‘Silêncio da esquerda democrática’
Para o cientista político Marco Aurélio Nogueira, o que lhe chama atenção é o silêncio da esquerda democrática diante desse debate. “Na intelectualidade, por exemplo, não há ninguém defendendo a democracia como um valor universal. O que há, na maioria das vezes, é condescendência com Lula, o que não ajuda a formar uma opinião democrática que compre a briga da democracia.” De acordo com ele, as diversas correntes da esquerda latino-americana têm modos particulares de pensar a democracia, o que explica as diferenças entre Boric e Lula. “Há retórica democrática sem profundidade.”
Marco Aurélio Nogueira, cientista político
Nogueira também relembra o papel do debate sobre a queda de Allende para o debate sobre a democracia na esquerda. Estabelecer um “corte de classe” na democracia poderia pôr tudo a perder. “E o Chile foi exemplo disso. Não podemos submeter a democracia a uma disputa entre direta ou esquerda. Ou somos democratas ou não somos.” Para ele, as manifestações de Lula tem relação com a natureza do petista, muito mais um agitador do que um formulador teórico.
Mas suas falam têm impacto na América Latina, pois assumiriam aspectos de uma “personalidade heroica” pelo poder de sedução e persuasão. No plano interno, Lula se comportaria como um pêndulo, que se expressa na contradição de abandonar a conciliação tout court, que incluísse até os trânsfugas do bolsonarismo no poder, desarmando a polarização, em nome da adoção de uma retórica radicalizada. “Faz concessões na economia aos moderados, mas quer parecer com seu discurso que não entrega todos os anéis dos dedos.”
É esse o pêndulo que Lula parece exercitar também na política externa agora, após tantas concessões aos ditadores da região, ao falar que a Venezuela também tem seus problemas, segundo os analistas ouvidos. Ao assumir a presidência do Mercosul, o petista não pode mais se comportar como o herói de si mesmo ou das correntes petistas e de seus partidos satélites, que ainda sonham com a revolução.