Deputados federais eleitos por São Paulo destinaram R$ 27,3 milhões do orçamento da União para outros estados. Levantamento do Estadão mostra que oito deputados e dois ex-deputados federais optaram por enviar recursos para fora de São Paulo ao invés de investir no estado em que foram eleitos. A lei permite que façam isso, mas é algo incomum. Até o momento, R$ 9,5 milhões já foram liberados pelo governo.
O caso mais flagrante é o do deputado Tiririca (PL), que já mandou este ano R$ 3,5 milhões em recursos para Porto Seguro (BA). A cidade do litoral baiano é comandada por Jânio Natal, prefeito do seu partido que deve tentar a reeleição em 2024. Parte da verba foi enviada com o carimbo da saúde, mas a maior fatia, de R$ 1,9 milhão, aparece como transferência especial – a chamada “emenda Pix”, que abastece o caixa das prefeituras sem necessidade de apontar o que deve ser feito com o dinheiro ou de prestação de contas. Também não há fiscalização.
O valor ainda pode aumentar até o final do ano: sete das 12 emendas individuais aprovadas por Tiririca no orçamento abrem a possibilidade de direcionar o gasto tanto para São Paulo quanto para o Estado do Nordeste. Significa dizer que ainda cabe ao deputado apontar o destino de R$ 13 milhões da sua cota, segundo relatório de execução orçamentária da Câmara. Seu gabinete não respondeu aos diversos pedidos de entrevista feitos ao longo da semana.
O caso não é isolado. O deputado federal Rui Falcão (PT), por exemplo, aliado do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e atual presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, mandou R$ 163 mil em “emenda Pix” para o município de Eliseu Martins (PI). A cidade tem pouco mais de 4 mil habitantes e fica na Chapada das Mangabeiras, a cerca de 480 quilômetros da capital Teresina. Procurado pelo Estadão, ele também se recusou a explicar a decisão.
O levantamento considerou todas as emendas individuais, chamadas de RP6 no jargão técnico do Congresso, assinadas pelos deputados de São Paulo no orçamento de 2023. Cada um deles teve direito a direcionar R$ 32,1 milhões nessa modalidade. Por ser uma despesa obrigatória do Executivo, os deputados costumam utilizar o recurso para atender as necessidades de suas bases eleitorais.
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Para Mariana Almeida, economista e professora de Gestão Pública do Insper, esse tipo de gasto longe dos redutos eleitorais é mais um fator que acende o sinal de alerta para a qualidade do gasto no orçamento.
“A prerrogativa de abrir espaço para o Legislativo tomar decisões orçamentárias é pela capilaridade e pelo conhecimento que, em tese, os parlamentares têm das suas bases”, explica. “É preciso olhar no detalhe, mas essa decisão (de mandar emendas para fora) vai contra a lógica. Não se supõe que um deputado de São Paulo conheça muito bem o Piauí para fazer a melhor decisão de alocação de recurso público naquele estado.”
‘Emenda Pix’ e verba da saúde abastecem prefeituras distantes
Derrotado nas eleições do ano passado, Vicentinho (PT) retornou à Câmara como terceiro suplente da federação PT, PV e PCdoB depois que o deputado Paulo Teixeira foi indicado por Lula para chefiar o Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Ele já mandou, este ano, R$ 850 mil para quatro municípios do Nordeste. Além de uma “emenda Pix” de R$ 150 mil para São Francisco (PB), ele contribuiu, dentro da cota para a saúde, com R$ 200 mil para Jardim (CE), R$ 300 mil para Acari (RN) e R$ 200 mil para Arara (PB).
Vicentinho nasceu na cidade de Santa Cruz, no Rio Grande do Norte, mas construiu sua carreira política em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. O político também não conversou com a reportagem.
Mariana Almeida, professora do Insper
O deputado Miguel Lombardi (PL) foi além e direcionou R$ 700 mil em recursos da saúde para sete prefeituras em três Estados diferentes. Eleito com o lema de “deputado de Limeira” e “mais força para o interior paulista”, ele destinou dinheiro para Afonso Cláudio (ES), Conselheiro Lafaiete (MG), Campos Gerais (MG), Águas Formosas (MG), Carmo do Rio Claro (MG), Ituiutaba (MG) e União dos Palmares (AL) – R$ 100 mil para cada. Ele deve indicar mais R$ 440 mil para municípios das mesmas regiões até o final do ano.
Procurado pela reportagem, Miguel Lombardi disse que o recurso atende “apelo da Sociedade de São Vicente de Paulo” nessas localidades e negou que a situação gere constrangimento entre os seus eleitores. “Eu sou vicentino. São hospitais nossos que atendem os nossos assistidos. Não são valores expressivos, não. São valores mesmo só para dar uma contribuição e atender as pessoas pobres”, declarou.
Dados públicos também mostram que a presidente nacional do Podemos, deputada Renata Abreu, pretende enviar R$ 1 milhão em emendas sem carimbo para uma ou mais cidades de Pernambuco. O valor aparece como autorizado no site da Câmara, mas ainda não foi empenhado pelo governo.
Em nota, ela disse que a destinação da emenda é legítima e atende a uma demanda trazida pelo ex-deputado federal pernambucano Ricardo Teobaldo (Podemos), que foi presidente estadual da sigla até maio. Teobaldo fazia parte da legislatura passada e, portanto, aprovou emendas próprias no orçamento de 2023. A deputada não detalhou que prefeituras serão beneficiadas, nem onde o recurso será gasto.
Verbas bancam hospital, projeto espacial e escritórios no exterior
As justificativas dadas pelos demais deputados paulistas para apoiarem projetos em outros Estados são diversas. Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL), por exemplo, destinou R$ 3,2 milhões para Alcântara, no Maranhão, onde está localizado o centro de lançamento do programa espacial brasileiro.
Ao pleitear o repasse no ano passado, o deputado escreveu que a proximidade do mar e a umidade elevada promovem um “ambiente muito corrosivo que acelera a degradação dos equipamentos”. Os recursos são geridos pela Força Aérea Brasileira (FAB). Procurado, o político disse que o projeto é de interesse nacional.
Ex-prefeita de São Paulo, a deputada Luiza Erundina (PSOL) solicitou o pagamento de R$ 2 milhões em emendas para bancar políticas públicas no seu Estado natal, a Paraíba. Do montante, cerca de R$ 1,6 milhão será em apoio ao Hospital do Câncer Napoleão Laureano, de João Pessoa (PB), e R$ 407 mil devem ser usados no setor da cultura. A deputada ainda alocou R$ 407 mil do orçamento impositivo para o Instituto Federal da Bahia, em Salvador (BA), dentre os recursos a que tinha direito.
Em nota, a deputada declarou que raramente destina recursos para projetos em outros Estados e que leva em consideração “não interesses eleitoreiros, mas o necessário interesse público”. Segundo ela, os deputados são eleitos para zelar pelos interesses de toda a sociedade brasileira, e não exclusivamente da população de São Paulo.
A deputada federal Maria Rosas (Republicanos) não só mandou recursos para longe de São Paulo como também para fora do Brasil. A seu pedido, o governo brasileiro vai gastar R$ 570 mil para contratar uma consultoria a fim de atuar em núcleos de atendimento a mulheres brasileiras em Orlando, Miami e Boston, nos Estados Unidos, além de bancar ações de “difusão cultural” do Instituto Guimarães Rosa, órgão ligado ao Itamaraty. Ao Estadão, a deputada disse que a verba tem como objetivo atender vítimas de violência nos chamados “Espaços da Mulher Brasileira” e oferecer reforço de língua portuguesa para crianças.
Secretário de Turismo de Tarcísio mandou R$ 4 milhões ao Pará
Quando ainda era deputado federal, o secretário de Turismo do Estado de São Paulo, Roberto de Lucena (Republicanos), determinou o envio de R$ 4 milhões para Floresta do Araguaia (PA), município de 19 mil habitantes localizado na fronteira com o Tocantins. Deste valor, R$ 2,4 milhões foram em “emenda Pix”, montante já liberado pelo governo este ano, e o restante para custeio da saúde.
A medida beneficia diretamente a prefeita da cidade paraense, Majorri Santiago (PL). Ela é filha de um pastor da Assembleia de Deus e esposa do deputado estadual Alex Santiago (PL-PA), que pertence à mesma igreja evangélica. A proximidade da família com Lucena não é recente. Em setembro de 2021, Alex Santiago propôs um projeto de decreto legislativo concedendo o título de honra ao mérito ao então deputado federal “em reconhecimento ao apoio às regiões Sul e Sudeste do Pará”.
Lucena, por sua vez, é pastor evangélico e tem laços com a cidade de Arujá, no interior de São Paulo, onde fundou a igreja O Brasil Para Cristo na década de 1990. Após falhar em sua tentativa de reeleição para a Câmara no ano passado, ele acabou convidado pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, do mesmo partido, para a chefia da pasta.
O secretário não quis dar entrevista ao Estadão. Em nota, a Secretaria de Turismo afirmou que todas as indicações de emendas de Roberto de Lucena ao longo de 12 anos de mandato “obedeceram aos critérios técnicos obrigatórios estabelecidos pela Câmara dos Deputados” e que o ex-deputado beneficiou o Estado de São Paulo em diversas áreas “com total transparência e prestação de contas”.
De acordo com a pasta estadual, o montante teria chegado a R$ 358 milhões, mas a informação não pôde ser confirmada pela reportagem. Os dados consultados mostram a destinação de emendas somente a partir de 2015. De lá para cá, foram R$ 107 milhões em emendas de Lucena pagas no Estado.
O material também mostra que o repasse para prefeituras de fora de São Paulo não é novidade. Lucena mandou R$ 190 mil para Palmeira dos Índios (AL), em 2020, e R$ 800 mil para Pau D’Arco (PA), em 2021. No orçamento do ano passado, as emendas do político contemplaram Morada Nova (CE), com R$ 1 milhão, Milhã (CE), com R$ 500 mil, Taperoá (PB), com R$ 268 mil, e Porto Alegre (RS), com R$ 200 mil.
Em sua justificativa, a equipe de Lucena declara ainda que a intenção do ex-deputado era enviar a soma de R$ 2,5 milhões para custeio a saúde e transferências especiais a Floresta do Araguaia (PA), mas as emendas sofreram ajuste linear no Congresso “sem qualquer intervenção do parlamentar”. De fato, a cota de cada deputado para emendas individuais cresceu de R$ 19,7 milhões para R$ 32,1 milhões durante a tramitação do projeto de lei orçamentária de 2023.
O nome do ex-deputado consta no levantamento das emendas dos parlamentares paulistas pelo fato de a lei orçamentária ser elaborada no ano anterior à sua vigência, o que faz com que deputados que não foram eleitos sejam responsáveis pela execução de parte do orçamento público federal do ano seguinte. Pelo mesmo motivo, o comportamento de deputados novatos só pode ser avaliado com a elaboração do novo projeto.
Foram reeleitos 43 deputados em São Paulo nas eleições de 2022, do total de 70 representantes. A Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024, que define o orçamento público do ano que vem, ainda está tramitando no Congresso, sob relatoria do deputado federal Luiz Carlos Motta (PL-SP).
Além de Lucena, outro ex-deputado que consta na lista é General Peternelli (União Brasil). Relatório de transparência mostra que o militar abriu a possibilidade de destinar parte de uma quantia de R$ 16,3 milhões para a região Norte. Pelo menos R$ 10,3 milhões devem ser usados para financiar o atendimento a populações ribeirinhas e de áreas remotas na Amazônia.
Após a publicação da reportagem, Peternelli enviou nota justificando o envio de recursos. “Os paulistas sempre estiveram à frente das grandes causas nacionais. A Amazônia é estratégica para o País e os recursos foram destinados ao novo navio hospital da Marinha, que vai atender na calha do Amazonas”, declarou o ex-deputado.