BRASÍLIA - Recursos bancados pelo BNDES permitiram que um empresário se preparasse para entrar no comércio varejista de armas e munições no Rio Grande do Sul. O financiamento para compra e venda de armamentos é expressamente proibido pelo banco de fomento. Mas uma manobra patrocinada pelo major da reserva da Polícia Militar gaúcha Ivan Keller fez com que ele obtivesse o empréstimo sem se submeter às vedações previstas pelo banco estatal.
Esta reportagem havia sido retirada do site do Estadão em 25 de agosto por ordem do desembargador Jorge Alberto Schreiner Pestana, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), atendendo a pedido do Clube de Tiro Keller. O jornal recorreu da decisão. O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), anulou a ordem judicial, derrubando a censura à reportagem.
Filiado ao PL e apoiador do ex-ministro Onyx Lorenzoni (PL), o oficial reformado da PM obteve do BNDES em 2021 um aporte de R$ 130 mil com juros de 5,45% para financiar o “ensino de esportes” no seu Clube de Tiro Keller. Um ano depois, ainda durante a vigência do contrato e antes de o financiamento ser quitado, ele se prepara para abrir uma loja de armas na cidade de Santa Cruz do Sul.
Para legalizar a nova atividade, em 1º de julho, a empresa incluiu “comércio varejista de armas e munições” em sua lista de atividades econômicas. Caso esse ramo constasse no momento em que o empréstimo foi solicitado, o financiamento não poderia ser liberado. Procurado pelo Estadão, o BNDES abriu investigação sobre o empréstimo.
A manobra do clube de tiro gaúcho preocupa especialistas em segurança pública. Com o aumento exponencial deste tipo de associação no País, o receio é que os cofres públicos financiem direta ou indiretamente a venda de armas.
Na esteira dos incentivos do governo Jair Bolsonaro (PL) para facilitar o acesso da população a armas de fogo, há hoje mais de 2 mil clubes de tiro em todo o País. A advogada Isabel Figueiredo, do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lembra que o perfil desses estabelecimentos mudou após a facilitação do acesso às armas por Bolsonaro. Não são mais locais essencialmente dedicados à atividade esportiva.
“A gente não está falando de esporte olímpico, começando, inclusive, pelos próprios calibres que foram liberados para os atiradores esportivos, que são calibres que não são sequer usados nas competições internacionais”, explica.
Gerente de advocacy do Instituto Igarapé, Michele dos Ramos avalia que o financiamento do BNDES ao comércio varejista de armas é um retrato do aumento dos clubes de tiro e de fiscalização precária sobre esses estabelecimentos. “O financiamento do BNDES ao comércio varejista de armas e munições não é permitido e as capacidades de fiscalização dessa proibição precisam ser priorizadas”, destacou.
“Além dos riscos associados ao desvio deste apoio para uma atividade expressamente proibida que este caso revela, vivemos um contexto de bastante gravidade com relação à baixa capacidade de fiscalização do estado das atividades envolvendo armas e munições e desses arsenais.”
Como mostrou o Estadão no mês passado, os CACs (colecionadores de armas, atiradores e caçadores) se articulam para a partir de 2023 formar uma bancada no Congresso. Nesse contexto, clubes de tiros e lojas de armas são vistos pelos articuladores como importantes propagadores das candidaturas. O presidente Jair Bolsonaro tem incentivado líderes dos CACs na disputa eleitoral.
A ESCOLA E A LOJA
A operação de crédito para a Escola de Tiro Keller usou dinheiro do BNDES e foi conduzida por uma intermediadora, a Badesul Desenvolvimento S.A – uma agência de fomento ligada ao governo do Rio Grande do Sul. Um contrato de empréstimo depende de cumprimento de cláusulas não financeiras, que devem ser verificadas pelas instituições. Ao ser consultada pela reportagem, a escola chegou a informar que a loja de armas entrará em funcionamento até novembro.
Apesar das vedações ao financiamento e das cláusulas que precisam ser cumpridas, os dois bancos só tomaram conhecimento da manobra após serem procurados pela reportagem.
Ao Estadão, major Keller contou que recorreu ao financiamento para pagar salários de 14 funcionários por causa da queda de receitas na pandemia. Disse que foi procurado por técnicos do Badesul e não precisou apelar a lideranças políticas locais. Segundo ele, a obra da loja está sendo tocada com “economias do dia a dia”.
O empresário nega que o financiamento do BNDES deu fôlego ao caixa da empresa e diz que não foi o recurso que, mais tarde, tornou possível a ampliação de seus negócios para um ramo não contemplado pelo banco. Segundo o major, a obra deve custar até R$ 60 mil, além do investimento futuro para criar um estoque de armas e munições.
“(O valor) vai depender dos fornecedores. Vou ter que comprar parcelados com ele. Compro lá 10 mochilas de tiro, vou vender. Compro dez botinas e vou vender”, contou.
O BNDES informou que mandou investigar possíveis irregularidades no empréstimo. O Badesul também mandou apurar o caso. “A alteração da lista de atividades desempenhadas pelo cliente ocorreu recentemente, em 1º de julho de 2022, fazendo com que a irregularidade ainda não tivesse sido identificada”, disse. “A partir da ciência dessa situação, o Badesul já comunicou ao BNDES a deliberação de sua diretoria e está em processo de liquidação antecipada dessa operação.” A decisão do Badesul fará com que a escola tenha que pagar antecipadamente todo o valor do financiamento. Não terá direito ao prazo total parcelado que foi contratado inicialmente, de 30 meses.
ATUAÇÃO POLÍTICA
Além de empresário, major Keller é instrutor de tiro e presidente da Federação Gaúcho de Tiro Prático. Em 2020, lançou-se pré-candidato à prefeitura de Santa Cruz do Sul pelo PSL, mas acabou não concorrendo. Sentiu-se “traído” pelo diretório estadual do partido.
Em 1º de abril, filiou-se ao PL. No dia 7 de julho, participou do lançamento da candidatura do ex-ministro Onyx ao governo gaúcho. “Nós fizemos parte disso”, escreveu em uma foto publicada em sua rede social, ao lado dos candidatos.
Ao Estadão, o discurso do major foi diferente. Ele disse que “política não é para gente séria” e “não quero saber de política”. “De política, eu não quero saber disso daí. Eu só fiz isso aí (filiar-se a um partido) para poder ter desempenho da parte democrática, de participação cidadã”, disse. “Todo o meu grupo aqui foi para o PL por causa do presidente da República. A gente é Bolsonaro até o fim.”