O fato verdadeiramente inédito criado pela Operação Tempus Veritatis desta quinta-feira, 8, é que ela colocou a Polícia Federal no encalço de militares de alta patente, todos suspeitos de participar de uma conspiração para promover um golpe de Estado, desrespeitando o resultado da eleição presidencial de 2022. Na lista estão dezesseis militares, entre os quais generais e um almirante que tiveram funções de destaque durante o governo de Jair Bolsonaro.
Há um longo caminho a ser percorrido após a análise do material coletado nos endereços dos investigados, mas as evidências que embasaram a operação são contundentes: incluem, por exemplo, conversas em aplicativo de mensagem e vídeos de reuniões que mostram maquinações bastante evidentes contra a ordem democrática.
Se for comprovada a culpa dos envolvidos, haverá o desafio de puni-los com a lei, muito recente, que substituiu a obsoleta Lei de Segurança Nacional, e que tipifica como crimes, por exemplo, as tentativas de golpe de Estado e de abolição do Estado Democrático de Direito. Atenção para a palavra “tentativa”. Ou seja, os atos de planejar e agir com o propósito de impedir o “exercício dos Poderes constitucionais” ou de promover um golpe já configuram crimes, não é preciso que eles atinjam seu objetivo.
Se os militares afetados pela operação da PF vierem de fato a se tornar réus e forem condenados, teremos mais um fato histórico — o Brasil tem uma tradição de anistiar militares golpistas, com base na convicção de que a punição pode alimentar o ressentimento da caserna e criar novos problemas mais à frente. Isso ocorreu na presidência de Juscelino Kubitschek e também na transição do regime militar para a atual fase democrática.
Uma eventual punição de militares de alta patente, contudo, não será o bastante para eliminar a gestação de aspirações golpistas nas Forças Armadas. O Brasil precisa reforçar o controle civil sobre os militares, como fizeram outras democracias mais consolidadas, e isso passa não apenas pela aprovação de regras que os afastem da interferência na política, como a PEC que pretende proibir os oficiais da ativa de participar de eleições ou do alto escalão do governo, mas também por uma reformulação no ensino militar.
O que os militares em formação aprendem nas instituições do Exército, por exemplo, estimula a mentalidade de que têm um papel de salvadores da pátria não apenas na defesa externa, mas também internamente, no campo político. A doutrina de contrainsurgência contra grupos políticos dos tempos do regime militar ainda tem influência nas Escolas Militares e sequer a questão de 31 de março de 1964 está pacificada. Enquanto prevalecer na cúpula das Forças Armadas, e portanto nos quarteis, o entendimento de que o que ocorreu naquela data foi uma revolução e não um golpe de Estado, não será possível confiar que os militares aceitam plenamente o controle civil sobre eles.
Durante o governo Bolsonaro, permitia-se a comemoração aberta do golpe que deu início à ditadura militar como um “movimento” que fez muito bem ao país. O general Braga Netto, um dos que agora foram alvos da operação PF, quando se tornou ministro da Defesa, em 2021, afirmou que “devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março” como um movimento que salvou o país de ameaças reais à democracia. O general Hamilton Mourão, então vice de Bolsonaro, definiu 31 de março como uma “revolução”, uma “intervenção no processo político” para conter, entre outras coisas, o “caos social” e que resultou em um “regime que empreendeu as maiores reformas de sua história”.
Enquanto não houver nas fileiras das Forças Armadas uma autocrítica em relação ao seu real papel e impacto na história recente do país, a formação das novas gerações de militares será sempre contaminada pela ideia de salvacionismo político e pela cultura do intervencionismo. E essa não é a função dos militares em uma democracia.