BRASÍLIA – O governo Lula está sob cerco político. Em apenas seis meses, Arthur Lira (PP-AL) conseguiu transformar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no refém mais pressionado da Praça dos Três Poderes, além de desafiar o Palácio do Planalto. Diante de um cenário no qual a política cada vez mais se transforma em balcão de negócios, Lula não consegue aprovar nenhum projeto de lei se não tiver votos do Centrão, grupo de partidos controlado por Lira.
Desde 1988, quando Ulysses Guimarães liderou a Assembleia Nacional Constituinte, nenhum presidente da Câmara dos Deputados desfrutou de tanto poder quanto Lira. No início desta semana, por exemplo, auxiliares de Lula se debruçavam sobre mapas de cargos nos Estados. A estratégia traçada era para conquistar mais 120 votos na Câmara, uma vez que partidos de esquerda entregam ao Planalto no máximo 140. Se quiser aprovar um projeto de lei complementar, Lula precisa do apoio de 257 deputados.
O blocão formado por Lira reúne nove partidos, como PP, União Brasil, PSDB e PSB e captura um terço da Câmara, mas ele próprio consegue aglutinar muito mais adesões, como mostrou o painel de votação desta quarta-feira, 14, quando a Casa aprovou a jato projeto que prevê prisão de até quatro anos para quem discriminar políticos até mesmo ao rejeitar a abertura de uma conta bancária.
O pedido de uma força-tarefa para melhorar o relacionamento com o Congresso será feito por Lula, nesta quinta-feira, 15, durante reunião ministerial. Além de substituir a ministra do Turismo, Daniela Carneiro – que vai se desfiliar do União Brasil –, o presidente fará mudanças em cargos de segundo escalão nos Estados para abrigar indicados de partidos divididos, como o PP e o Republicanos. Longe de Brasília, até integrantes do PL, legenda do ex-presidente Jair Bolsonaro, estão no radar do governo.
As mudanças na equipe têm o objetivo de ampliar a base aliada de Lula no Congresso com perfil conservador no momento em que Lira ameaça não pôr em votação projetos de interesse do Planalto. A exceção fica por conta da proposta que estabelece a regra de desempate em julgamentos no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) e, ainda, da reforma tributária. Mesmo assim, Lira já cobrou um texto “pormenorizado” da reforma, sob a alegação de que até hoje o governo só apresentou “diretrizes”.
“Sou um facilitador, mas a obrigação de colocar a base no plenário para votar é tarefa do governo, não minha”, costuma dizer o presidente da Câmara. Em mais de uma ocasião, Lira afirmou não ser “Mãe Dinah” nem “João de Deus” para conseguir votos sem ter os “instrumentos” necessários.
Para fechar ainda mais o cerco, aliados de Lira avaliam agora encaixar um dispositivo na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para obrigar o Executivo a pagar as emendas parlamentares em ordem cronológica.
O Centrão se queixa de que ministros beneficiam primeiro seus redutos eleitorais na distribuição dos recursos que ficaram sob controle do governo após o fim do orçamento secreto, prática revelada pelo Estadão. Além disso, há reclamações sobre o Ministério da Saúde, que exige “projetos detalhados” para liberar verba aos deputados.
Antigo feudo político do PP de Lira, a Saúde tem um orçamento de R$ 188,3 bilhões e, como mostrou o Estadão, é a pasta mais cobiçada pelo partido. O presidente da Câmara nega que esteja atrelando a pauta de votações a barganhas desse tipo, mas seus aliados admitem a predileção pelo ministério dirigido por Nísia Trindade.
Na outra ponta, os ministros de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e da Casa Civil, Rui Costa, também são alvo de tiroteio do Centrão. Costa almoçou nesta quarta-feira com o líder do União Brasil na Câmara, Elmar Nascimento (BA), amigo de Lira.
“Nós sabemos que não vai ser como era na gestão Bolsonaro, mas o governo tem de fazer alguns gestos para ampliar a base porque, se não for assim, a temperatura vai aumentar”, disse Elmar, que chegou a ter o nome cotado para o Ministério da Integração, em dezembro, mas foi vetado por Costa.
Padilha, por sua vez, recebeu em seu gabinete, nos últimos dias, ministros de várias pastas, como Cidades, Transportes, Gestão e Minas e Energia. De todos, cobrou a liberação de “demandas reprimidas” apresentadas por parlamentares. Em outras palavras, cargos.
“Lira tem influência porque construiu essa liderança. Ele foi reeleito com 464 votos de deputados, inclusive do PT”, afirmou o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (BA), em uma referência ao tamanho da vitória de Lira, obtida no primeiro turno, em 2 de fevereiro.
Elmar Nascimento (BA), deputado e líder do União Brasil na Câmara
Na avaliação de Wagner, as dificuldades enfrentadas pelo Planalto em votações na Câmara – como na análise da Medida Provisória que reestruturou o governo – serão superadas. Sob pressão de Lira e da bancada ruralista, o Planalto teve de aceitar a desidratação de ministérios, como o do Meio Ambiente e o dos Povos Indígenas.
“O presidente da Câmara está disputando o espaço dele de poder, que Lula considera natural. É óbvio que a gente preferiria que as coisas fossem mais fáceis, mas, na democracia, nunca são”, resumiu o líder do governo no Senado.
Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo no Senado
Alçado ao altíssimo clero por Bolsonaro, Lira conseguiu dominar a Casa de Salão Verde com um pacote de bondades. As medidas vão do aumento do auxílio-moradia para deputados – de R$ 4.253 para R$ 8.401 – ao reembolso de combustíveis (R$ 9.392) e de até quatro passagens aéreas de ida e volta por mês. Na sua gestão, o valor das emendas impositivas também saltou para R$ 33 milhões por ano para cada deputado.
Planalto recorre ao Senado para tentar frear Centrão
Até agora, a estratégia de Lula foi recorrer ao Senado, presidido por Rodrigo Pacheco (PSD-MG), na tentativa de frear o apetite do Centrão na Câmara. É na Casa de Salão Azul que o governo conta com maioria mais consolidada – aproximadamente 48 dos 81 votos. Lá estão, por exemplo, medidas como o Marco do Saneamento e o Marco Temporal de Terras Indígenas. O governo foi derrotado nessas duas propostas, com apoio de Lira.
Na prática, o presidente da Câmara percebeu o movimento para tentar isolá-lo e deu o troco no Planalto. “Em momento algum o governo prestou atenção no fato de que não estava conseguindo construir a maioria. Caiu no jogo do Lira que, cada vez mais, deu corda para o PT se enforcar”, afirmou o consultor político João Henrique Hummel, diretor-executivo da Action Relações Governamentais.
No seu diagnóstico, Lula “corre perigo” até de sofrer impeachment enquanto não se aproximar da centro-direita. “Ele vai ter de sentar e achar uma pauta com o centro, com o agronegócio, porque, a cada dia que passa, fica mais na mão do Lira”, disse Hummel.
Carlos Melo, cientista político e professor do Insper
Atualmente, há sete pedidos de afastamento de Lula protocolados na Câmara. Cabe ao presidente da Casa a decisão de despachá-los para o plenário ou deixar que adormeçam na gaveta. A portas fechadas, Lira disse que não é Eduardo Cunha, apesar de ser discípulo do ex-presidente da Câmara. Foi Cunha que, em dezembro de 2015, deu o pontapé inicial para o processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Há duas semanas, quando uma operação da Polícia Federal fez busca e apreensão em endereços ligados a um ex-assessor de Lira, acusado de desviar recursos de kits de robótica em Alagoas, o clima azedou ainda mais para o governo. Motivo: o deputado viu ali uma articulação do Planalto e do senador Renan Calheiros (MDB-AL), aliado de primeira hora de Lula e seu histórico adversário, para emparedá-lo e tirar os holofotes da crise no núcleo duro palaciano. Horas depois da diligência da PF, o ministro da Justiça, Flávio Dino, foi à residência oficial da Câmara conversar com Lira e negou interferência no episódio.
Governo precisa recuperar protagonismo, diz petista
“Logo no início do ano, o governo poderia ter montado um bloco com o MDB e o PSB, mas decidiu não fazer isso. Foi um grande erro”, avaliou o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ). “Com essa opção, o Executivo deixou de ser um polo organizador de sua base e terceirizou tudo para o Lira. Agora, tem de recuperar o protagonismo.”
Não se trata de uma tarefa fácil. Nessa entressafra política, os partidos começam a se articular para as eleições municipais de 2024 e acompanham com lupa os movimentos do Planalto e a popularidade do presidente.
“As eleições de 2024 são estratégicas e o governo tem de dar respostas rápidas na economia para sair dessa situação de fragilidade”, argumentou o cientista político Carlos Melo, professor do Insper. “O problema é que Lula achou que as regras do jogo eram as mesmas de quando ele dirigiu o País, de 2003 a 2010, e compôs a base com a distribuição de ministérios. Mas tudo mudou.”
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E como sair dessa encruzilhada? Ao menos por enquanto, todos os caminhos levam a Lira. “Eduardo Cunha ensinou que uma pauta-bomba sempre pode explodir no colo do governo”, disse Melo. “Antes, o centro aglutinador era o MDB, mas Lira fechou o Centrão em torno dele e Lula não ampliou as bases sociais.”
A saída, na opinião do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, é adotar o semipresidencialismo no Brasil. “Nesse modelo, o presidente da República poderia buscar fazer maioria congressual”, declarou Gilmar, para quem o presidencialismo de coalizão virou uma fonte inesgotável de crises.
Lira concorda e até patrocinou, em 2021, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que mantinha o presidente eleito pelo voto direto, mas delegava a chefia do governo para o primeiro-ministro, aumentando o poder do Congresso. “Qual o problema aqui? O presidente da República já se elege com o impeachment do lado”, constatou Lira, na ocasião. “Ninguém aguenta isso. O semipresidencialismo é a forma de estabilizar a política dentro do Congresso.”
A ideia teve apoio de Gilmar e de nomes de peso do mundo político e jurídico, mas também recebeu muitas críticas, principalmente por parte do PT, e não conseguiu nem mesmo as 171 assinaturas necessárias para começar a tramitar na Câmara.