Durante as eleições municipais de 2024, o prefeito de Salvador, Bruno Reis (União) – então candidato à reeleição – apareceu em um vídeo dançando ao som de seu jingle de campanha. Na gravação, ele executa a coreografia de um pagode baiano ao lado de dois dançarinos. Publicado em suas redes sociais, o vídeo inofensivo é, na verdade, uma deepfake em que o rosto de Reis foi inserido no corpo de outra pessoa.
Com a popularização da inteligência artificial (IA) generativa, a manipulação de conteúdos tornou-se mais acessível, e outros casos, nem sempre inofensivos, foram registrados por todo o País. Em Manaus, um áudio falso atribuiu ao prefeito David Almeida (Avante) ofensas a professores da rede municipal. Já em São Paulo, imagens manipuladas mostraram a deputada federal Tabata Amaral (PSB) em poses de cunho sexual.
Apesar dos casos levados à Justiça Eleitoral, o temido “apocalipse da desinformação” não se concretizou. Especialistas ouvidos pelo Estadão avaliam que o uso de IA para criar desinformação foi limitado, e a maioria das fake news que circularam não utilizou essa tecnologia. Essa também é a conclusão do relatório “IA no primeiro turno: o que vimos até aqui”, publicado pelo Aláfia Lab e Data Privacy Brasil após a primeira fase da disputa.
O documento alerta para episódios de violência de gênero, no quais candidatas mulheres foram vítimas de deepnudes (fotos eróticas geradas por IA). “Para as próximas eleições, é preciso considerar que o uso de tecnologias e aplicações de IA tende a se integrar cada vez mais no dia a dia das pessoas e na produção e consumo de informação por elas”, diz o relatório, indicando que nas eleições gerais de 2026, o uso de IA poderá ser massivo.
Parte do temor de que as eleições municipais pudessem ser comprometidas pelo uso de IA está relacionado tanto ao avanço da tecnologia desde o lançamento do ChatGPT, em novembro de 2022, quanto a exemplos internacionais. Na Argentina e na Índia, a ferramenta foi amplamente utilizada para ataques políticos. Na Turquia, um candidato à presidência abandonou a disputa após a circulação de uma deepfake com conteúdo pornográfico.
Tempestade perfeita se forma para eleições de 2026
O professor Diogo Rais, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, defende que a desinformação é impulsionada mais pelo comportamento humano do que pela tecnologia. Especialista em Direito Eleitoral e Direito Digital, ele afirma que a fragmentação das disputas municipais e a proximidade entre candidatos e eleitores na maioria das cidades brasileiras limitaram o impacto negativo da IA neste pleito.
Rais, que também é juiz substituto no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) no biênio 2024-2025, ressalta que a dinâmica da desinformação em eleições municipais difere das nacionais. Isso acontece porque a maioria das cidades brasileiras são de pequeno e médio porte – 70% possuem até 20 mil habitantes, segundo o último Censo –, o que aproxima os atores políticos da população e facilita a checagem de conteúdo falso produzido por IA.
Diogo Rais, professor e juiz substituto no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP)
Nas cidades com mais de 100 mil habitantes – que representam 6% dos municípios brasileiros –, Rais aponta um volume significativo de desinformação. Segundo ele, disputas em cidades como São Paulo e Rio funcionam como um prelúdio para as eleições nacionais. “Nesses casos, vimos, sim, algumas tentativas de uso de IA generativa. Talvez em menor escala ou com menos impacto, mas elas ocorreram”, afirma o juiz do TRE-SP.
“Isso nos leva a um conceito interessante que vem sendo discutido: a comparação entre deepfake e cheap fake. A cheap fake é uma fake news grosseira, barata e sem grande sofisticação. Foi o que predominou nestas eleições. Não tenho dados concretos, mas, pelo que observei, as cheap fakes superaram as deepfakes”, afirma Rais.
No entanto, o especialista alerta que, em disputas nacionais, as deepfakes tendem a ser mais violentas e sofisticadas. Isso ocorre devido ao maior nível de polarização, à ampla disponibilidade de bancos de imagens dos candidatos em ambientes online – base para a criação das deepfakes –, à maior oferta de recursos financeiros e ao distanciamento entre candidatos e eleitores.
“Essa combinação de fatores cria uma ‘tempestade perfeita’ para o uso de ferramentas como IA generativa. Apesar de não termos visto um uso massivo até agora, acredito que o risco aumenta consideravelmente em eleições nacionais. Esse será um enorme desafio a ser enfrentado”, avalia.
Justiça Eleitoral tem diferentes entendimentos sobre uso de deepfakes
Embora reconheça que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) desempenhou um papel relevante ao editar uma resolução para regular o uso de IA, a professora Tainá Aguiar Junquilho, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), mantém um ceticismo sobre o controle dessa tecnologia no Brasil. Especialista em Direito, Tecnologia e Inovação, ela aponta desafios para o controle, punição e identificação do que é ou não deepfake por parte da Justiça.
“Houve uma grande disseminação de desinformação. Infelizmente, temos observado essa escalada. Mas há uma dificuldade de controle, o que resulta em poucas decisões na esfera eleitoral e em uma subnotificação por parte das plataformas. Acredito que não sejam poucos os casos, mas que enfrentamos dificuldades de identificação e uma certa inação das plataformas”, afirma.
Coautora do estudo “Construindo consensos: deepfakes nas eleições de 2024″, publicado pelo IDP, Tainá analisou, junto a outros pesquisadores, o impacto da regulação do TSE. O grupo examinou decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e identificou 57 casos envolvendo deepfakes em contextos eleitorais. Desses, 56 foram analisados e um segue sob sigilo judicial. A pesquisa revelou a complexidade de classificar e regulamentar essas tecnologias.
“Para julgar casos como esses é preciso ter um know-how técnico, você precisa de uma adequação do fato à norma. Os juízes tiveram muita dificuldade de fazer essa adequação do conteúdo à norma, muito provavelmente porque ela precisa ainda de alguns ajustes para a próxima eleição”, disse a especialista. “Para superar esse desafio, primeiro é necessário uma regulação robusta, elaborada pelo Congresso Nacional. Isso tem que estar incluído, inclusive, no Código Eleitoral.”
A análise apontou três entendimentos diferentes da Justiça Eleitoral sobre o uso de IA generativa:
- Permissão condicionada: autoriza deepfakes desde que não envolvam pedidos explícitos de voto, desinformação ou apelos contra candidatos;
- Proibição total: veta qualquer uso de deepfakes;
- Restrição baseada na manipulação: avalia o grau de manipulação e o contexto para decidir sobre a restrição.
Exemplos dessas abordagens ocorreram em Uberlândia e São Paulo, por exemplo. Na primeira, a Justiça Eleitoral derrubou uma deepfake divulgada pelo candidato à prefeitura, Leonídio Bouças (PSDB). O vídeo, gerado por IA, mostrava Gustavo Galassi (Republicanos), vice na chapa, abraçando seu falecido avô, o ex-prefeito Virgílio Galassi. Apesar de ser uma homenagem, a imagem promovia a candidatura com situação fictícia.
Em São Paulo, o TRE-SP considerou legal uma deepfake feita pela campanha de Tabata Amaral contra Ricardo Nunes (MDB). O vídeo inseriu o rosto do prefeito no corpo do personagem Ken, do filme “Barbie”, sem violação da legislação eleitoral, segundo o Tribunal.
IA impacta processos não visíveis ao público
Apesar de o uso de IA nas campanhas de 2024 ter sido mais tímido do que o esperado, o consultor de marketing político Marcelo Vitorino destaca que essas ferramentas têm maior impacto nos processos internos das campanhas do que em ações visíveis ao público. Essas tecnologias são usadas para análise de dados, planejamento estratégico, estudos de viabilidade eleitoral e outras aplicações.
“A adoção dessas ferramentas ainda enfrenta desafios”, diz Vitorino, que também atua como professor de Comunicação e Marketing Político na ESPM. “As tecnologias são muito novas e há poucos profissionais que combinam o conhecimento técnico necessário com um repertório sólido de conteúdo, o que limita o uso mais amplo da inteligência artificial no contexto das campanhas”.
O especialista em marketing político considera que a legislação eleitoral teve um papel decisivo ao limitar o uso exagerado e negativo da inteligência artificial, como as deepfakes. Segundo ele, houve um esforço do Judiciário para conter excessos, e essa medida foi eficaz. Em sua avaliação, as campanhas evitaram, ao menos oficialmente, utilizar ferramentas de IA para espalhar desinformação ou promover ataques difamatórios.
“Mesmo quando esses recursos foram utilizados de maneira não oficial – por militância de guerrilha ou grupos paralelos – o impacto foi limitado. Isso aconteceu porque as plataformas, como redes sociais e aplicativos de mensagem, também implementaram mecanismos para restringir a distribuição desse tipo de conteúdo”, avalia.
André Gualtieri, especialista em ética de Inteligência Artificial e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, destaca o rápido avanço da tecnologia. Ele acredita que o uso de IA generativa nas eleições é inevitável e aponta seu potencial benéfico, como a redução dos custos de campanha. “Um material que antes exigiria, por exemplo, uma grande equipe de filmagem e um cenário com muitas pessoas, pode ser produzido a um custo muito menor”.
Para o especialista, em 2026 será crucial a experiência da Justiça Eleitoral no julgamento de casos, ainda que poucos, envolvendo deepfakes. Gualtieri ressalta que, até lá, haverá tempo para debates e ajustes, como a definição precisa de deepfakes pelos Tribunais Regionais Eleitorais. O professor também participou do estudo “Construindo consensos: deepfakes nas eleições de 2024″.