Trinta e dois anos depois de concluído o processo de redemocratização, o sistema partidário brasileiro destoa de outros países e ainda mantém sob o controle de “caciques” a escolha dos seus candidatos. Apesar de iniciativas isoladas, a maioria das 33 legendas registradas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não possui critérios rígidos para a definição de seus representantes nas urnas.
A legislação não obriga os partidos a fazer consultas internas para selecionar seus candidatos. Em diversos casos, os dirigentes nacionais detêm até o poder de escolher livremente os representantes dos diretórios locais. Com isso, nomeiam seus próprios eleitores internos – delegados que os mantém à frente da executiva, o que contribui para a falta de democracia orgânica nas agremiações.
PT, PSDB e PSOL são os únicos partidos que promoveram prévias para a escolha de candidatos para as eleições em cidades grandes.
Dos 33 partidos brasileiros, o Novo é o único que adota um critério “empresarial” na hora de selecionar seus candidatos, que passam por um processo seletivo com várias etapas. “É como o processo seletivo de uma empresa. O filiado passa por um comitê de avaliação, análise de currículo e depois de alinhamento ideológico através de provas. Não precisa ter padrinho político”, disse Eduardo Ribeiro, presidente nacional do Novo.
Apesar de não promover prévias, o Cidadania foi o primeiro partido a se abrir e compor com grupos de renovação política. A sigla estabeleceu uma norma interna que todos os filiados que tenham feito o curso do RenovaBR terão vaga garantida para disputar o cargo de vereador em 2020. O grupo formou este ano 650 alunos de 30 partidos, mas não sabe informar quantos vão disputar eleições.
O Cidadania, que já foi PCB e PPS, no entanto, é comandado pelo ex-deputado Roberto Freire desde 1990. Ele disse que a legenda já teve disputas em convenções, mas avalia que o Brasil não teria como seguir o exemplo dos Estados Unidos de promover primárias abertas a todos os filiados para a escolha de seus candidatos em todos os níveis. “A tradição no Brasil é as lideranças analisarem os nomes”, disse.
A Constituição garante às legendas “autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal”.
“A Carta de 1988 fez questão de garantir um alto grau de autonomia aos partidos”, disse o advogado e especialista em direito eleitoral, Fernando Neisser. Mas a autonomia, ressalta Neisser, não é independência. “Uma empresa tem autonomia mas ainda tem que respeitar uma série de regras de contabilidade, segurança, etc”.
Segundo ele, uma saída que está de acordo com as regras vigentes no País seria a de aprovar leis segundo as quais o recebimento de uma fatia dos recursos públicos repassado às siglas – como os fundos e o tempo de rádio e TV – dependa do alinhamento com outros preceitos constitucionais, como transparência e inclusão.
Centralização
Além de rechaçar a ideia das prévias obrigatórias, o Congresso – composto de representantes eleitos por intermédio das siglas – também tem contribuído para manter a concentração de poder entre os chamados “caciques” partidários. No ano passado, os parlamentares alteraram a lei dos partidos para garantir prazo de oito anos aos diretórios locais de livre nomeação do presidente nacional.
Esses diretórios nomeados, chamados de comissões provisórias, são usados por executivas nacionais das siglas para se perpetuar no comando. Embora o presidente nacional seja eleito, quem tem poder de voto é, na prática, escolhido por ele. “A democracia interna exige prática. Quando a liderança local exerce influência no partido, é natural que sua indicação seja acompanhada pela militância”, disse César Gontijo, tesoureiro nacional do PSDB.
Os partidos PL, PMB, PRTB, PSC e Republicanos não possuem diretório estadual definitivo – ou seja, todos os chefes estaduais das siglas podem ser destituídos a qualquer momento pela direção nacional. Avante e PSL possuem um único diretório estadual definitivo.
O TSE tentou, em 2016, sem sucesso, criar regras que limitassem a existência de comissões provisórias. A então ministra Luciana Lóssio afirmou, em seu voto, que o PL (na época, PR), tinha todos os seus diretórios estaduais funcionando de maneira provisória há mais de dez anos. “Os órgãos intermediários da representação democrática não querem ser democráticos”, comentou na ocasião.
Para o cientista político Luiz Felipe D'ávila, fundador e presidente do Centro de Liderança Pública (CLP), o Brasil precisa investir em uma nova de lei de governança para os partidos. “É preciso livrar o comando das legendas da interferência política. Os partidos precisam ter uma gestão profissional para se democratizar”, disse. A ONG reuniu juristas e elaborou um documento com propostas para que os partidos tenham dirigentes profissionais e assim seja aberto espaço para que o militante da base seja efetivamente consultado no momento de formação das chapas.
Ano passado, o vereador de São Paulo Eduardo Suplicy (PT) sugeriu, em reuniões da direção executiva do seu partido, que a legenda articulasse com PCdoB, PSOL e outros de esquerda uma candidatura única para prefeito da capital paulista. A ideia era seguir exemplos de Uruguai, Espanha e Portugal, onde siglas de determinado campo político costumam se juntam em frentes amplas. “Os filiados e simpatizantes de todos os partidos poderiam votar, mas a proposta foi rejeitada”, disse Suplicy.
Regra de 30% de fundo eleitoral para mulheres ainda gera dúvida
Embora a exigência de destinar 30% do fundo eleitoral para mulheres esteja valendo desde a eleição de 2018, dirigentes de partidos políticos ainda têm dúvidas sobre a regra. Não está claro, para eles, se para atingir a cota vale apenas o dinheiro destinado às candidatas a vereadora ou se campanhas para prefeitas e vices entram na conta.
“Perguntamos informalmente ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) se esse dinheiro pode ser distribuído a candidatas a vereadoras, prefeitas e vice-prefeitas. Se não vier uma manifestação do TSE, esses 30% podem ser para todos os tipos”, afirma o presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab. O presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, citou a dúvida de Kassab em uma live realizada quinta-feira com representantes da bancada feminina na Câmara dos Deputados.
A confusão acontece porque, por um lado, a exigência da destinação de 30% do fundo eleitoral a candidaturas femininas é fruto de uma regra anterior que só diz respeito a candidaturas proporcionais, como vereadores e deputados: a de que as mulheres sejam ao menos 30% das candidatas de cada legenda. Por outro, o Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou o repasse às mulheres dessa mesma cota do fundo partidário, tratou de todas as candidaturas.
“Já tem um tempo que o PSOL vem incentivando a participação das mulheres, além das candidaturas femininas. Ainda assim, 2018 já foi um desafio maior, principalmente porque tem algumas perguntas que o TSE não responde objetivamente”, afirmou José Ibiapino, membro executiva nacional do PSOL que é responsável por formular a proposta de distribuição dos recursos do fundo.
A situação tem gerado entre os partidos uma busca por vices mulheres como forma de a atingir a cota de 30% gastando na campanha para a prefeitura. No caso do PSDB, que elegeu 793 prefeitos em 2016, a ideia é dar praticamente todo dinheiro do fundo eleitoral a candidatos das chapas majoritárias. “As mulheres terão individualmente mais recursos que os homens nos Estados onde não houver 30% de candidaturas femininas”, afirmou Gontijo.
“Em 2018 já se usou essa verba nas candidaturas a vice, para quem tinha candidata a vice-governador mulher nas chapas. A intenção inicial não era essa porque, quando houve a decisão do STF e a normativa do TSE, a ideia era que você teria o aporte às candidaturas previstas pelas cotas femininas”, diz a cientista política Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, e coordenadora do Grupo de Pesquisas sobre Democracia e Desigualdades.
O TSE informou que não há regra específica sobre quanto dos 30% deve ir às candidaturas majoritárias e quanto deve ir às candidaturas proporcionais. O tema ainda pode ser alvo de deliberação, caso seja apresentado questionamento formal. Por enquanto, os partidos têm autonomia para decidir.
Três perguntas para Eduardo Grin, cientista político da FGV
1. A autonomia partidária favorece a concentração de poder entre os caciques?
Sim. Não há dúvida de que, como a experiência histórica tem mostrado, à esquerda e à direita, existem partidos que são controlados por caciques há décadas. É um problema associado a outros, como falta de transparência partidária e de controle dos filiados sobre as decisões e escolha dos candidatos. O controle dos partidos no Brasil, no que diz respeito à possibilidade de existir maior democracia e participação interna, é uma questão que temos que enfrentar.
2. Os movimentos de renovação política são resposta à estafa do eleitorado frente à falta de democracia interna das legendas?
Eu acho que sim, por um lado, mas a gente precisa também considerar que a legislação brasileira não permite candidaturas que não sejam por meio de partidos. Então, de alguma maneira os candidatos desses movimentos de renovação vão precisar entrar em acordo formal com algum partido, como aconteceu com a deputada Tabata Amaral, que se candidatou pelo PDT.
3. Houve mais renovação em 2018?
As regras criam incentivos para que a gente vá, cada vez mais, dificultado novos entrantes na política. A eleição de 2018 foi uma exceção e elegeu muitas figuras que a gente diria que são novas, mas o contexto era de muita rejeição da política. A regra favorece pouca renovação e muito poder concentrado na mão dos caciques, porque eles decidem como vão usar o dinheiro.