As manchetes se repetem. A realidade não muda. Todo ano somos massacrados pela frágil prestação de contas dos partidos políticos, e pelo uso questionável de parte dos recursos públicos destinados às legendas. Donos do monopólio da representação política eleitoral, o que não discuto por entender como fenômeno legítimo, tais organizações são legalmente livres para se organizarem. Mas vivendo sob forte dependência de dinheiro público, a lógica de respeito, transparência e afeição republicana é urgente. E isso não existe, a se medir pelo fato de existir um movimento chamado Transparência Partidária que nasceu para exigir respeito com o que uma legenda simboliza e consome.
Numa democracia saudável partidos deveriam ter adeptos e financiadores que minimamente se aproximassem de suas realidades com base em ideologias, causas e interesses de ordem geral. Um detalhe importante: no Brasil, a despeito do modo como isso ocorre, existiam em dezembro passado mais de 16 milhões de filiações partidárias – mais de 10% do eleitorado.
Mas o que o senso comum, e em alguma medida as pesquisas mostram é que a afeição de grandes contingentes de cidadãos às legendas não faz parte da realidade. A sustentabilidade econômica e política de tais organizações deveria se dar a partir da capacidade de um partido mobilizar quem se afeiçoa às suas bandeiras e práticas, o que apenas explica as origens históricas, mas não o presente, do PT e ancora a existência do Novo.
Assim, não existe outra solução para o que se pode chamar de sustentabilidade partidária: a legenda fala, o eleitor escuta, se aproxima, contribui financeiramente, recebe contrapartidas associadas ao uso consciente do recurso empregado e das ações promovidas com transparência e respeito. Simples assim. Funciona, em partes, com clubes de futebol, igrejas, organizações do terceiro setor, causas sociais etc. Por que não com os partidos? Porque a democracia adoeceu, e ao invés de procurar a cura no aprimoramento da política, e na relação com o eleitorado, as legendas avançaram sobre as empresas, o serviço público e os recursos federais. Resultado: criamos monstros, e para contê-los, sequer a sensação de justiça existe. Ou você já viu um partido ser fechado por conta de ilícitos? As punições são brandas e/ou esquecidas.
No universo empresarial uma das formas frágeis de conter absurdos partiu questionavelmente do ativo STF, que considerou inconstitucional a doação de empresas para campanhas após o pleito de 2014. A partir de então, em 2016 tivemos uma eleição quase secreta, sensação revertida em 2018 com a criação do Fundo Eleitoral, que se juntou ao Fundo Partidário e ao Horário Eleitoral “Gratuito” de Rádio e TV em montantes bilionários.
Soma-se a esse oceano de dinheiro, que deveria ser legitimado, o uso do serviço público em benefício das campanhas. Servidores comissionados de toda ordem, em boa medida, se travestem de cabos eleitorais, desequilibrando o jogo político. Servidores de carreira tiram licenças remuneradas legalizadas para suas próprias campanhas, algo que em 2016 foi estimado em mais de R$ 1 bilhão em salários pagos para estatutários desfalcarem repartições para pedirem votos para si.
Mas não acaba aqui. Para além do universo empresarial e do serviço público, os partidos também avançaram sobre o orçamento da União. O Fundo Partidário que entre 1996 e 1999 ficou na casa anual dos R$ 100 milhões, faz alguns anos já flerta com R$ 1 bilhão. A inflação do período 2000 a 2020, por exemplo, elevaria os R$ 100 milhões de outrora para menos de R$ 360 milhões. O Fundo Eleitoral que nasceu abaixo de R$ 2 bilhões, em quatro anos pode triplicar. Tais movimentos geram conflitos. Desde que nasceu, o partido Novo contesta esses recursos na justiça, e recentemente apresentou ação contrária ao aumento do Fundo Eleitoral para 2022. A Advocacia Geral da União, por sua vez, questionada pelo ministro André Mendonça (STF) sobre a constitucionalidade do recurso, se posicionou favorável ao investimento e entendeu que mudar os valores previstos geraria instabilidade. Além disso, em mais uma frente de conflitos, o parlamento sugeriu um valor e Jair Bolsonaro negocia reduções antes da sanção do orçamento – ao mesmo tempo em que o parecer do Executivo (AGU) tratou de falar em até R$ 5,7 bilhões.
A despeito de tais polêmicas, o erro maior parece que está justamente na lógica de longo prazo de tais garantias financeiras. Partidos políticos devem ser entendidos como organizações cruciais à representação, mas eles precisam mostrar que têm força para pararem de pé. Para tanto, a destinação de recursos públicos precisa ser calculada no tempo que tais entidades precisam para se equilibrarem. O Estado não pode ser um sustentador eterno em ritmo crescente e imensurável, sendo no máximo uma “incubadora da Democracia”. Veja o caso da cláusula de desempenho, inicialmente aprovada em meados dos anos 90, descartada sem valer pelo ativismo judicial de 2006, e que está em vigor em nova versão desde 2018. O que ela diz? Partido que não atinge performance elevada nas urnas, com base na Câmara dos Deputados, deixa de acessar grande parte do dinheiro público. Perfeito. Mas é sério que esse recurso, a despeito de uma esperada, no médio prazo, redução no total de partidos, aumenta regularmente? Leia o que está escrito: eu concentro os partidos, dou sentido de eternidade ao subsídio estatal e elevo o montante sem critério racional.
É urgente a criação de um mecanismo de redução do dinheiro de forma planejada no médio prazo, para inspirar a legitimação de tais entidades e estimular fusões, inovações e reorganizações. A cada eleição devemos ter X% menos de investimento público. Por uma razão simples: com menos partidos, e tempo para se consolidarem, é esperado que esse tipo de entidade passe a ser sustentada diretamente por seus adoradores. Impossível? Atualmente sim, em dois sentidos. Primeiro: dependemos dos próprios partidos para uma decisão desse tipo, e em certa medida dependemos de nós, que temos dificuldades para admirá-los. Você daria dinheiro para um partido? Provavelmente: não. Pois é. O Estado dá, e esse dinheiro é nosso. Segundo: não existem partidos acostumados com estratégias organizacionais sustentáveis econômica e politicamente – fruto do adoecimento da democracia, da ausência de visão estratégica nas legendas, e, principalmente, da existência de uma torneira de ouro, aberta, que jorra dinheiro público.
* É CIENTISTA POLÍTICO, COORDENADOR DA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA DA FESP-SP E DO BLOG LEGIS-ATIVO DO ESTADÃO