RIO - Derrotado pelo ex-prefeito Eduardo Paes (DEM), que voltará à prefeitura, Marcelo Crivella (Republicanos) teve o pior resultado de um candidato em segundo turno no Rio desde a redemocratização, e foi o segundo prefeito não reeleito. Ficou com apenas 36%dos votos, ante 64% do adversário. O resultado, uma derrota por diferença de 715.619 sufrágios e em todas as zonas da cidade, ilustra o baque de um mandatário de gestão sem marca definida, com mais de 50% de rejeição e que, para tentar se reeleger, apelou para ataques pessoais e fake news requentadas de outras eleições.
A derrota de Crivella pode ser explicada, em primeiro lugar, pela sua gestão. Ou, no caso, pela dificuldade dos cariocas em entender o que foi feito por ele nos últimos quatro anos. Para além de ideologias políticas, há um entendimento de que o prefeito não deixou uma marca: não se sabe o que o mandato representou para a cidade.
Ele chega ao fim com serviços públicos deteriorados e ruas esburacadas, tomadas por população em situação de rua sem assistência social. O eleitorado retribuiu negando-lhe a reeleição - foi o segundo prefeito da história do Rio, dos que tentaram se reeleger, a fracassar nesse objetivo.
O bispo licenciado da Igreja Universal assumiu a prefeitura no contexto de crise econômica do País e num momento em que o Rio começava a viver a ressaca dos anos de fartura promovida pelos grandes eventos, como a Olimpíada. A promessa do prefeito na campanha de 2016 era “cuidar das pessoas”, em contraponto ao que considerava um período - de Eduardo Paes - marcado apenas por obras caras e de utilidade posterior duvidosa.
Além da gestão apagada, Crivella foi protagonista de alguns escândalos. Vários teriam potencial para afastá-lo do cargo, não fosse a base que conseguiu construir na Câmara Municipal para barrar os pedidos de impeachment. Um deles chegou a ser aberto, mas o prefeito se safou. O documento versava sobre contratos supostamente fraudulentos voltados para a publicidade da prefeitura no mobiliário da cidade.
Mais recentemente, pouco antes da eleição, dois pedidos foram votados, mas não foram abertos - porque, num momento pré-eleitoral, acordos para a disputa fizeram o prefeito se safar. O primeiro tinha como base o caso dos “Guardiões do Crivella”, revelado pela TV Globo. Servidores da prefeitura faziam “plantões” na porta de hospitais para impedir que reportagens de televisão fizessem denúncias sobre o mau funcionamento das unidades de Saúde. Ocupantes de cargos de confiança, os envolvidos agiam com truculência e de forma ameaçadora contra jornalistas e entrevistados.
O segundo escândalo, pouco depois, foi inspirado na investigação sobre o suposto “QG da Propina” no Executivo carioca. Crivella chegou a ser alvo de busca e apreensão nessa apuração. Ela aponta para um esquema de favorecimento a empresas em contratos com o poder público.
Outros casos viraram marcantes durante a administração e geraram até bordão. Um exemplo é o "Fala com a Márcia", episódio em que o prefeito orientou aliados religiosos a procurarem uma assessora quando precisassem de atendimento prioritário na Saúde. Em linha parecida, promoveu um evento com funcionários da prefeitura para divulgar a candidatura de seu filho a deputado federal. Ele não foi eleito, mas o encontro rendeu a Crivella uma condenação no Tribunal Regional Eleitoral, que o declarou inelegível por abuso de poder e conduta vedada.
Para piorar, o adversário neste ano era Eduardo Paes. Político capaz de moldar o discurso a depender da conjuntura - e sem se vincular muito a nenhum campo -, o ex-prefeito conseguiu ficar alheio a discursos polarizantes. Trabalhou para convencer os eleitores de que disputava uma eleição pragmática, voltada para resolver os problemas da cidade. Ficou mais difícil para Crivella fazer os eleitores acreditarem em fake news como “kit gay”, “ideologia de gênero” e “pedofilia nas escolas”.
Temas como esses entraram no foco do prefeito desde que passou a acenar a Bolsonaro, há cerca de um ano. Foi marcante o pedido para guardas recolherem, na Bienal do Livro, revistas em quadrinho que continham um beijo entre dois personagens masculinos.
Enquanto isso, a realidade se impunha. Em dezembro do ano passado, profissionais de Saúde entraram em greve por causa de atrasos no pagamento e falta de material para trabalhar.
Um bolsonarista tardio
Marcelo Crivella não estava nos palanques quando Jair Bolsonaro chegou à Presidência. Nem antes disso. Às voltas com a impopularidade, contudo, viu na aproximação com o presidente, pautada por temas ultraconservadores, a única forma de nutrir algum tipo de esperança na tentativa de reeleição. Foi o suficiente para chegar ao segundo turno. Nele, evocou uma série de elementos de retórica bolsonarista. Foi, no entanto, abandonado por Bolsonaro, dado o favoritismo absoluto de Paes. O presidente nem mesmo gravou um vídeo de apoio para a disputa final com o candidato do DEM.
Bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, Crivella é do Republicanos, partido ligado à agremiação e que serviu de abrigo temporário para bolsonaristas que tentam formar o Aliança Pelo Brasil. Primeiro representante da igreja a ocupar a prefeitura de uma grande capital, o mandatário chegou lá devido à alta rejeição a seu adversário no segundo turno de 2016, o deputado Marcelo Freixo (PSOL). Antes, tentara em duas ocasiões conquistar o Executivo municipal, mesmo número de vezes que concorreu ao governo do Estado.
Antes de chegar ao Palácio da Cidade, Crivella passou por todo tipo de palanque, como uma espécie de fiador de determinados candidatos junto ao eleitorado evangélico. Esteve com os ex-presidentes Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva; com os ex-governadores Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão; com o ex-senador Lindbergh Farias; e até com o adversário Paes, na campanha presidencial da petista em 2010. Em uma foto clássica durante carreata em que aparece ao lado de Cabral, Dilma e Lindbergh, os quatro fazem o gesto de coraçãozinho com as mãos.
O bispo chegou a ser ministro da Pesca no governo Dilma, num dos momentos em que o PT se viu mais refém da governabilidade, entre 2012 e 2014. Poucos antes, ainda exercendo o mandato de senador, viralizou com um discurso que poderia ser feito pelo Crivella de 2020. Naquela ocasião, em 2009, questionou a Teoria da Evolução, de Charles Darwin.
"Não há provas conclusivas de que haja qualquer indício na natureza de que uma espécie possa gerar outra espécie", disse ao comentar uma reportagem da revista Veja.