O mesmo sistema que garante distribuição gratuita de medicamentos de alto custo tem fila de espera para fazer exames de diagnóstico. Tem um programa nacional de vacinação reconhecido mundialmente, mas não consegue garantir pré-natal de qualidade. Alvo de elogios no cenário internacional, o Sistema Único de Saúde chega a seus 26 anos colecionando críticas e desconfiança de muitos usuários e a certeza, entre sanitaristas brasileiros, de que em breve terá de ser reestruturado. “O acesso universal, o cuidado integral previsto na teoria, não acontece na prática”, adverte o consultor Eugênio Vilaça. “O sistema está de cabeça para baixo. Os recursos já são insuficientes - e parte é usada para subsidiar planos de saúde”, destaca o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Mário Scheffer. O ministro da Saúde, Arthur Chioro, engrossa o coro por mudanças: “Temos de ter a ousadia para mudar, sem perder os princípios de universalidade e integralidade”. Para ele, é preciso deixar mais claras as atribuições do ministério e das secretarias estaduais e municipais de Saúde. Atualmente, a competência para executar parte das tarefas é compartilhada. Essa fórmula, para o ministro, gera confusão. Ele defende também uma presença mais forte das secretarias estaduais para coordenar redes de atendimento integradas por municípios. “Hoje, Estados estão mais concentrados em prestar assistência: administrar hospitais próprios, redes de laboratórios. A coordenação é exercida com fragilidade.”Modelo. Vilaça afirma que antes de se avaliar competências é preciso que o País decida qual modelo de assistência de saúde deve ofertar. No papel, o sistema é universal: toda a população tem garantia de acesso. Isso significa providenciar tratamento (consultas, exames, internações, remédio), prevenção e vigilância sanitária para todos. Não é o que se vê na prática: “Temos um sistema misto”. A vigilância é universal. A assistência médica, porém, é feita tanto pelo sistema público quanto pelo suplementar e pelo desembolso direto da população. Basta ver os indicadores, diz Vilaça. “No Brasil, 54,3% dos gastos em saúde são do setor privado, número incompatível para um sistema que se diz universal.’’ Ele lembra que quase 150 milhões de pessoas dependem exclusivamente do SUS. Outros 50 milhões têm planos de saúde. “Fica claro que o sistema está subfinanciado.” O consultor diz não ter dúvidas de que o modelo em que o setor público se encarrega de prover a quase totalidade de atendimentos - deixando para o setor privado apenas a função de suplementação - é mais barato e equitativo. “Mas não há muitos defensores.’’ Ele acredita que a população atendida exclusivamente pelo SUS tem menor capacidade de se articular. “É um erro imaginar que o sistema público é para pobre. É essa a visão que muitos querem preservar. Mas a verdade é que todos precisamos do SUS”, afirma a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lígia Bahia. “Mas enquanto isso prevalecer, pouco se fará para reivindicar uma assistência de qualidade para todos.’’ Para Scheffer, são claros os sinais de uma tendência do governo de privilegiar o setor privado de saúde, sobretudo o de planos. “Na rede pública, o número de leitos caiu. O da rede particular aumentou”, exemplifica. “Linhas de crédito do BNDES são abertas para garantir a ampliação de hospitais privados e, mais recentemente, hospitais de cooperativas de saúde. Sem falar na renúncia fiscal, algo que beneficia todo o setor de saúde suplementar.’’ A renúncia acontece de várias formas. A começar com a dedução do Imposto de Renda - de pessoas físicas e jurídicas - de gastos com saúde. Scheffer entende que o impacto maior veio agora, com a retirada da base de incidência do PIS/Cofins, cobrado sobre o faturamento das empresas. Para planos de saúde, saiu do cálculo o que é considerado despesa assistencial, como gastos com hospitais e com funcionários de plano. Com isso, o imposto a ser pago pode ser até 80% menor. “Os recursos arrecadados com o PIS/Cofins na prática iriam para o SUS. Isso deixa clara a opção feita pelo governo: retirar do sistema público para destinar ao setor suplementar’’, sentencia Lígia. Scheffer e Lígia acreditam ser possível uma mudança de rumo. “É preciso reverter tal lógica. Uma opção terá de ser feita. Não será nos próximos meses, no próximo ano. Mas o exemplo dos Estados Unidos deixou claro que é impossível manter um sistema tendo como prioridade o setor privado.’’ Vilaça concorda. “Geraria um custo político. Ninguém está agora interessado em mudar a lógica. Mas é inexorável. Num momento ou em outro o Brasil terá de fazer uma opção.’’
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