O histórico de votação dos parlamentares de partidos que negociam a formação de federações na eleição deste ano indica potenciais dificuldades para a consolidação das “fusões temporárias” entre as legendas. Levantamento do Estadão sobre as principais votações desta legislatura mostra que, apesar de convergirem na orientação a seus quadros nos últimos três anos, a afinidade entre as bancadas de PT e PSB, PSDB e Cidadania e PSDB e MDB diminui em temas de ordem fiscal, monetária e previdenciária.
Em discussão avançada sobre uma federação com o PSB, o PT terá outros desafios além das disputas regionais para celebrar a união. Em pautas governistas como pacote anticrime, autonomia do Banco Central, reforma da Previdência e PEC dos Precatórios, os petistas atuaram em bloco em quase todas elas. Já o partido comandado por Carlos Siqueira teve mais dificuldade de convencer seus membros a votar de forma conjunta.
O PSDB, que busca um acordo com MDB e Cidadania, votou afinado com seus possíveis parceiros na maioria dos casos. O tema que mais separou os tucanos dos demais partidos foi a PEC dos Precatórios. Enquanto deputados do PSDB formaram maioria para apoiar a proposta do governo, mais da metade das bancadas das outras duas siglas a rechaçaram.
Regras
Criado pelo Congresso no ano passado e regulamentado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o modelo da federação oferece às siglas pequenas a chance de escapar da cláusula de barreira, dispositivo que restringe a atuação de um partido que não alcançar determinado porcentual de votos. Entre os exemplos estão PV e PCdoB, que querem se unir ao PT e ao PSB. A cláusula de desempenho tem por objetivo diminuir a fragmentação partidária e aumentar as condições de governabilidade do Executivo.
Para especialistas ouvidos pelo Estadão, o comportamento dos parlamentares no Congresso é relevante na definição de parcerias. Diferentemente das coligações, as legendas federadas são obrigadas a atuar como um só partido nos próximos quatro anos, mantendo a postura programática. Os líderes não podem concorrer entre si nas disputas majoritárias e precisam driblar resistências internas às orientações partidárias. Parlamentares que divergirem das orientações do colegiado podem sofrer sanções, inclusive expulsão.
Na prática, se divergências persistirem e os partidos insistirem em atuar de forma hegemônica, a federação pode se tornar inviável na próxima legislatura, observou o cientista político José Álvaro Moisés. Segundo ele, o que está em jogo é a disputa de poder interno da união, que terá influência nas votações, na distribuição dos recursos e na escolha dos candidatos. Para Moisés, sem experiências pregressas para conhecer o comportamento dos partidos em uma federação, a forma com que as decisões serão tomadas precisará se basear em um estatuto bem definido, com programa claro e uma postura democrática.
Votações
Um dos primeiros temas pautados pela gestão Bolsonaro, a reforma da Previdência se tornou um desafio para o PSB, que, apesar de fechar questão e obrigar posicionamento contrário de sua bancada, viu 33% dos parlamentares votarem com o governo – no PT, todos disseram “não” à proposta. A desobediência levou o PSB a aplicar punição severa a dez deputados: nove tiveram as atividades suspensas e um foi expulso.
No caminho contrário, em 2019, uma versão “desidratada” do pacote anticrime proposto pelo então ministro e hoje presidenciável do Podemos, Sérgio Moro, teve 408 votos favoráveis e apenas 9 contrários. Dos poucos dissidentes, três eram petistas. Já o PSB foi unânime em votar “sim”.
Quando o governo Bolsonaro resgatou, em 2021, um projeto de lei que daria autonomia ao Banco Central, o Cidadania votou em bloco pela aprovação, enquanto PSDB e MDB não conseguiram garantir fidelidade de todos os seus deputados. Em proporção parecida, uma minoria de ambos os partidos preferiu recusar a proposta. Entre os tucanos, Aécio Neves (MG) foi contra. Na ocasião, o PSB voltou a rachar. Cerca de 37,9% de sua bancada votou pela aprovação do projeto e 3,4% se abstiveram. No PT, todos os deputados rejeitaram a proposta.
Já na discussão sobre a PEC dos Precatórios, as orientações partidárias congestionaram as negociações. Enquanto a oposição foi fiadora do governo, com votos valiosos do PSB para a aprovação no primeiro turno, MDB e Cidadania foram mais contrários que favoráveis à alteração na política fiscal. O PSDB diferiu dos possíveis aliados e votou majoritariamente a favor.
Embrião para novos partidos
Presidentes de partidos e parlamentares minimizaram o impacto das divergências em votações no Congresso na discussão sobre as federações partidárias. Para eles, há mais pontos em comum do que posições que impeçam a formalização desse novo tipo de aliança. Para o presidente do Cidadania, Roberto Freire, a federação é uma transição para formação de novos partidos. “Quem imaginar que é apenas uma questão de desempenho está enganado”, disse. Ele defende que diferenças em questões conjunturais são menos importantes que em questões programáticas. “Tem de ter um mínimo de identidade entre os programas partidários. Se tiver programas muito diferentes, não serve.”
Carlos Siqueira, presidente do PSB, também minimiza o impacto das divergências. “Essa proximidade existe, basta ver a atuação no parlamento, não por acaso PSB se alia ao PT desde 1989. Divergências não vão acabar se a federação existir, temos proximidades mas não somos iguais e nem queremos ser”, afirmou.
Já o deputado federal Júlio Delgado (PSB-MG) acredita que a federação está sendo usada de forma errada para resolver problemas de curto prazo. “A federação é uma contradição. O mais difícil é nós declararmos apoio, como o PSB está fazendo, ao ex-presidente Lula”, disse. “Agora eles já têm o apoio declarado. O que a gente leva em troca disso? Nem a federação? Acho que isso está enterrando a concretização da federação, apesar do PSB ter anunciado o apoio ao presidente. Estamos vendendo o peixe muito barato”, afirmou, em alusão aos desafios de negociação entre os dois partidos.
Procuradas, as lideranças de PT, MDB e PSDB não se manifestaram.
O deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS) vê com bons olhos a criação de federações, seja com o PSDB ou com outros partidos, como o recém-formado União Brasil. Para o congressista, a junção das siglas é uma boa estratégia para aumentar as bancadas partidárias e ter mais governabilidade. O líder da bancada do Cidadania no Congresso, Alex Manente (SP), corrobora a ideia. “É possível manter coerência porque a federação é o encontro de partidos que devem ter o mesmo programa estatutário e defendem a mesma linha ideológica”, afirmou.
O especialista em direito eleitoral Alberto Rollo, porém, alerta que as siglas “não estão pensando no dia a dia”. “Os partidos se preocuparam muito em se juntar olhando a eleição e não estão pensando em como vão votar em uma reforma da previdência, administrativa, tributária, imposto de grandes fortunas”, disse.
Por enquanto, conforme mostrou o Estadão, as siglas ainda estão mais preocupadas se os arranjos estaduais vão permitir que a negociação avance.
Municípios
A convergência programática vai obrigar os partidos a levarem os embates para as disputas locais, nos municípios, em 2024. Na última reunião sobre o tema, o PSB chegou a propor ao PT que prefeitos, vice-prefeitos e vereadores tenham a preferência para eventual reeleição em 2024.
Todas as legendas que discutem federações já disputaram prefeituras e isso poderá ser diretamente afetado pela decisão. Dentre os partidos que cogitam uma união, PSDB e MDB foram os que mais concorreram entre si. De 2000 a 2020, houve 3.923 disputas entre as siglas em cidades brasileiras.