É agora ou nunca. Ou o Brasil enfrenta a ameaça das fake news a pessoas, instituições e à própria democracia, ou a polarização política e a consequente irracionalidade vão impedir algum tipo de regulamentação, algum dia, para a terra de ninguém em que as redes sociais criam e recriam sua própria realidade paralela e disseminam ataques e versões distorcidas do mundo.
Se, por um lado, a tragédia histórica no Rio Grande do Sul uniu as instituições e gerou uma onda apartidária de solidariedade e voluntariado, tornou-se também o ambiente ideal para a audácia e a virulência do pântano da guerra ideológica, sem lei, escrúpulos e civilidade. As águas vão baixar e o Estado vai se reconstruir, mas o pântano digital da desinformação e da violência vai continuar. E as eleições municipais vêm aí…
O método é o de sempre: captar um detalhe, um episódio, uma fala enviesada ou um erro pontual para generalizar os ataques, criar certezas, desqualificar pessoas e profissionais e atingir o alvo, que acaba sendo o mesmo: o adversário político e ideológico. As armas são as redes sociais, a inteligência da guerra está nos algoritmos.
Os algoritmos informavam à campanha de Donald Trump que a prioridade para a vitória era encontrar qualquer prova de corrupção contra Hillary Clinton. Devassaram a vida dela sem encontrar. O jeito foi improvisar. E foi assim que o uso de e-mails oficiais para mensagens pessoais se transformou na “grande corrupção”, no “grande escândalo” que deixou em casa os eleitores indecisos ou com tendência pró democrata. O inesperado aconteceu. Hillary perdeu, Trump venceu.
Assim como e-mails sem importância nas eleições americanas, um evento banal, como um ou outro policial exigir documentos de caminhões num posto de fiscalização, foi o estopim para as redes, marqueteiros bolsonaristas, o governador Jorginho Melo (SC) e meia dúzia de deputados massificarem a versão e a sensação de que há boicotes, obstáculos inventados e desvios contra todos os caminhões e todas as ações de socorro às vítimas.
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Pior: milhões de incautos acreditam e espalham que, como a Terra é plana, cloroquina é eficaz contra Covid e vacinas matam, nenhum governo, nem o federal, nem o estadual nem os municipais estão fazendo nada, só atrapalhando. Para que serve a fake news? Desmobilizar a ajuda, difundir insegurança em quem quer doar e aumentar a indignação e a desesperança de quem perdeu parentes, a casa, os sonhos.
O método inclui a inversão de papéis no imaginário popular. Assim como tantos e tantas acreditaram e foram instrumentos úteis para espalhar a versão de que o governo Lula, o PT e a esquerda foram os reais provocadores e culpados pelo 8 de janeiro – o que seria uma mentira risível, não fosse canalhice perigosa –, tentam agora condenar e atacar quem mais atou e atua para minorar os danos e a dor no Rio Grande do Sul. Não poupam nem o Exército. Como é possível alguém acreditar que Lula, os ministros, as Forças Armadas, as forças multissetoriais do Estado e das Prefeituras não estão fazendo nada? Só quem se “informa” pelas redes e por grupos de WhatsApp. E acredita em qualquer coisa.
Os governos, em Brasília e na maioria dos Estados, vêm falhando há décadas na prevenção de desastres climáticos e desdenhando dos riscos para o futuro do planeta. Devem ser, sim, cobrados por isso. Mas, nas ações de socorro, o empenho é real, incansável, inquestionável. Há falhas, excesso de burocracia, falta de experiência ou de informação de um agente público daqui e dali, como os que fiscalizam caminhões e cargas em estradas. Acontece, faz parte de uma operação de guerra como essa, mas são pontos fora da curva e, muito possivelmente, sem má-fé. Impossível generalizar, a não ser por motivação ideológica… ou patológica.
Se a Câmara estancou a discussão e não votou a regulamentação das redes na hora certa, num ambiente mais favorável, é preciso agora, no meio da desgraça, das enchentes, mortes e lama, pegar o touro à unha e domar a fera, antes que devore a racionalidade, as eleições e a democracia. Com uma responsabilidade a mais: sem deixar terreno fértil para o “outro lado”, que, no Executivo, no Judiciário e no próprio Legislativo, defendem regras tão rígidas, até draconianas, que impeçam o debate político, as fundamentais críticas a pessoas públicas e até provocações triviais entre adversários. Nem tanto ao ar, nem tanto à terra, mas que é preciso regulamentar, estabelecer limites, fiscalização e eventuais punições, não há dúvida. E é agora ou nunca.