Ao usar publicamente a palavra “genocídio” para falar sobre os ataques aos palestinos em Gaza, o assessor internacional do presidente Lula, ex-chanceler Celso Amorim, deixa evidente que o governo brasileiro está subindo o tom em relação a Israel. E tem vários motivos para isso, inclusive o destempero e as ações, digamos, pouco diplomáticas do embaixador do regime de Bibi Netanyahu em Brasília, Daniel Zonshine.
Em Paris, para um encontro internacional pela população civil em Gaza, Amorim reiterou a condenação do Brasil aos ataques terroristas do Hamas e à tomada de reféns israelenses, que classificou de “atos bárbaros”, mas disse que isso não justifica “ações indiscriminadas contra civis” e foi adiante: “A morte de milhares de crianças é chocante, a palavra genocídio inevitavelmente vem à mente”.
Além disso, Amorim destacou que, de 2006 a 2016, o Brasil contribuiu com US$ 20 milhões para a agência da ONU que presta assistência aos refugiados palestinos, anunciou uma contribuição simbólica imediata e uma outra, “mais substancial”, para “breve”. Também insistiu no pedido do Brasil de um “cessar-fogo humanitário” e alertou para o risco de a guerra se alastrar e se tornar um “conflito global”. Por isso, tenta articular com a França uma conferência internacional paralela à ONU, que falhou.
Amorim morde, o Itamaraty não chega a soprar, mas calibra milimetricamente seus passos e palavras para manter canais abertos e insistir na volta dos brasileiros de Gaza. A teimosia em não liberar a volta, mantendo em Gaza 34 brasileiros, incluindo crianças, pode ter duas interpretações. Uma, cor de rosa, é que são muitas nacionalidades, é natural que os maiores aliados israelenses sejam contemplados primeiro e é preciso respeitar “a fila”. A outra, mais realista, é de que Israel, que tem o controle sobre as listas de saída, considera a posição brasileira dúbia e está fazendo jogo duro contra o o governo à custa de civis submetidos a falta de água, comida, luz e... o risco de bombas.
Depois da quarta conversa entre os chanceleres Mauro Vieira, do Brasil, e Eli Cohen, de Israel, nesta quinta-feira, 9/11, Cohen anunciou oficialmente que os brasileiros estariam na lista de saída do dia seguinte. Isso deve ajudar a diminuir as labaredas nas relações entre os países.
Essas labaredas já estavam altas e a operação da Polícia Federal para prender brasileiros que teriam sido cooptados para atacar sinagogas, e até a embaixada israelense em Brasília, foi como querosene na fogueira. Depois das duas primeiras prisões de suspeitos, em São Paulo, o Mossad, agência de inteligência de Israel, rápida e inesperadamente, assumiu os louros e já atribuiu a culpa ao Hezbollah, grupo terrorista baseado no Líbano e que não dá um passo sem apoio do Irã.
Enquanto isso, o embaixador israelense confraternizava com opositores de Lula e até com o ex-presidente Bolsonaro. Não bastasse, disse ao jornal “O Globo” que “se escolheram o Brasil, é porque tem gente que apoia”. É irresponsável e está fora das regras do jogo diplomático.
O Planalto, o Itamaraty, a Justiça e a própria PF reagiram mal, porque esse tipo de coisa atiça a guerra dos dois lados pela internet, aumenta os inaceitáveis atos de antissemitismo e islamofobia e traz uma operação policial para um campo perigosamente político, em meio a uma guerra insana. Como efeito, o Itamaraty calou, alegando que nem sabia da operação da PF, e a reação mais dura e direta (como costuma ser) foi do ministro da Justiça, Flávio Dino.
Pelas redes sociais, ele reclamou: “Nenhuma força estrangeira manda na PF e nenhum representante de governo estrangeiro pode pretender antecipar resultado de investigação conduzida pela PF e ainda em andamento”. Recado para Israel, Mossad e embaixador. E, nos bastidores, diplomatas estranham as versões, lembrando que, além do histórico de convivência pacífica entre judeus, árabes e os próprios palestinos no Brasil, não há registro de atentados terroristas por aqui.
Em momentos tensos, sempre vêm à tona a suspeita, não confirmada, de que a tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai abrigaria gente ligada a grupos terroristas é que, em 2016, a PF prendeu onze suspeitos de cooptação para atentados na Olimpíada do Rio, oito deles efetivamente condenados.
Há, porém, diferenças fundamentais. Em 2016, como antecipado em manchete do Estadão, um ano antes, o foco era no Estado Islâmico (EI), não no Hezbollah, que não age sem aval do governo do Irã. Logo, seria jogar o Irã contra o Brasil, sendo que Lula, nos seus primeiros mandatos, se empenhou diretamente num acordo para o programa nuclear iraniano, derrubado por EUA e França na ONU. Assim, Lula tem boas relações com o país. Isso mudou? Que interesse o Irã teria em avalizar atentados no Brasil?
Outra diferença é de método. Naquela época, a investigação da PF foi sobre o EI cooptando jovens problemáticos, identificados pela internet, para agirem como “lobos solitários” na Olimpíada. Agora, a suspeita é de que o Hezbollah estaria “comprando” brasileiros de dupla nacionalidade (síria e libanesa, por exemplo) para agir como mercenários. É preciso saber exatamente até onde vai a verdade e a fantasia. Com a palavra quem de direito: a Polícia Federal. Mas, independentemente disso, as relações entre Brasil e Israel não estão no melhor momento.