Dúvida atroz após repassar vídeos das reuniões ministeriais, viagens e agendas oficiais nos quatro anos de Jair Bolsonaro na Presidência da República: quando ele analisava gráficos e estatísticas sobre as diferentes áreas do País? Quando identificava as emergências e definia ações, especialmente em comunidades e regiões miseráveis? Quando estudava e discutia planos para economia, educação, saúde, energia, segurança pública, meio ambiente, polícia externa? Afinal das contas, o presidente Jair Bolsonaro trabalhava? Ou melhor, governava?
Em Brasília, ele reunia ministros, assessores e até desconhecidos do distinto público, como em 5 de julho de 2022, exigindo, aos gritos e palavrões, união, ação e pressa para desacreditar o TSE e as urnas eletrônicas, espionar adversários a la Watergate e “virar a mesa” – leia-se: dar um golpe – antes das eleições. Depois, segundo ele, seria “um caos, uma guerrilha”. Em meio a generais e civis expoentes do golpe, hoje já bastante conhecidos, como o então ministro da Justiça, Anderson Torres, destacava-se alguém totalmente inesperado: o “Posto Ipiranga”, Paulo Guedes.
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Apesar de chocante em todos os sentidos, a reunião do golpe não foi novidade. Além de caber muito bem em toda a narrativa golpista, tem tudo a ver com outra reunião, de 22 de abril de 2020, em que o presidente, também aos gritos e palavrões, exigia que a Polícia Federal e os órgãos de inteligência do Estado brasileiro ficassem à disposição de seus interesses, conveniências, filhos e aliados. Os ministros foram na onda: o da Educação sugeriu a prisão dos integrantes do Supremo Tribunal Federal; a da Mulher e da Família, a de governadores e prefeitos; o do Meio Ambiente defendeu “passar a boiada” (sobre a Amazônia, florestas, rios, mares, aldeias e o que tivesse pela frente). Um espanto!
Também espantoso – e intrigante – é que as duas reuniões, ambas no Palácio do Planalto, foram gravadas para a história e... a Polícia Federal. O que não foi gravado, até onde se saiba, foram os conluios no Alvorada, residência oficial da Presidência da República, onde Bolsonaro recebia tipos como Walter Delgatti, Frederick Wasseff, Marcos Du Val, Daniel Silveira, e despachava com o tenente coronel da ativa do Exército Mauro Cid, o seu “faz tudo”, sobre falsificação de atestado de vacina, vazamento de investigação sigilosa da PF, busca de joias sauditas em avião da FAB, venda dessas joias no exterior e, “last but not least”, providências e minutas para o golpe.
Fora dos palácios, Bolsonaro estrelava, inclusive durante a pandemia, e sem máscara, “manifestações pacíficas” – leia-se atos golpistas – com faixas, cartazes e gritos pedindo fechamento do Congresso e do Supremo e volta da ditadura militar. A diferença: no Planalto e no Alvorada, os tais gritos e palavrões; nas ruas e avenidas, sorrisos e simpatia. E nunca saberemos quantos e quantas foram contaminados, ou até morreram de Covid, naquelas farras antidemocráticas.
Fora de Brasília, há profusão de fotos e vídeos da agenda de viagens “a serviço” do presidente da República, em cavalos, motociatas, carreatas, multidões, cafezinhos em padarias, festinhas policiais e militares (especialmente no “meu exército”), regadas a coxinhas, empadinhas e manipulação. Enquanto isso, a “flexibilização” de armas e munições preparava a massa de manobra civil. Parte dos CACs (Caçadores, atiradores e colecionadores) foi cooptada, a outra se recusa a entender o que significa “inocente útil”.
Esse era o presidente. E como ficava o governo? As reuniões de trabalho para decidir estratégias, gestão e planos, inclusive na política externa? E as viagens para discutir prioridades e tomar decisões com governadores e prefeitos em favor da economia e da população? Alguém poderia arriscar: Bolsonaro era descentralizador, dava autonomia a seus ministros. Porém, é difícil saber o que era pior, decisão do próprio Bolsonaro ou de Abraham Weintraub, Damares Alves, Ernesto Araujo, Anderson Torres, Ricardo Salles...
Na reunião do golpe, o próprio Bolsonaro definiu sua eleição como “uma cagada”, para em seguida amenizar: “uma cagada do bem”. E perguntou: “Como é que alguém vai eleger um deputado fudido como eu? Um deputado de baixo clero, escrotizado dentro da Câmara, sacaneado, gozado, uma porra de um deputado?”. Taí, excelente pergunta. E com termos perfeitamente adequados.