BRASÍLIA — Depois de mais de dez anos no limbo, as emendas parlamentares voltaram a ser usadas no Congresso dos Estados Unidos em 2021. Mas, diferentemente do que acontece no Brasil, por lá o instrumento não funciona como moeda de troca entre a Casa Branca e o Legislativo: o uso das emendas é regulado por normas rígidas, para garantir a transparência e evitar o conflito de interesses. "O que aconteceu é que essas emendas ficaram associadas à corrupção", afirma a cientista política brasileira Beatriz Rey, doutora pela Syracuse University, de Nova York, em entrevista ao Estadão.
Rey vive atualmente na capital americana, Washington, e trabalha dentro do edifício do Capitólio, que é a sede da Câmara dos Representantes e do Senado dos EUA. Ela estuda o funcionamento do Legislativo norte-americano como parte de um programa da Associação Americana de Ciência Política (APSA, na sigla em inglês).
Até 2011, as emendas orçamentárias nos EUA eram chamadas de “earmarks” — o nome significa algo como a anotação que se faz na “orelha” de um documento, ou do Orçamento, neste caso. Naquele ano, um acordo entre os partidos Republicano e Democrata resultou no abandono do instrumento, marcado por casos de corrupção. Agora, após dez anos, as emendas estão de volta à política norte-americana, com novas regras.
“Elas ganharam outro nome (‘Community Project Funding’, ou ‘financiamento de projeto comunitário’), e agora tanto a Câmara quanto o Senado instituíram uma série de medidas para aumentar a transparência. Então, na Câmara, os pedidos serão feitos online e serão divulgados para o público 24 horas antes de serem analisados pela Comissão de Orçamento, por exemplo”, explica Rey.
O modelo contrasta com o do Brasil: nos últimos dois anos, o Congresso Nacional modificou o uso das emendas de relator (do código RP-9) para beneficiar políticos aliados ao governo, sem dar transparência sobre qual parlamentar indicou o quê. O mecanismo está na base do caso do orçamento secreto, revelado pelo Estadão, e foi alvo de uma decisão liminar (provisória) da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a suspensão dos pagamentos. Em entrevista recente, o vice-presidente Hamilton Mourão admitiu que a RP-9 era uma “manobra orçamentária”, “em benefício daqueles (congressistas) que apoiam o governo”.
No Brasil, diz a pesquisadora, o fortalecimento do Legislativo está em curso desde o início dos anos 2000. O Congresso ganhou espaço tanto na formulação das políticas públicas quanto na disputa pelo controle do Orçamento — o que não é necessariamente ruim, na avaliação de Beatriz Rey. “O que eu não acho positivo é esse tipo de manobra com as emendas de relator, sem transparência. Garantida a transparência, acho que o fortalecimento do Congresso é benéfico para a democracia.”
Veja abaixo os principais trechos da entrevista:
Quais são as principais diferenças do processo orçamentário nos EUA e no Brasil?
De maneira geral, os deputados nos EUA têm mais poder sobre o processo orçamentário do que no Brasil. Este é um dos motivos pelos quais a gente têm nos EUA, às vezes, a situação de “shut down”, pois há muita divergência entre os dois partidos (Democratas e Republicanos) sobre quais são as prioridades de gasto, e os deputados têm mais voz (sobre o destino do dinheiro) a partir do projeto que é enviado pelo Executivo ao Legislativo. É uma coisa que, no Orçamento do Brasil, acontece menos. O Executivo tem mais preponderância, nesse sentido.
Pensando nas emendas, a maior diferença é que as “earmarks”, como eram chamadas aqui nos EUA, não são moeda de troca entre Executivo e Legislativo, da forma como acontece no Brasil. Essa negociação, esse jogo em torno das emendas que é tão cotidiano para a gente no Brasil, não acontece dessa forma. Acontece dentro do Congresso. É preciso levar em consideração que (os EUA) são um sistema presidencialista com dois partidos (representados no Congresso), então não existe essa necessidade de formar uma coalizão como no Brasil.As emendas (“earmarks”) sumiram da política norte-americana há cerca de uma década. O que aconteceu?
Em termos gerais, o que as duas Casas do Congresso dos EUA entendem por emenda é qualquer gasto direto, benefício fiscal ou tarifário que seja destinado a beneficiar uma entidade, Estado, localidade ou distrito (eleitoral) específico. Não é só um gasto público (como no Brasil). Pode aparecer de uma outra forma. E o que aconteceu é que essas emendas ficaram associadas à corrupção.
Em 2007 existiu um esforço das duas Casas para dar mais transparência às emendas. Foi decidido que todas as emendas tinham de ser públicas, não só o número de emendas, mas os congressistas responsáveis; e também tornar públicas as informações sobre os parlamentares que fizeram as indicações. Por exemplo: todos eles tinham que emitir uma declaração dizendo que não tinham nenhum interesse pessoal nas emendas.
E mesmo assim, em 2011, tanto o Senado quanto a Câmara começam o que eles chamam de “moratória” no uso das emendas. Por conta das acusações de corrupção. E o interessante é que não houve uma proibição do uso das emendas com uma mudança no regimento das duas Casas. É uma norma informal, por meio da qual os partidos e as comissões resolvem não pautar, não usar as emendas. Então, se você olhar as regras (da bancada do) Partido Republicano na Câmara, eles já falam que a política deles é a de que nenhum parlamentar deve solicitar as emendas. Na prática, elas deixam de existir em 2011.
E, no entanto, elas voltaram a existir agora. Por que?
Existe uma Comissão bipartidária que estuda como modernizar o Congresso norte-americano. E, no fim do último ano, essa comissão recomendou a volta das emendas. Já existia o interesse de vários parlamentares de trazer as emendas de volta, mas isso só se concretiza com essa recomendação da comissão especial.
Elas ganharam outro nome (Community Project Funding’, ou ‘financiamento de projeto comunitário’), e agora tanto a Câmara quanto o Senado instituíram uma série de medidas para aumentar a transparência. Então, na Câmara, os pedidos serão feitos online e serão divulgados para o público 24h antes de serem analisados pela Comissão de Orçamento, por exemplo. Não só os parlamentares não poderão ter interesse naquela emenda, como também seus familiares; e a emenda não poderá beneficiar pessoas jurídicas com fins lucrativos.
A Comissão de Orçamento também pede a uma agência chamada Government Accountability Office (“Escritório de Prestação de Contas do Governo”, órgão similar ao Tribunal de Contas da União, o TCU, no Brasil) para auditar uma amostra das emendas, e reportar o resultado ao Congresso. E essa entidade acompanha a execução, para saber se houve algum desvio.
O que os deputados dos EUA costumam fazer com esse dinheiro das emendas?
É parecido com o que se faz no Brasil. Eles mandam para as bases eleitorais. É o que eles chamam de “pork” (da expressão “pork barrel politics”), que é uma coisa direcionada, particular para determinada localidade, e com um incentivo eleitoral por trás. É um dinheiro que eles mandam para quem os elegeu, para a região que os elegeu.
Eu sou a favor do uso das emendas parlamentares como mecanismo de representação democrática. Desde que a gente tenha transparência absoluta no uso dessas emendas. Aqui nos Estados Unidos teve essa moratória porque a discussão sobre as emendas, no meu entender, foi politizada — então não era mais uma discussão sobre o mérito das emendas, mas somente sobre corrupção. Para evitar o uso indevido do dinheiro você adota esses mecanismos de transparência. Dado que esses mecanismos estão garantidos, as emendas são importantes.Para além das emendas, quais mecanismos o governo pode usar nos EUA para levar os deputados a votar como ele quer?
Eu acho que uma distinção importante de se fazer é que, no Brasil — e principalmente agora, no momento em que estamos vivendo — essa negociação com os deputados está muito pulverizada. É feita com cada deputado em específico. Os líderes partidários perderam um pouco do poder na era Bolsonaro. Nos Estados Unidos, toda essa negociação é feita via partidos. Então, por exemplo: para aprovar o pacote de infraestrutura, a negociação foi feita por meio dos partidos.
E os partidos têm mecanismos para colocar os deputados na linha, como a figura do “party whip” (líder partidário). Tem uma série de mecanismos: desde tirar o acesso do deputado a financiamento de campanha, ou então tirar uma posição de destaque em uma comissão, por exemplo.
Via partidos, o Executivo norte-americano também constrói apoio no Congresso com compromissos sobre políticas públicas, ou troca de favores legislativos e extra-legislativos. Também há estudos que sugerem que o presidente-norte americano beneficia áreas geográficas alinhadas com o seu partido na execução do orçamento, mas não sabemos se isso se dá em troca de apoio no Congresso.
A negociação não acontece individualmente como a gente está acostumado no Brasil — e que ficou pior na gestão Bolsonaro.
Trabalhos anteriores mostram como o Congresso passou a concentrar mais poder nos últimos anos. Como isto se deu?
Existem trabalhos sobre isso, e eu vou citar somente um, o do cientista político Acir Almeida. Existe um ponto de inflexão em 2009, quando o Congresso dos EUA, pela primeira vez desde a redemocratização, aprovou mais leis propostas por parlamentares do que pelo Executivo. E esse padrão se mantém.
Pelos meus próprios cálculos, na última legislatura, entre 2015 e 2018, o Congresso aprovou 369 leis e leis complementares de autoria de parlamentares e só 42 projetos vindos do Executivo. Então, o Congresso vai ficando mais forte também como formulador de políticas públicas (além do maior controle sobre o Orçamento). E a gente não pode esquecer também das medidas provisórias, cujas regras tiveram uma série de modificações.
É um processo que se inicia no começo dos anos 2000, em 2009 tem esse ponto de inflexão, e que muitas pessoas podem ver como uma coisa problemática (...), mas eu acho positivo para o desenvolvimento da democracia brasileira. O que eu não acho positivo é esse tipo de manobra com as emendas de relator, sem transparência. Garantida a transparência, eu acho que o fortalecimento do Congresso é benéfico para a democracia. O que não é benéfico é esse tipo de manobra que a gente não consegue acompanhar, que não têm controle social.