BRASÍLIA - A emenda Pix se tornou o recurso mais usado por parlamentares para mandar dinheiro federal a Estados e municípios. Neste ano, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva liberou R$ 25,6 bilhões para redutos eleitorais de congressistas. Do total, R$ 6,4 bilhões foram direcionados por meio da emenda Pix, valor maior do que o enviado para ações de saúde, educação e infraestrutura.
É o primeiro ano que o mecanismo supera os programas de governo nas emendas parlamentares desde que começou a ser pago, em 2020. Revelada pelo Estadão, a emenda Pix é um repasse sem transparência que dribla a fiscalização. O recurso cai diretamente no caixa das prefeituras e dos governos estaduais antes de qualquer licitação, obra ou compra de equipamento.
Como não há nenhuma vinculação com políticas públicas nem prestação de contas, a sociedade não sabe como foi gasta essa parcela bilionária do Orçamento.
Os municípios podem usar o repasse como bem entender, desde que 70% seja para investimento e o dinheiro não seja gasto com o pagamento de folha salarial e dívidas. Como a emenda não é rastreada, o valor se mistura a outros recursos e esses critérios são descumpridos.
Parlamentares e prefeitos defendem a emenda Pix em função da agilidade. O dinheiro chega a cair em três meses, enquanto outras transferências demoram cinco anos para serem pagas. Especialistas e órgãos de controle, porém, apontam falta de critérios e risco de desvios.
Em muitos casos, a emenda beneficia familiares dos parlamentares. De todos os recursos liberados neste ano, o senador Jayme Campos (União-MT) destinou R$ 3,3 milhões para Várzea Grande (MT), cidade onde a mulher dele, Lucimar Campos, foi prefeita entre 2015 e 2020 e o filho Carlos Eduardo Campos é cotado para ser candidato a vice em 2024, na chapa do atual prefeito, Kalil Baracat (MDB).
O ex-deputado Valdir Rossoni (PSDB-PR), colocou um total de R$ 16 milhões em apenas um município: Bituruna (PR), governado pelo filho Rodrigo Rossoni (PSDB). Alcides Rodrigues (Patriota-GO) indicou R$ 10 milhões para Santa Helena de Goiás (GO), onde o filho, João Alberto Rodrigues, é prefeito.
“Quem ganha são os parlamentares, que passam a ter uma liberdade muito maior de destinar os recursos, mas é uma perda de controle para a sociedade e uma distorção do que deveria ser o orçamento público”, diz Hélio Tollini, ex-secretário de Orçamento Federal e consultor aposentado da Câmara. “O próprio parlamentar perde o controle porque o prefeito ou o governador pode nem dar satisfação do que fez com o dinheiro.”
Emenda Pix é usada de forma irregular
Conforme o Estadão revelou, o dinheiro foi usado para bancar shows sertanejos em cidades sem infraestrutura durante a campanha eleitoral do ano passado. Além disso, R$ 287 milhões foram repassados sem bancar investimentos públicos, descumprindo a Constituição. Carapicuíba (SP), o município que mais recebeu, pagou mais caro por asfalto, praça e até carrossel de brinquedo, enquanto deixou escolas inacabadas e abandonadas.
São os políticos que escolhem para onde vai o dinheiro, sem critérios que levem em conta o tamanho dos municípios e um planejamento que defina quais cidades precisam mais do dinheiro. A emenda Pix foi usada por 505 parlamentares neste ano, ou seja, 85% do Congresso. Mais da metade do dinheiro, porém, ficou concentrada em apenas 10% dos municípios brasileiros.
“Se não for essa emenda, tem a palavra burocracia e o município acaba perdendo o recurso”, diz o deputado José Nelto (PP-GO). Ele indicou R$ 16 milhões para municípios de Goiás em 2023. Em Jaraguá (GO), por exemplo, foram R$ 3 milhões para pavimentar uma avenida conhecida como a “maior passarela da moda ao ar livre”. A prefeitura está executando a obra, mas não há um plano de trabalho nem prestação de contas. “O que precisa melhorar é a fiscalização”, admite o parlamentar.
Fiscalização fica com os tribunais locais, mas ainda é falha
Em março deste ano, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu que a fiscalização da emenda Pix é de responsabilidade dos tribunais estaduais e municipais. Os órgãos locais, porém, ainda discutem como isso será feito na prática. Técnicos apontam dificuldades para rastrear o dinheiro e falta de informações nos municípios. O TCU ficou de editar uma instrução normativa para orientar o controle, o que ainda não foi feito.
Na Paraíba, a diferença entre o que o governo federal repassou de emenda Pix e o que as prefeituras informaram terem recebido ao Tribunal de Contas do Estado é de R$ 15,9 milhões. No Paraná, a inconsistência chega a R$ 48 milhões, conforme levantamento do Estadão com informações fornecidas pela Corte de contas do Estado. Além disso, 10 prefeituras paranaenses gastaram R$ 3,6 milhões para pagamento de pessoal, o que é proibido.
“As emendas Pix dificultam a fiscalização e, na minha opinião, carecem de fundamento constitucional. Mas, enquanto discutimos teoricamente, a boiada está passando e o dinheiro está sendo gasto”, diz o presidente do Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Paraná, Fernando Guimarães. Para ele, há uma “zona cinzenta” na fiscalização.
O tribunal do Paraná criou uma plataforma para acompanhar o dinheiro, mas ainda se depara com falta de informações fornecidas pelos municípios e ausência de critérios para fiscalização. Apesar das irregularidades, nenhuma prefeitura foi punida até o momento e o dinheiro já foi gasto.
O governo federal abriu uma plataforma para que os Estados e municípios prestem informações sobre o que fizeram com o dinheiro, mas a prestação de contas é opcional. A equipe econômica do governo Lula ensaiou a criação de uma portaria para obrigar as prefeituras e os governos estaduais a prestarem as informações, mas a articulação não avançou.
O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, que cuida da plataforma, afirmou que estuda “possíveis alterações de regramento visando aperfeiçoar o sistema de prestação de contas”.
O Tribunal de Contas da União sugeriu ao Congresso aprovar uma lei para tornar obrigatória a prestação de contas da emenda Pix em uma plataforma centralizada, mas o Legislativo ignorou a orientação. Enquanto os órgãos de controle ainda discutem como efetuar a fiscalização, o dinheiro é gasto sem controle. Em quatro anos, já foram R$ 9 bilhões desembolsados pela União.