BRASÍLIA - O apoio do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à aprovação de uma Lei Orgânica das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros foi, segundo parlamentares e especialistas, um aceno à classe tradicionalmente próxima ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A gestão petista teve que ignorar temas que o próprio partido condenava em relação às PMs, como letalidade policial e violência contra a população negra.
O texto aprovado acabou sendo objeto de reclamações de movimentos à esquerda e até do Ministério Público Federal (MPF). Os críticos esperavam do governo Lula uma postura mais firme para exigir das polícias, por exemplo, mais eficiência no controle da violência policial, na infiltração do crime organizado e em práticas de tortura por parte de policiais. A proposta aprovada pela Câmara e pelo Senado está na mesa do presidente para sanção.
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A articulação para que a matéria fosse aprovada no Senado foi liderada pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES). Delegado da Polícia Civil capixaba, ele surgiu como um fenômeno eleitoral por uma atuação firme contra transgressores na delegacia de trânsito. No mandato, trocou o Rede pelo PT, levantou bandeiras progressistas e passou a ser visto como “decepção” pelo eleitorado conservador. À frente da proposta, fez um relatório nos moldes pretendidos por policiais e também parlamentares ligados ao bolsonarismo.
O projeto que institui uma lei orgânica – uma atualização do regimento das instituições militares dos Estados – tramita desde 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Em síntese, trata de funcionamento, garantias, vedações, regras para entrada e permanência e condições de manifestação política de policiais e bombeiros militares.
Bolsonaro só conseguiu que o texto fosse aprovado na Câmara, em dezembro. Embora tivesse nas PMs uma importante base de apoio eleitoral, o então presidente chegou a ser criticado por entidades da classe pela falta de medidas concretas em favor dos policiais. Nesta terça-feira, 7, o projeto foi aprovado no Senado.
Entre as regras do projeto, a proibição de filiação a partido político e a sindicato. E vedação, a menos que esteja a serviço, de comparecimento fardado a eventos político-partidários. Há, porém, uma série de outros pontos que empoderam as polícias e que estão sendo criticados por reforçar um aspecto “corporativo” do atual regramento, datado de 1969. Entenda:
Ameaça às secretarias de segurança
O projeto aprovado deixa uma brecha para que se acabe com as secretariais de segurança pública. Isso porque o artigo 29 sugere que os comandantes gerais poderão responder diretamente aos governadores, em modo semelhante ao funcionamento das instituições no Rio de Janeiro. A avaliação é do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“(Os comandantes) Serão responsáveis, no âmbito da administração direta, perante os governadores das respectivas unidades federativas e Territórios, pela administração e emprego da instituição”, diz o texto.
Prejuízo à independência das Ouvidorias
O texto estabelece que a Ouvidoria da Polícia Militar de cada estado será subordinada diretamente ao comandante-geral. A condição é vista como prejudicial à independência necessária no controle externo da atividade policial.
“Tal dispositivo enfraquece a independência das Ouvidorias e impede a criação de Ouvidorias Externas independentes com a participação de integrantes da sociedade civil, tornando o trabalho de controle interno potencialmente ineficaz”, diz nota técnica do Grupo de Trabalho Interinstitucional de Defesa da Cidadania.
O grupo é formado por dez instituições, como MPF, Defensoria Pública da União e Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Rio de Janeiro (OAB-RJ).
Ampliação de tarefas com atuação ambiental
O projeto coloca as PMs como integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama). A previsão do artigo 5º dá poder de fiscalização ambiental e de atuar na educação ambiental. É uma ampliação das atribuições dos militares estaduais que incomodou outras instituições, como o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente. A mudança é vista como uma brecha que, no futuro, fará as polícias requisitarem acesso aos recursos do Fundo Amazônia. Além disso, para especialistas e entidades que acompanharam a discussão, a medida pode gerar “conflitos de atribuição” com consequente “nulidades processuais”.
Teto de 20% para mulheres
O artigo 15 assegura “o preenchimento do percentual de 20% das vagas nos concursos públicos por candidatas do sexo feminino”. A exceção se dá somente na área da saúde, onde as mulheres, “além do percentual mínimo, concorrem à totalidade das vagas”
A forma como o dispositivo foi redigido, entretanto, é vista como uma forma de estabelecer um teto na participação de mulheres nas tropas. Propostas como a do Instituto Sou da Paz, para que ficasse estabelecido o “acesso universal das mulheres à totalidade das vagas disponibilizadas no certame” foram rejeitadas.
A definição de um teto é visto com fortes ressalvas por especialistas que entendem a presença feminina nas corporações militares como determinante para a promoção da proteção integral às mulheres, sobretudo em casos de violência de gênero.
Ausência de compromissos claros com direitos humanos
O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania fez críticas públicas ao projeto em discussão, que foi classificado como uma prioridade para o Ministério da Justiça, de Flávio Dino.
Segundo a pasta do ministro Silvio Almeida, a proposta tem dispositivos que “reforçam concepções e estruturas que se mostraram pouco eficientes, para dizer o mínimo, na proteção dos direitos fundamentais previstos na Constituição nas últimas décadas”.
“Não há avanços no ponto de vista de uma discussão transparente e democrática sobre o uso da força, sobre o combate ao racismo e sobre a construção de um policiamento baseado em evidências. Além disso, o projeto de lei pouco faz para integrar as polícias militares em uma lógica mais ampla de segurança pública, democrática e cidadã”, frisou um comunicado da pasta.
Na véspera da votação no Senado, um documento assinado por mais de cem entidades ligadas à proteção de direitos humanos e ao movimento negro divulgou uma nota contrária ao texto. “Há novamente um investimento em iniciativas já tentadas e fracassadas, sem um devido olhar para a história brasileira, para o racismo que estrutura nossa sociedade e para a necessidade de valorização da vida”, dizia o documento.
O que dizem as polícias?
As principais entidades de representação de policiais publicaram às vésperas da votação no Senado um “manifesto à nação” para defender a aprovação da lei orgânica.
No documento, as associações e federações afirmavam a “perplexidade” diante de “inverdades e deturpações trazidas por pessoas que alegam ser vinculadas à defesa dos direitos humanos” e ressaltavam o “notável e brilhante trabalho” do relator, senador Fabiano Contarato.
“Causa tristeza presenciar que estereótipos, estigmatizações, generalizações e, pior, ideologias prevaleçam sobre a racionalidade, técnica e diálogo de quem justamente sustenta defender os direitos humanos, sendo que sequer apontam quais pontos no texto são uma ameaça à sociedade e à democracia. Ao contrário, se pudessem ler sem viés ou visão estereotipada, poderiam verificar que o primeiro e mais importante princípio institucional que regerá as Polícias Militares e Bombeiros Militares é o respeito aos direitos e garantias fundamentais, dentre elas a defesa dos direitos humanos”, diz trecho do manifesto.