BRASÍLIA – A equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva quer reverter políticas da ex-ministra Damares Alves no Ministério de Direitos Humanos e recompor verbas e programas destinados à proteção de crianças e adolescentes. Uma das sugestões encaminhadas pelo grupo de trabalho responsável pela área é pagar uma pensão para crianças e adolescentes que perderam pais pela covid-19, os chamados órfãos da covid. O relatório foi entregue ao gabinete de transição e servirá de base para o futuro governo.
O documento, conforme o Estadão apurou, aponta “um retrocesso nunca antes documentado nas condições de vida e na garantia de direitos da população de 0 a 18 anos”. O quadro é descrito em função da falta de funcionamento de estruturas vinculadas à Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e dos cortes em verbas direcionadas a esse setor, na contramão do discurso da ex-ministra Damares, senadora eleita pelo Distrito Federal, de proteção aos grupos mais vulneráveis.
A proteção de crianças foi uma das principais bandeiras de Damares à frente do ministério. Para a equipe de transição, porém, a gestão focou em um discurso ideológico de perseguição a minorias e não priorizou a proteção dos grupos mais vulneráveis. Nesse sentido, o grupo de trabalho propôs a revogação de uma série de decretos e atos, incluindo a tipificação da chamada “ideologia de gênero” nos canais de atendimento do governo.
De acordo com os técnicos que elaboraram o relatório, o cenário ficou agravado pela violência que vitimou esse grupo, pela população de crianças em situação de rua, pela queda nos índices de vacinação e pelo aumento da fome e da miséria. O acolhimento dessas crianças enfrentou um “apagão de dados”, de acordo com o grupo de trabalho, que impossibilitou todas as informações.
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Somente os recursos voltados especificamente aos direitos da criança e do adolescente caíram de R$ 203 milhões em 2018 para R$ 54 milhões em 2022, com um orçamento ainda menor previsto para o ano que vem, de R$ 42 milhões. Damares comandou a pasta durante o governo Bolsonaro, até abril, quando deixou o cargo para concorrer a uma vaga no Senado, sendo eleita em outubro. Essas ações representam 33% de todo o orçamento do ministério, e agora só correspondem a 7% do total. A assessoria do ministério afirmou não poder se manifestar antes de ter acesso aos documentos.
Com os cortes, o grupo de transição apontou a falta de combate ao trabalho infantil, a extinção da comissão de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes e a interferência da ex-ministra na nomeação de integrantes do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente. Mesmo com o aumento de recursos propostos pela equipe de transição e por emendas parlamentares no Orçamento de 2023 no Congresso, o orçamento total do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos será o menor da Esplanada no ano que vem, de R$ 715,7 milhões.
“Apesar dos discursos de proteção da criança, que supostamente seria a prioridade do governo Bolsonaro, isso ficava apenas para pautas fundamentalistas. Na prática, o governo foi um desastre nessa área”, afirmou o advogado Ariel de Castro Alves, coordenador da área de Direitos da Criança e do Adolescente no Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da transição. “Em 2018, Bolsonaro prometeu rasgar o Estatuto da Criança e do Adolescente e jogar na latrina. E, de fato, o governo dele promoveu isso.”
Pensão
A pensão por órfãos da covid envolveria um benefício mensal a crianças e adolescentes de famílias de baixa renda que perderam os pais ou responsáveis em função da pandemia de covid-19. O governo não tem um levantamento de quantas crianças se encaixam nessa situação. Números de outras organizações consultados pelo gabinete de transição dão conta de 130 mil a 282 mil órfãos da covid.
A proposta da equipe de transição é que o governo Lula institua o benefício apoiando projetos de leis nesse sentido que tramitam no Congresso Nacional. Uma das propostas é da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid do Senado, que institui pensão especial para crianças e adolescentes órfãos de vítimas da pandemia da covid-19 até 21 anos de idade, ou 24 anos se o beneficiário entrar em um curso superior. O valor dependerá de regulamentação do Executivo. A proposta está vinculada ao Ministério do Trabalho e Previdência e será encaminhada para essa pasta.
A equipe de Lula quer acabar com a guerra contra a chamada “ideologia de gênero”, após o governo Bolsonaro abrir o Disque 100, voltado a receber denúncias de violação de direitos humanos, para pessoas que consideravam que seus filhos estavam expostos à doutrinação sexual e de gênero nas escolas. Para o grupo de trabalho, essa iniciativa incentiva a LGBTfobia. O mesmo canal também passou a receber reclamações contra o Ministério da Saúde, Estados e municípios de pessoas que não queriam vacinar crianças e adolescentes contra a covid-19. O relatório do grupo da transição aponta violação a direitos e propõe acabar com essas tipificações no Disque 100.
A equipe de Lula também avalia fazer um revogaço em decretos e portarias identificados pelo grupo de trabalho da criança e do adolescente, incluindo a flexibilização para o porte e posse de armas e o decreto que instituiu o programa nacional de escolas cívico militares, além de atos que mexeram na composição do conselho nacional, na inclusão de pessoas com deficiência nas escolas e de atos que teriam enfraquecido a fiscalização trabalho infantil, entre outros. O jurista Silvio Almeida foi escolhido por Lula para assumir o Ministério dos Direitos Humanos a partir de janeiro. A pasta deve continuar abrigando a área de crianças e adolescentes. Outro ministério, ainda não anunciado por Lula, incluiria Mulheres e Juventude.
Após a publicação da reportagem mostrando as conclusões do grupo de transição, o Ministério dos Direitos Humanos enviou uma nota para defender as políticas adotadas durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro.
A pasta citou, entre outras ações, equipagem de 3.200 Conselhos Tutelares em mais de 3 mil municípios brasileiros, investimentos em programas de proteção e de enfrentamento à violência e crimes sexuais, assim como a estruturação para o melhoramento do sistema socioeducativo para adolescentes em conflito com a lei.
“Desde 2019, uma das prioridades do Governo Federal tem sido tornar o Brasil mais seguro para crianças e adolescentes”, afirmou o ministério.