Estado que desarmar população e colocar câmera em PM terá mais dinheiro, diz Flavio Dino


Futuro ministro da Justiça no governo Lula, senador eleito pelo Maranhão diz que PF terá autonomia para investigar, mas sem fazer pirotecnia

Por Vinícius Valfré e Weslley Galzo
Atualização:

BRASÍLIA - O futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, afirmou que o novo governo vai mudar parâmetros de rateio do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para estados. Entre os novos critérios o futuro governo pretendem repassar mais recursos para estados que incentivem o desarmamento da população e utilizem câmeras nos uniformes dos policiais.

Em entrevista ao Estadão, o senador eleito pelo Maranhão disse esperar uma relação harmônica com o Poder Judiciário que, segundo ele, nos últimos, “salvou a democracia do Brasil”. Flávio Dino também detalhou a criação de uma estrutura dentro do ministério para trabalhar a troca de prisões por penas alternativas. Para o futuro chefe da pasta, o Estado erra e gasta mal ao resumir a execução penal a encarceramento.

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O futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, promete estimular o desarmamento e repassar mais recursos para estados em que policiais usarem câmeras. Foto: Wilton Junior / Estadão

O senhor classifica o vandalismo em Brasília como atos de terrorismo e portanto passíveis de serem enquadrados dessa forma?

Creio que há sim essa possibilidade porque tivemos crimes com intuito político. Essa é a fronteira que demarca a fronteira de terrorismo e de crimes contra o estado democrático de direito. Na medida que ali havia sim intuito político evidente, é um enquadramento possível. Tanto na lei do terrorismo quanto no capítulo do Código Penal sobre crimes contra o estado democrático de direito. Eu não posso afirmar que será isso porque obviamente não é uma decisão que depende do ministro. Depende do delegado que vai conduzir os inquéritos e do Ministério Público.

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Há segurança suficiente que possa garantir a normalidade da posse e também o desfile de Lula em carro aberto?

O planejamento vai todo nessa direção porque ele envolve a mobilização de um grande efetivo. Estou falando de milhares de policiais e de algum tipo de diálogo com GSI. Esse diálogo está em curso, não sou eu que conduzo, claro. Agora tem um ministro da Defesa, comandantes das forças. Então há uma tentativa de construção de um termo de entendimento, com a participação do próprio GSI. E nós teremos um fator determinante: nos atos de arruaça política e de terrorismo da segunda-feira, estamos falando de centenas de pessoas. Na posse teremos dezenas de milhares. O dia 1º de janeiro não é um dia muito suscetível a mobilização, a não ser de quem está motivado a participar. Essa assimetria entre eventuais inconformados e aqueles que estarão festejando também é uma proteção. E a decisão do presidente Lula é essa. Ele quer fazer o desfile, quer fazer o festival cultural.

O monitoramento indica possibilidade de bloqueio de estradas para impedir que caravanas que vêm de todo o Brasil cheguem a Brasília?

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Se eu disser em termos absolutos que isso não vai ocorrer de forma alguma, é uma declaração que se choca contra dimensão continental do Brasil. De modo generalizado não vai acontecer. A PRF estará, na prática, sob nosso comando. Pode ter um ponto ou outro, mas sinceramente não acredito. Se houver seria uma coisa muito pequena muito isolada muito irrelevante. Acho realmente que o pior passou.

A PRF se tornou uma das instituições mais impactadas pelo bolsonarismo. Qual o plano para restabelecer a autonomia da corporação e adotar protocolos mais ‘democráticos’ na PRF?

Houve indiscutivelmente politização, ideologização, aparelhamento, partidarização indevida de uma força policial. Houve muitos sintomas disso como esses que você exemplifica, mas isso é algo declinante. Progressivamente, há uma acomodação. A pessoa teve a sua opção eleitoral, legítima, mas não está mais de modo expressivo militando, brigando por essa opção. Temos fatores objetivos. Lula foi diplomado, não houve grandes atos de massa, o Bolsonaro sem capacidade de reação, as badernas e arruaças acabaram afastando pessoas.

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Mas como superar a politização?

Em movimentos. Não se supera com um momento mágico de repactuação porque esse momento mágico não existe. Você supera com uma agenda de trabalho. ‘Olha, a agenda é essa aqui e nós vamos caminhar por aqui’. Quem quiser vir, ótimo, é seu dever. E quem não quiser cumprir seu dever? Seguiremos o que a lei manda. Um servidor público não pode escolher a qual governo ele serve. Não tenho ainda o diretor-geral da PRF exatamente porque está sendo escolhido com muito cuidado. Vai ser apresentado ao presidente Lula no sentido de ser uma pessoa que tem essa capacidade de liderar a instituição para o novo momento, com uma agenda de trabalho. Mas o novo momento vai afastar as opções bolsonaristas? Não, e nós não estamos preocupados com isso. O pessoal pode ter votado no Bolsonaro, pode votar de novo. Tem gosto exótico para tudo. O que nós estamos preocupados: esse cidadão que é policial rodoviário federal votou no Bolsonaro e quer votar de novo não pode deixar de trabalhar, de cumprir os seus deveres funcionais.

O que seria essa agenda de trabalho?

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Estamos trabalhando nela. A PRF vai ser chamada a participar, atuar na Amazônia muito fortemente. Nós temos muitas BR na Amazônia. A PRF deve retomar o seu protagonismo no patrulhamento ostensivo das rodovias federais que foi uma área praticamente abandonada. Todos os temas relativos a crimes que transitem pelas estradas federais, como tráficos de modo geral, exploração sexual de crianças e adolescentes, de madeira. É uma agenda de trabalho. Uma corporação armada precisa ter coesão porque senão ela degenera. E não teria policiais, mas mini ditadores, o que seria muito perigoso.

No atual governo, a PF perdeu autonomia. O novo governo pretende resgatar a autonomia ou o chefe da PF deverá atender diretamente o senhor e o Lula?

Claro que ele vai ter que atender na matéria administrativa. Há um comando administrativo que foi eleito pelo voto popular, mas esse comando administrativo não se refere ao mérito das investigações. No inquérito, o delegado tem autonomia técnica. Ele se reporta ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Interferência em investigação jamais, nem para um lado nem para o outro. A única modulação que nós faremos é de conduta ética. Por exemplo: investigações espetacularizadas são eficientes? Não, são ineficientes. Quebram o elemento fundamental da instituição que é a sua credibilidade, a sua isenção. Se um delegado espetaculariza uma investigação, ele está praticamente sentenciando o investigado. O delegado vai ter autonomia quanto ao mérito, mas não quanto ao método. No mérito vai dizer se considera crime ou não, mas o procedimento tem que ser manualizado.

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Terá autonomia quanto ao mérito ainda que os riscos para Lula, PT e vários aliados sejam os mesmos que os de anos atrás?

O presidente Lula tem em relação a esse tema a mesma visão que tinha 20 anos atrás. Jamais chegou para mim para dizer que isso vai ser de tal forma. A única questão que é pública e que não é, veja, quanto ao presidente Lula ou a esquerda, é quanto a política de um modo geral, é que, às vezes de modo acertado e às vezes de modo errado, a política registra o incômodo com investigações espetacularizadas. Então, esse é um tema que realmente não pode continuar a ser feito como antes, em que faziam uma operação e usavam um aparato desproporcional para poder gerar atratividade, antecipação de mérito. Há diferença entre função política e função técnica. Se você exerce uma função técnica com interesse político, está errado, como a gente viu.

O governo Lula foi responsável pela aprovação da lei de drogas que é, até hoje, muito criticada por setores da esquerda e movimentos sociais por levar ao encarceramento de jovens da periferia, sobretudo negros. Pretende rever essa lei junto ao Congresso e conduzir um projeto de reforma do sistema carcerário?

Em relação ao desencarceramento, à despenalização, no sentido da pena privativa de liberdade, sim. Nós vamos fazer uma alteração em que o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) vai virar a Secretaria Nacional Penitenciária e de Alternativas Penais para sublinhar que a execução penal não é igual a prender. A execução penal é muito maior que prender. A prisão na verdade é o último instrumento. Então, nós vamos colocar alternativas penais no mesmo patamar que a prisão, formalmente falando na estrutura do ministério. Isso é um problema secular, por várias razões. Ideológicas ou simbólicas. O sistema penitenciário se presta também a essa visão de perpetuação de privilégios, de discriminações. E isso fez com que houvesse uma ideia de que execução penal agora é igual a aprender. Não é. Então, essa é a grande mudança: alternativas penais do mesmo tamanho, e eu diria que até com primazia, sobre a pena de prisão.

Existe um pensamento médio que vê essa ideia de penas alternativas como forma de colocar bandidos na rua. Haverá desgaste?

Quando você coloca que alternativa penal é exclusivamente para crimes cometidos sem violência e sem grave ameaça à pessoa, fica mais claro o debate. Alternativas penais não é para quem cometeu homicídio, latrocínio, estupro. E complementamos dizendo que preso custa R$ 2.500 por mês. Uma pena alternativa, R$ 250. A sociedade entende que é um caminho melhor.

E quanto a eventuais mudanças na lei de drogas?

Eu não compartilho muito dessas visões de que a lei de drogas é a culpada. Ela cumpriu um papel muito importante. Praticamente você não tem pessoas presas por posse. Já foi um avanço. Mas qualquer novo avanço legislativo depende de uma decisão do Supremo que tem um julgamento iniciado sobre drogas. Em algum momento vai concluir, provavelmente no próximo ano. O mais correto é esperar o término desse julgamento que aí você faz uma normatização de acordo com que o Supremo venha a entender sobre o que é posse e o que é tráfico.

Além da secretaria de alternativas penais, que outras mudanças na estrutura ocorrerão? A Secretaria de Operações Integradas (Seopi), criada por Bolsonaro e questionada por polêmicas sobre espionagens contra opositores, será mantida?

Vamos estruturar uma Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) forte, com o comando único. Houve essas controvérsias no passado (de espionagem) e havia uma dualidade de comandos. Isso não funciona. Vamos incorporar tudo na Senasp. Vai ter uma divisão de operação integrada, sim, mas não com o mesmo status de secretário. O secretário da Senasp vai ser o comandante dessa cooperação federativa ativa do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), com um só comando. Na Senasp, cada polícia vai ter uma diretoria, a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Corpo de Bombeiros e a Guarda Municipal.

Haverá outras novas secretarias além da de Acesso à Justiça?

Ela é fruto de uma compreensão das grandes questões que há muitos séculos nos desafiam. Ela tem duas grandes ênfases: a justiça anti-racista e o combate à feminicídio. Também ter a retomada da secretaria de assuntos legislativos para que o Ministério da Justiça volte a ser protagonista da qualidade da ordem jurídica, com elaboração de leis. E vamos ter a secretaria especial de Direitos Digitais, comandada pela Estela Aranha, professora do IDP. Ela vai ter esse papel de fazer interface com a academia, com outras áreas de governo sobre esse tema que desafia a democracia do mundo. A Funai e o Arquivo Nacional saem da estrutura do Ministério da Justiça e vão para o novo ministério dos Povos Originários e para o Ministério do Planejamento. Me consultaram e eu disse ' olha, o que quiser colocar aqui eu tomo conta, mas o que quiserem levar eu não crio confusão’. Não tenho nem medo de trabalho nem fome de estrutura, até porque o antecessor meu cometeu esse erro e aí a gente deve se inspirar nos erros alheios para não cometer iguais.

O senhor diz que não tem fome de estrutura, mas por que é contra separar a pasta e ter um ministério da Segurança Pública?

Respeito muito o debate. Conheço pessoas seríssimas que defendem essa ideia do Ministério da Segurança e compreendo a nobreza do intuito que é conferir uma maior ênfase ao tema. O presidente Lula não fixou prazo para esse debate. Pelo modelo brasileiro, segurança pública só anda no diálogo com o Ministério Público e com o Poder Judiciário. A esfera de atuação discricionária da polícia é muito pequena. Minha tese é: para a segurança pública funcionar melhor é importante que tenha um único comando da parte da segurança dialogando ao mesmo tempo com o sistema de justiça.

O STF ganhou mais visibilidade para conter as ameaças antidemocráticas do governo Bolsonaro. Mas esse movimento do Judiciário não foi imune a críticas. Qual é a sua avaliação sobre esse protagonismo? Não teme que esse protagonismo se volte também contra o novo governo?

Esse é um debate internacional que já tem pelo menos 50 anos. A Segunda Grande Guerra foi o colapso da política. Qual foi a resposta institucional na Europa Ocidental? Fortalecimento dos tribunais constitucionais e das constituições como mecanismo de resposta ao fracasso da política. A função de controle de constitucionalidade das leis se alargou em razão disso. No Brasil é similar. O colapso da política levou a um agigantamento da função do Judiciário. O equilíbrio entre os Poderes é dinâmico, não é estático. A própria Constituição indica isso quando ela cunha dois valores com idêntica hierarquia normativa, mas que são aparentemente antitéticos. De um lado independência e do outro harmonia. Quando ela cunha essa aparente antinomia, o que ela tá dizendo? É um equilíbrio dinâmico, em que o hora o peso está mais na independência, hora está mais na harmonia. O que é chamado protagonismo e é o momento em que essa independência é maior porque a política está fraca.

Com o novo governo esse novo dinamismo muda, na sua concepção?

Quando você tem uma maior harmonia, maior equilíbrio, é quando a política recupera a funcionalidade e aí você tem mais convergência institucional. Eu acho que o momento que o Brasil viveu nos últimos anos, foi um momento de fracasso. Não pode ter sinal maior do que fracasso do que um desatinado na Presidência da República. E isso fez que nesse equilíbrio dinâmico, de freios e contrapesos, de harmonia e independência, a função do Judiciário se agigantasse. Em certo momento até a do Congresso. Na pandemia, foi o Congresso, o Judiciário e os governadores versus um bárbaro. Tenho impressão que agora nós vamos ter um reajuste nessa equação porque a política recupera uma parte da sua força colapsada pelo bolsonarismo e a gente volta a um quadro de normalidade institucional. E quero destacar: essa atitude do Judiciário de ter mais protagonismo, mais independência, foi o que salvou a democracia brasileira. Foi esse protagonismo do Judiciário que salvou a democracia brasileira e permitiu que a gente chegasse até aqui.

Qual o tamanho da preocupação do senhor com a politização das polícias estaduais e como controlá-la?

Entre o ministro da Justiça e as polícias tem o governador e o secretário de segurança. Jamais, no âmbito do SUSP vai ter ideia de subtrair a autoridade do governador ou de um secretário. Isso deu errado. Uma das razões das dificuldades de melhoria da segurança foi essa atitude de plantar motim em polícia como a gente viu no Ceará. Havia claramente uma sabotagem contra o governador. Como contornar isso? Prestigiando a autoridade dos governadores. Esse é o caminho. Não vai ter um diálogo nosso direto com as polícias estaduais porque não nos cabe.

O senhor pretende mudar critérios de rateio da verba do Fundo Nacional de Segurança Pública para os estados?

Vamos rever a portaria. Tem muitos critérios vagos. Vamos objetivar mais, com metas concretas e alinhadas com as prioridades. Vamos alinhar os critérios de acordo com as metas. Não posso interferir nas prioridades dos governadores, independência total. Agora, na partilha dos recursos do Fundo Nacional nós temos metas nacionais a cumprir com, por exemplo, combate ao armamentismo, apoio às vítimas de crimes violentos, combate a feminicídio, combate a crimes de ódio. Esses são pontos que passarão a ser valorados. Estados que implantam câmera ou não implantam câmera nos uniformes dos policiais a gente vai valorar. A gente acredita que é importante combater a violência policial. Ninguém é obrigado a fazer, mas quem fizer a gente vai valorar mais. Essa é a ideia geral.

O novo governo fará um “revogaço” de portarias e decretos referentes a flexibilização do acesso a armas. Mas milhares de armas entraram em circulação graças a esses dispositivos e continuam entrando até 31 de dezembro. O que fará para reduzir esse arsenal privado já constituído?

O que está decidido até o presente momento e que vai provavelmente constar no novo decreto é a ideia de encurtamento de registros. Hoje eles são de 3, 5 ou 10 anos. No caso de armas de uso restrito vamos trazer para um 1 ano. Se você não registra essa arma, ela passou a ser ilegal e você está cometendo crime. Outra ideia é a da recompra. Não será em janeiro porque nós não temos ainda a equação fiscal, não tem como montar um programa de recompra de armas de uso restrito ainda. E tem uma ideia que precisa de debate mais aprofundado que é a regulação dos clubes de tiro e dos CACs (colecionador, atirador esportivo e caçador). Não pode existir um colecionador sem coleção, não pode existir um atirador que não vai em clube de tiro e não pode existir um caçador que não tem licença de caça.

BRASÍLIA - O futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, afirmou que o novo governo vai mudar parâmetros de rateio do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para estados. Entre os novos critérios o futuro governo pretendem repassar mais recursos para estados que incentivem o desarmamento da população e utilizem câmeras nos uniformes dos policiais.

Em entrevista ao Estadão, o senador eleito pelo Maranhão disse esperar uma relação harmônica com o Poder Judiciário que, segundo ele, nos últimos, “salvou a democracia do Brasil”. Flávio Dino também detalhou a criação de uma estrutura dentro do ministério para trabalhar a troca de prisões por penas alternativas. Para o futuro chefe da pasta, o Estado erra e gasta mal ao resumir a execução penal a encarceramento.

O futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, promete estimular o desarmamento e repassar mais recursos para estados em que policiais usarem câmeras. Foto: Wilton Junior / Estadão

O senhor classifica o vandalismo em Brasília como atos de terrorismo e portanto passíveis de serem enquadrados dessa forma?

Creio que há sim essa possibilidade porque tivemos crimes com intuito político. Essa é a fronteira que demarca a fronteira de terrorismo e de crimes contra o estado democrático de direito. Na medida que ali havia sim intuito político evidente, é um enquadramento possível. Tanto na lei do terrorismo quanto no capítulo do Código Penal sobre crimes contra o estado democrático de direito. Eu não posso afirmar que será isso porque obviamente não é uma decisão que depende do ministro. Depende do delegado que vai conduzir os inquéritos e do Ministério Público.

Há segurança suficiente que possa garantir a normalidade da posse e também o desfile de Lula em carro aberto?

O planejamento vai todo nessa direção porque ele envolve a mobilização de um grande efetivo. Estou falando de milhares de policiais e de algum tipo de diálogo com GSI. Esse diálogo está em curso, não sou eu que conduzo, claro. Agora tem um ministro da Defesa, comandantes das forças. Então há uma tentativa de construção de um termo de entendimento, com a participação do próprio GSI. E nós teremos um fator determinante: nos atos de arruaça política e de terrorismo da segunda-feira, estamos falando de centenas de pessoas. Na posse teremos dezenas de milhares. O dia 1º de janeiro não é um dia muito suscetível a mobilização, a não ser de quem está motivado a participar. Essa assimetria entre eventuais inconformados e aqueles que estarão festejando também é uma proteção. E a decisão do presidente Lula é essa. Ele quer fazer o desfile, quer fazer o festival cultural.

O monitoramento indica possibilidade de bloqueio de estradas para impedir que caravanas que vêm de todo o Brasil cheguem a Brasília?

Se eu disser em termos absolutos que isso não vai ocorrer de forma alguma, é uma declaração que se choca contra dimensão continental do Brasil. De modo generalizado não vai acontecer. A PRF estará, na prática, sob nosso comando. Pode ter um ponto ou outro, mas sinceramente não acredito. Se houver seria uma coisa muito pequena muito isolada muito irrelevante. Acho realmente que o pior passou.

A PRF se tornou uma das instituições mais impactadas pelo bolsonarismo. Qual o plano para restabelecer a autonomia da corporação e adotar protocolos mais ‘democráticos’ na PRF?

Houve indiscutivelmente politização, ideologização, aparelhamento, partidarização indevida de uma força policial. Houve muitos sintomas disso como esses que você exemplifica, mas isso é algo declinante. Progressivamente, há uma acomodação. A pessoa teve a sua opção eleitoral, legítima, mas não está mais de modo expressivo militando, brigando por essa opção. Temos fatores objetivos. Lula foi diplomado, não houve grandes atos de massa, o Bolsonaro sem capacidade de reação, as badernas e arruaças acabaram afastando pessoas.

Mas como superar a politização?

Em movimentos. Não se supera com um momento mágico de repactuação porque esse momento mágico não existe. Você supera com uma agenda de trabalho. ‘Olha, a agenda é essa aqui e nós vamos caminhar por aqui’. Quem quiser vir, ótimo, é seu dever. E quem não quiser cumprir seu dever? Seguiremos o que a lei manda. Um servidor público não pode escolher a qual governo ele serve. Não tenho ainda o diretor-geral da PRF exatamente porque está sendo escolhido com muito cuidado. Vai ser apresentado ao presidente Lula no sentido de ser uma pessoa que tem essa capacidade de liderar a instituição para o novo momento, com uma agenda de trabalho. Mas o novo momento vai afastar as opções bolsonaristas? Não, e nós não estamos preocupados com isso. O pessoal pode ter votado no Bolsonaro, pode votar de novo. Tem gosto exótico para tudo. O que nós estamos preocupados: esse cidadão que é policial rodoviário federal votou no Bolsonaro e quer votar de novo não pode deixar de trabalhar, de cumprir os seus deveres funcionais.

O que seria essa agenda de trabalho?

Estamos trabalhando nela. A PRF vai ser chamada a participar, atuar na Amazônia muito fortemente. Nós temos muitas BR na Amazônia. A PRF deve retomar o seu protagonismo no patrulhamento ostensivo das rodovias federais que foi uma área praticamente abandonada. Todos os temas relativos a crimes que transitem pelas estradas federais, como tráficos de modo geral, exploração sexual de crianças e adolescentes, de madeira. É uma agenda de trabalho. Uma corporação armada precisa ter coesão porque senão ela degenera. E não teria policiais, mas mini ditadores, o que seria muito perigoso.

No atual governo, a PF perdeu autonomia. O novo governo pretende resgatar a autonomia ou o chefe da PF deverá atender diretamente o senhor e o Lula?

Claro que ele vai ter que atender na matéria administrativa. Há um comando administrativo que foi eleito pelo voto popular, mas esse comando administrativo não se refere ao mérito das investigações. No inquérito, o delegado tem autonomia técnica. Ele se reporta ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Interferência em investigação jamais, nem para um lado nem para o outro. A única modulação que nós faremos é de conduta ética. Por exemplo: investigações espetacularizadas são eficientes? Não, são ineficientes. Quebram o elemento fundamental da instituição que é a sua credibilidade, a sua isenção. Se um delegado espetaculariza uma investigação, ele está praticamente sentenciando o investigado. O delegado vai ter autonomia quanto ao mérito, mas não quanto ao método. No mérito vai dizer se considera crime ou não, mas o procedimento tem que ser manualizado.

Terá autonomia quanto ao mérito ainda que os riscos para Lula, PT e vários aliados sejam os mesmos que os de anos atrás?

O presidente Lula tem em relação a esse tema a mesma visão que tinha 20 anos atrás. Jamais chegou para mim para dizer que isso vai ser de tal forma. A única questão que é pública e que não é, veja, quanto ao presidente Lula ou a esquerda, é quanto a política de um modo geral, é que, às vezes de modo acertado e às vezes de modo errado, a política registra o incômodo com investigações espetacularizadas. Então, esse é um tema que realmente não pode continuar a ser feito como antes, em que faziam uma operação e usavam um aparato desproporcional para poder gerar atratividade, antecipação de mérito. Há diferença entre função política e função técnica. Se você exerce uma função técnica com interesse político, está errado, como a gente viu.

O governo Lula foi responsável pela aprovação da lei de drogas que é, até hoje, muito criticada por setores da esquerda e movimentos sociais por levar ao encarceramento de jovens da periferia, sobretudo negros. Pretende rever essa lei junto ao Congresso e conduzir um projeto de reforma do sistema carcerário?

Em relação ao desencarceramento, à despenalização, no sentido da pena privativa de liberdade, sim. Nós vamos fazer uma alteração em que o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) vai virar a Secretaria Nacional Penitenciária e de Alternativas Penais para sublinhar que a execução penal não é igual a prender. A execução penal é muito maior que prender. A prisão na verdade é o último instrumento. Então, nós vamos colocar alternativas penais no mesmo patamar que a prisão, formalmente falando na estrutura do ministério. Isso é um problema secular, por várias razões. Ideológicas ou simbólicas. O sistema penitenciário se presta também a essa visão de perpetuação de privilégios, de discriminações. E isso fez com que houvesse uma ideia de que execução penal agora é igual a aprender. Não é. Então, essa é a grande mudança: alternativas penais do mesmo tamanho, e eu diria que até com primazia, sobre a pena de prisão.

Existe um pensamento médio que vê essa ideia de penas alternativas como forma de colocar bandidos na rua. Haverá desgaste?

Quando você coloca que alternativa penal é exclusivamente para crimes cometidos sem violência e sem grave ameaça à pessoa, fica mais claro o debate. Alternativas penais não é para quem cometeu homicídio, latrocínio, estupro. E complementamos dizendo que preso custa R$ 2.500 por mês. Uma pena alternativa, R$ 250. A sociedade entende que é um caminho melhor.

E quanto a eventuais mudanças na lei de drogas?

Eu não compartilho muito dessas visões de que a lei de drogas é a culpada. Ela cumpriu um papel muito importante. Praticamente você não tem pessoas presas por posse. Já foi um avanço. Mas qualquer novo avanço legislativo depende de uma decisão do Supremo que tem um julgamento iniciado sobre drogas. Em algum momento vai concluir, provavelmente no próximo ano. O mais correto é esperar o término desse julgamento que aí você faz uma normatização de acordo com que o Supremo venha a entender sobre o que é posse e o que é tráfico.

Além da secretaria de alternativas penais, que outras mudanças na estrutura ocorrerão? A Secretaria de Operações Integradas (Seopi), criada por Bolsonaro e questionada por polêmicas sobre espionagens contra opositores, será mantida?

Vamos estruturar uma Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) forte, com o comando único. Houve essas controvérsias no passado (de espionagem) e havia uma dualidade de comandos. Isso não funciona. Vamos incorporar tudo na Senasp. Vai ter uma divisão de operação integrada, sim, mas não com o mesmo status de secretário. O secretário da Senasp vai ser o comandante dessa cooperação federativa ativa do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), com um só comando. Na Senasp, cada polícia vai ter uma diretoria, a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Corpo de Bombeiros e a Guarda Municipal.

Haverá outras novas secretarias além da de Acesso à Justiça?

Ela é fruto de uma compreensão das grandes questões que há muitos séculos nos desafiam. Ela tem duas grandes ênfases: a justiça anti-racista e o combate à feminicídio. Também ter a retomada da secretaria de assuntos legislativos para que o Ministério da Justiça volte a ser protagonista da qualidade da ordem jurídica, com elaboração de leis. E vamos ter a secretaria especial de Direitos Digitais, comandada pela Estela Aranha, professora do IDP. Ela vai ter esse papel de fazer interface com a academia, com outras áreas de governo sobre esse tema que desafia a democracia do mundo. A Funai e o Arquivo Nacional saem da estrutura do Ministério da Justiça e vão para o novo ministério dos Povos Originários e para o Ministério do Planejamento. Me consultaram e eu disse ' olha, o que quiser colocar aqui eu tomo conta, mas o que quiserem levar eu não crio confusão’. Não tenho nem medo de trabalho nem fome de estrutura, até porque o antecessor meu cometeu esse erro e aí a gente deve se inspirar nos erros alheios para não cometer iguais.

O senhor diz que não tem fome de estrutura, mas por que é contra separar a pasta e ter um ministério da Segurança Pública?

Respeito muito o debate. Conheço pessoas seríssimas que defendem essa ideia do Ministério da Segurança e compreendo a nobreza do intuito que é conferir uma maior ênfase ao tema. O presidente Lula não fixou prazo para esse debate. Pelo modelo brasileiro, segurança pública só anda no diálogo com o Ministério Público e com o Poder Judiciário. A esfera de atuação discricionária da polícia é muito pequena. Minha tese é: para a segurança pública funcionar melhor é importante que tenha um único comando da parte da segurança dialogando ao mesmo tempo com o sistema de justiça.

O STF ganhou mais visibilidade para conter as ameaças antidemocráticas do governo Bolsonaro. Mas esse movimento do Judiciário não foi imune a críticas. Qual é a sua avaliação sobre esse protagonismo? Não teme que esse protagonismo se volte também contra o novo governo?

Esse é um debate internacional que já tem pelo menos 50 anos. A Segunda Grande Guerra foi o colapso da política. Qual foi a resposta institucional na Europa Ocidental? Fortalecimento dos tribunais constitucionais e das constituições como mecanismo de resposta ao fracasso da política. A função de controle de constitucionalidade das leis se alargou em razão disso. No Brasil é similar. O colapso da política levou a um agigantamento da função do Judiciário. O equilíbrio entre os Poderes é dinâmico, não é estático. A própria Constituição indica isso quando ela cunha dois valores com idêntica hierarquia normativa, mas que são aparentemente antitéticos. De um lado independência e do outro harmonia. Quando ela cunha essa aparente antinomia, o que ela tá dizendo? É um equilíbrio dinâmico, em que o hora o peso está mais na independência, hora está mais na harmonia. O que é chamado protagonismo e é o momento em que essa independência é maior porque a política está fraca.

Com o novo governo esse novo dinamismo muda, na sua concepção?

Quando você tem uma maior harmonia, maior equilíbrio, é quando a política recupera a funcionalidade e aí você tem mais convergência institucional. Eu acho que o momento que o Brasil viveu nos últimos anos, foi um momento de fracasso. Não pode ter sinal maior do que fracasso do que um desatinado na Presidência da República. E isso fez que nesse equilíbrio dinâmico, de freios e contrapesos, de harmonia e independência, a função do Judiciário se agigantasse. Em certo momento até a do Congresso. Na pandemia, foi o Congresso, o Judiciário e os governadores versus um bárbaro. Tenho impressão que agora nós vamos ter um reajuste nessa equação porque a política recupera uma parte da sua força colapsada pelo bolsonarismo e a gente volta a um quadro de normalidade institucional. E quero destacar: essa atitude do Judiciário de ter mais protagonismo, mais independência, foi o que salvou a democracia brasileira. Foi esse protagonismo do Judiciário que salvou a democracia brasileira e permitiu que a gente chegasse até aqui.

Qual o tamanho da preocupação do senhor com a politização das polícias estaduais e como controlá-la?

Entre o ministro da Justiça e as polícias tem o governador e o secretário de segurança. Jamais, no âmbito do SUSP vai ter ideia de subtrair a autoridade do governador ou de um secretário. Isso deu errado. Uma das razões das dificuldades de melhoria da segurança foi essa atitude de plantar motim em polícia como a gente viu no Ceará. Havia claramente uma sabotagem contra o governador. Como contornar isso? Prestigiando a autoridade dos governadores. Esse é o caminho. Não vai ter um diálogo nosso direto com as polícias estaduais porque não nos cabe.

O senhor pretende mudar critérios de rateio da verba do Fundo Nacional de Segurança Pública para os estados?

Vamos rever a portaria. Tem muitos critérios vagos. Vamos objetivar mais, com metas concretas e alinhadas com as prioridades. Vamos alinhar os critérios de acordo com as metas. Não posso interferir nas prioridades dos governadores, independência total. Agora, na partilha dos recursos do Fundo Nacional nós temos metas nacionais a cumprir com, por exemplo, combate ao armamentismo, apoio às vítimas de crimes violentos, combate a feminicídio, combate a crimes de ódio. Esses são pontos que passarão a ser valorados. Estados que implantam câmera ou não implantam câmera nos uniformes dos policiais a gente vai valorar. A gente acredita que é importante combater a violência policial. Ninguém é obrigado a fazer, mas quem fizer a gente vai valorar mais. Essa é a ideia geral.

O novo governo fará um “revogaço” de portarias e decretos referentes a flexibilização do acesso a armas. Mas milhares de armas entraram em circulação graças a esses dispositivos e continuam entrando até 31 de dezembro. O que fará para reduzir esse arsenal privado já constituído?

O que está decidido até o presente momento e que vai provavelmente constar no novo decreto é a ideia de encurtamento de registros. Hoje eles são de 3, 5 ou 10 anos. No caso de armas de uso restrito vamos trazer para um 1 ano. Se você não registra essa arma, ela passou a ser ilegal e você está cometendo crime. Outra ideia é a da recompra. Não será em janeiro porque nós não temos ainda a equação fiscal, não tem como montar um programa de recompra de armas de uso restrito ainda. E tem uma ideia que precisa de debate mais aprofundado que é a regulação dos clubes de tiro e dos CACs (colecionador, atirador esportivo e caçador). Não pode existir um colecionador sem coleção, não pode existir um atirador que não vai em clube de tiro e não pode existir um caçador que não tem licença de caça.

BRASÍLIA - O futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, afirmou que o novo governo vai mudar parâmetros de rateio do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para estados. Entre os novos critérios o futuro governo pretendem repassar mais recursos para estados que incentivem o desarmamento da população e utilizem câmeras nos uniformes dos policiais.

Em entrevista ao Estadão, o senador eleito pelo Maranhão disse esperar uma relação harmônica com o Poder Judiciário que, segundo ele, nos últimos, “salvou a democracia do Brasil”. Flávio Dino também detalhou a criação de uma estrutura dentro do ministério para trabalhar a troca de prisões por penas alternativas. Para o futuro chefe da pasta, o Estado erra e gasta mal ao resumir a execução penal a encarceramento.

O futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, promete estimular o desarmamento e repassar mais recursos para estados em que policiais usarem câmeras. Foto: Wilton Junior / Estadão

O senhor classifica o vandalismo em Brasília como atos de terrorismo e portanto passíveis de serem enquadrados dessa forma?

Creio que há sim essa possibilidade porque tivemos crimes com intuito político. Essa é a fronteira que demarca a fronteira de terrorismo e de crimes contra o estado democrático de direito. Na medida que ali havia sim intuito político evidente, é um enquadramento possível. Tanto na lei do terrorismo quanto no capítulo do Código Penal sobre crimes contra o estado democrático de direito. Eu não posso afirmar que será isso porque obviamente não é uma decisão que depende do ministro. Depende do delegado que vai conduzir os inquéritos e do Ministério Público.

Há segurança suficiente que possa garantir a normalidade da posse e também o desfile de Lula em carro aberto?

O planejamento vai todo nessa direção porque ele envolve a mobilização de um grande efetivo. Estou falando de milhares de policiais e de algum tipo de diálogo com GSI. Esse diálogo está em curso, não sou eu que conduzo, claro. Agora tem um ministro da Defesa, comandantes das forças. Então há uma tentativa de construção de um termo de entendimento, com a participação do próprio GSI. E nós teremos um fator determinante: nos atos de arruaça política e de terrorismo da segunda-feira, estamos falando de centenas de pessoas. Na posse teremos dezenas de milhares. O dia 1º de janeiro não é um dia muito suscetível a mobilização, a não ser de quem está motivado a participar. Essa assimetria entre eventuais inconformados e aqueles que estarão festejando também é uma proteção. E a decisão do presidente Lula é essa. Ele quer fazer o desfile, quer fazer o festival cultural.

O monitoramento indica possibilidade de bloqueio de estradas para impedir que caravanas que vêm de todo o Brasil cheguem a Brasília?

Se eu disser em termos absolutos que isso não vai ocorrer de forma alguma, é uma declaração que se choca contra dimensão continental do Brasil. De modo generalizado não vai acontecer. A PRF estará, na prática, sob nosso comando. Pode ter um ponto ou outro, mas sinceramente não acredito. Se houver seria uma coisa muito pequena muito isolada muito irrelevante. Acho realmente que o pior passou.

A PRF se tornou uma das instituições mais impactadas pelo bolsonarismo. Qual o plano para restabelecer a autonomia da corporação e adotar protocolos mais ‘democráticos’ na PRF?

Houve indiscutivelmente politização, ideologização, aparelhamento, partidarização indevida de uma força policial. Houve muitos sintomas disso como esses que você exemplifica, mas isso é algo declinante. Progressivamente, há uma acomodação. A pessoa teve a sua opção eleitoral, legítima, mas não está mais de modo expressivo militando, brigando por essa opção. Temos fatores objetivos. Lula foi diplomado, não houve grandes atos de massa, o Bolsonaro sem capacidade de reação, as badernas e arruaças acabaram afastando pessoas.

Mas como superar a politização?

Em movimentos. Não se supera com um momento mágico de repactuação porque esse momento mágico não existe. Você supera com uma agenda de trabalho. ‘Olha, a agenda é essa aqui e nós vamos caminhar por aqui’. Quem quiser vir, ótimo, é seu dever. E quem não quiser cumprir seu dever? Seguiremos o que a lei manda. Um servidor público não pode escolher a qual governo ele serve. Não tenho ainda o diretor-geral da PRF exatamente porque está sendo escolhido com muito cuidado. Vai ser apresentado ao presidente Lula no sentido de ser uma pessoa que tem essa capacidade de liderar a instituição para o novo momento, com uma agenda de trabalho. Mas o novo momento vai afastar as opções bolsonaristas? Não, e nós não estamos preocupados com isso. O pessoal pode ter votado no Bolsonaro, pode votar de novo. Tem gosto exótico para tudo. O que nós estamos preocupados: esse cidadão que é policial rodoviário federal votou no Bolsonaro e quer votar de novo não pode deixar de trabalhar, de cumprir os seus deveres funcionais.

O que seria essa agenda de trabalho?

Estamos trabalhando nela. A PRF vai ser chamada a participar, atuar na Amazônia muito fortemente. Nós temos muitas BR na Amazônia. A PRF deve retomar o seu protagonismo no patrulhamento ostensivo das rodovias federais que foi uma área praticamente abandonada. Todos os temas relativos a crimes que transitem pelas estradas federais, como tráficos de modo geral, exploração sexual de crianças e adolescentes, de madeira. É uma agenda de trabalho. Uma corporação armada precisa ter coesão porque senão ela degenera. E não teria policiais, mas mini ditadores, o que seria muito perigoso.

No atual governo, a PF perdeu autonomia. O novo governo pretende resgatar a autonomia ou o chefe da PF deverá atender diretamente o senhor e o Lula?

Claro que ele vai ter que atender na matéria administrativa. Há um comando administrativo que foi eleito pelo voto popular, mas esse comando administrativo não se refere ao mérito das investigações. No inquérito, o delegado tem autonomia técnica. Ele se reporta ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Interferência em investigação jamais, nem para um lado nem para o outro. A única modulação que nós faremos é de conduta ética. Por exemplo: investigações espetacularizadas são eficientes? Não, são ineficientes. Quebram o elemento fundamental da instituição que é a sua credibilidade, a sua isenção. Se um delegado espetaculariza uma investigação, ele está praticamente sentenciando o investigado. O delegado vai ter autonomia quanto ao mérito, mas não quanto ao método. No mérito vai dizer se considera crime ou não, mas o procedimento tem que ser manualizado.

Terá autonomia quanto ao mérito ainda que os riscos para Lula, PT e vários aliados sejam os mesmos que os de anos atrás?

O presidente Lula tem em relação a esse tema a mesma visão que tinha 20 anos atrás. Jamais chegou para mim para dizer que isso vai ser de tal forma. A única questão que é pública e que não é, veja, quanto ao presidente Lula ou a esquerda, é quanto a política de um modo geral, é que, às vezes de modo acertado e às vezes de modo errado, a política registra o incômodo com investigações espetacularizadas. Então, esse é um tema que realmente não pode continuar a ser feito como antes, em que faziam uma operação e usavam um aparato desproporcional para poder gerar atratividade, antecipação de mérito. Há diferença entre função política e função técnica. Se você exerce uma função técnica com interesse político, está errado, como a gente viu.

O governo Lula foi responsável pela aprovação da lei de drogas que é, até hoje, muito criticada por setores da esquerda e movimentos sociais por levar ao encarceramento de jovens da periferia, sobretudo negros. Pretende rever essa lei junto ao Congresso e conduzir um projeto de reforma do sistema carcerário?

Em relação ao desencarceramento, à despenalização, no sentido da pena privativa de liberdade, sim. Nós vamos fazer uma alteração em que o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) vai virar a Secretaria Nacional Penitenciária e de Alternativas Penais para sublinhar que a execução penal não é igual a prender. A execução penal é muito maior que prender. A prisão na verdade é o último instrumento. Então, nós vamos colocar alternativas penais no mesmo patamar que a prisão, formalmente falando na estrutura do ministério. Isso é um problema secular, por várias razões. Ideológicas ou simbólicas. O sistema penitenciário se presta também a essa visão de perpetuação de privilégios, de discriminações. E isso fez com que houvesse uma ideia de que execução penal agora é igual a aprender. Não é. Então, essa é a grande mudança: alternativas penais do mesmo tamanho, e eu diria que até com primazia, sobre a pena de prisão.

Existe um pensamento médio que vê essa ideia de penas alternativas como forma de colocar bandidos na rua. Haverá desgaste?

Quando você coloca que alternativa penal é exclusivamente para crimes cometidos sem violência e sem grave ameaça à pessoa, fica mais claro o debate. Alternativas penais não é para quem cometeu homicídio, latrocínio, estupro. E complementamos dizendo que preso custa R$ 2.500 por mês. Uma pena alternativa, R$ 250. A sociedade entende que é um caminho melhor.

E quanto a eventuais mudanças na lei de drogas?

Eu não compartilho muito dessas visões de que a lei de drogas é a culpada. Ela cumpriu um papel muito importante. Praticamente você não tem pessoas presas por posse. Já foi um avanço. Mas qualquer novo avanço legislativo depende de uma decisão do Supremo que tem um julgamento iniciado sobre drogas. Em algum momento vai concluir, provavelmente no próximo ano. O mais correto é esperar o término desse julgamento que aí você faz uma normatização de acordo com que o Supremo venha a entender sobre o que é posse e o que é tráfico.

Além da secretaria de alternativas penais, que outras mudanças na estrutura ocorrerão? A Secretaria de Operações Integradas (Seopi), criada por Bolsonaro e questionada por polêmicas sobre espionagens contra opositores, será mantida?

Vamos estruturar uma Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) forte, com o comando único. Houve essas controvérsias no passado (de espionagem) e havia uma dualidade de comandos. Isso não funciona. Vamos incorporar tudo na Senasp. Vai ter uma divisão de operação integrada, sim, mas não com o mesmo status de secretário. O secretário da Senasp vai ser o comandante dessa cooperação federativa ativa do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), com um só comando. Na Senasp, cada polícia vai ter uma diretoria, a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Corpo de Bombeiros e a Guarda Municipal.

Haverá outras novas secretarias além da de Acesso à Justiça?

Ela é fruto de uma compreensão das grandes questões que há muitos séculos nos desafiam. Ela tem duas grandes ênfases: a justiça anti-racista e o combate à feminicídio. Também ter a retomada da secretaria de assuntos legislativos para que o Ministério da Justiça volte a ser protagonista da qualidade da ordem jurídica, com elaboração de leis. E vamos ter a secretaria especial de Direitos Digitais, comandada pela Estela Aranha, professora do IDP. Ela vai ter esse papel de fazer interface com a academia, com outras áreas de governo sobre esse tema que desafia a democracia do mundo. A Funai e o Arquivo Nacional saem da estrutura do Ministério da Justiça e vão para o novo ministério dos Povos Originários e para o Ministério do Planejamento. Me consultaram e eu disse ' olha, o que quiser colocar aqui eu tomo conta, mas o que quiserem levar eu não crio confusão’. Não tenho nem medo de trabalho nem fome de estrutura, até porque o antecessor meu cometeu esse erro e aí a gente deve se inspirar nos erros alheios para não cometer iguais.

O senhor diz que não tem fome de estrutura, mas por que é contra separar a pasta e ter um ministério da Segurança Pública?

Respeito muito o debate. Conheço pessoas seríssimas que defendem essa ideia do Ministério da Segurança e compreendo a nobreza do intuito que é conferir uma maior ênfase ao tema. O presidente Lula não fixou prazo para esse debate. Pelo modelo brasileiro, segurança pública só anda no diálogo com o Ministério Público e com o Poder Judiciário. A esfera de atuação discricionária da polícia é muito pequena. Minha tese é: para a segurança pública funcionar melhor é importante que tenha um único comando da parte da segurança dialogando ao mesmo tempo com o sistema de justiça.

O STF ganhou mais visibilidade para conter as ameaças antidemocráticas do governo Bolsonaro. Mas esse movimento do Judiciário não foi imune a críticas. Qual é a sua avaliação sobre esse protagonismo? Não teme que esse protagonismo se volte também contra o novo governo?

Esse é um debate internacional que já tem pelo menos 50 anos. A Segunda Grande Guerra foi o colapso da política. Qual foi a resposta institucional na Europa Ocidental? Fortalecimento dos tribunais constitucionais e das constituições como mecanismo de resposta ao fracasso da política. A função de controle de constitucionalidade das leis se alargou em razão disso. No Brasil é similar. O colapso da política levou a um agigantamento da função do Judiciário. O equilíbrio entre os Poderes é dinâmico, não é estático. A própria Constituição indica isso quando ela cunha dois valores com idêntica hierarquia normativa, mas que são aparentemente antitéticos. De um lado independência e do outro harmonia. Quando ela cunha essa aparente antinomia, o que ela tá dizendo? É um equilíbrio dinâmico, em que o hora o peso está mais na independência, hora está mais na harmonia. O que é chamado protagonismo e é o momento em que essa independência é maior porque a política está fraca.

Com o novo governo esse novo dinamismo muda, na sua concepção?

Quando você tem uma maior harmonia, maior equilíbrio, é quando a política recupera a funcionalidade e aí você tem mais convergência institucional. Eu acho que o momento que o Brasil viveu nos últimos anos, foi um momento de fracasso. Não pode ter sinal maior do que fracasso do que um desatinado na Presidência da República. E isso fez que nesse equilíbrio dinâmico, de freios e contrapesos, de harmonia e independência, a função do Judiciário se agigantasse. Em certo momento até a do Congresso. Na pandemia, foi o Congresso, o Judiciário e os governadores versus um bárbaro. Tenho impressão que agora nós vamos ter um reajuste nessa equação porque a política recupera uma parte da sua força colapsada pelo bolsonarismo e a gente volta a um quadro de normalidade institucional. E quero destacar: essa atitude do Judiciário de ter mais protagonismo, mais independência, foi o que salvou a democracia brasileira. Foi esse protagonismo do Judiciário que salvou a democracia brasileira e permitiu que a gente chegasse até aqui.

Qual o tamanho da preocupação do senhor com a politização das polícias estaduais e como controlá-la?

Entre o ministro da Justiça e as polícias tem o governador e o secretário de segurança. Jamais, no âmbito do SUSP vai ter ideia de subtrair a autoridade do governador ou de um secretário. Isso deu errado. Uma das razões das dificuldades de melhoria da segurança foi essa atitude de plantar motim em polícia como a gente viu no Ceará. Havia claramente uma sabotagem contra o governador. Como contornar isso? Prestigiando a autoridade dos governadores. Esse é o caminho. Não vai ter um diálogo nosso direto com as polícias estaduais porque não nos cabe.

O senhor pretende mudar critérios de rateio da verba do Fundo Nacional de Segurança Pública para os estados?

Vamos rever a portaria. Tem muitos critérios vagos. Vamos objetivar mais, com metas concretas e alinhadas com as prioridades. Vamos alinhar os critérios de acordo com as metas. Não posso interferir nas prioridades dos governadores, independência total. Agora, na partilha dos recursos do Fundo Nacional nós temos metas nacionais a cumprir com, por exemplo, combate ao armamentismo, apoio às vítimas de crimes violentos, combate a feminicídio, combate a crimes de ódio. Esses são pontos que passarão a ser valorados. Estados que implantam câmera ou não implantam câmera nos uniformes dos policiais a gente vai valorar. A gente acredita que é importante combater a violência policial. Ninguém é obrigado a fazer, mas quem fizer a gente vai valorar mais. Essa é a ideia geral.

O novo governo fará um “revogaço” de portarias e decretos referentes a flexibilização do acesso a armas. Mas milhares de armas entraram em circulação graças a esses dispositivos e continuam entrando até 31 de dezembro. O que fará para reduzir esse arsenal privado já constituído?

O que está decidido até o presente momento e que vai provavelmente constar no novo decreto é a ideia de encurtamento de registros. Hoje eles são de 3, 5 ou 10 anos. No caso de armas de uso restrito vamos trazer para um 1 ano. Se você não registra essa arma, ela passou a ser ilegal e você está cometendo crime. Outra ideia é a da recompra. Não será em janeiro porque nós não temos ainda a equação fiscal, não tem como montar um programa de recompra de armas de uso restrito ainda. E tem uma ideia que precisa de debate mais aprofundado que é a regulação dos clubes de tiro e dos CACs (colecionador, atirador esportivo e caçador). Não pode existir um colecionador sem coleção, não pode existir um atirador que não vai em clube de tiro e não pode existir um caçador que não tem licença de caça.

BRASÍLIA - O futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, afirmou que o novo governo vai mudar parâmetros de rateio do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para estados. Entre os novos critérios o futuro governo pretendem repassar mais recursos para estados que incentivem o desarmamento da população e utilizem câmeras nos uniformes dos policiais.

Em entrevista ao Estadão, o senador eleito pelo Maranhão disse esperar uma relação harmônica com o Poder Judiciário que, segundo ele, nos últimos, “salvou a democracia do Brasil”. Flávio Dino também detalhou a criação de uma estrutura dentro do ministério para trabalhar a troca de prisões por penas alternativas. Para o futuro chefe da pasta, o Estado erra e gasta mal ao resumir a execução penal a encarceramento.

O futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, promete estimular o desarmamento e repassar mais recursos para estados em que policiais usarem câmeras. Foto: Wilton Junior / Estadão

O senhor classifica o vandalismo em Brasília como atos de terrorismo e portanto passíveis de serem enquadrados dessa forma?

Creio que há sim essa possibilidade porque tivemos crimes com intuito político. Essa é a fronteira que demarca a fronteira de terrorismo e de crimes contra o estado democrático de direito. Na medida que ali havia sim intuito político evidente, é um enquadramento possível. Tanto na lei do terrorismo quanto no capítulo do Código Penal sobre crimes contra o estado democrático de direito. Eu não posso afirmar que será isso porque obviamente não é uma decisão que depende do ministro. Depende do delegado que vai conduzir os inquéritos e do Ministério Público.

Há segurança suficiente que possa garantir a normalidade da posse e também o desfile de Lula em carro aberto?

O planejamento vai todo nessa direção porque ele envolve a mobilização de um grande efetivo. Estou falando de milhares de policiais e de algum tipo de diálogo com GSI. Esse diálogo está em curso, não sou eu que conduzo, claro. Agora tem um ministro da Defesa, comandantes das forças. Então há uma tentativa de construção de um termo de entendimento, com a participação do próprio GSI. E nós teremos um fator determinante: nos atos de arruaça política e de terrorismo da segunda-feira, estamos falando de centenas de pessoas. Na posse teremos dezenas de milhares. O dia 1º de janeiro não é um dia muito suscetível a mobilização, a não ser de quem está motivado a participar. Essa assimetria entre eventuais inconformados e aqueles que estarão festejando também é uma proteção. E a decisão do presidente Lula é essa. Ele quer fazer o desfile, quer fazer o festival cultural.

O monitoramento indica possibilidade de bloqueio de estradas para impedir que caravanas que vêm de todo o Brasil cheguem a Brasília?

Se eu disser em termos absolutos que isso não vai ocorrer de forma alguma, é uma declaração que se choca contra dimensão continental do Brasil. De modo generalizado não vai acontecer. A PRF estará, na prática, sob nosso comando. Pode ter um ponto ou outro, mas sinceramente não acredito. Se houver seria uma coisa muito pequena muito isolada muito irrelevante. Acho realmente que o pior passou.

A PRF se tornou uma das instituições mais impactadas pelo bolsonarismo. Qual o plano para restabelecer a autonomia da corporação e adotar protocolos mais ‘democráticos’ na PRF?

Houve indiscutivelmente politização, ideologização, aparelhamento, partidarização indevida de uma força policial. Houve muitos sintomas disso como esses que você exemplifica, mas isso é algo declinante. Progressivamente, há uma acomodação. A pessoa teve a sua opção eleitoral, legítima, mas não está mais de modo expressivo militando, brigando por essa opção. Temos fatores objetivos. Lula foi diplomado, não houve grandes atos de massa, o Bolsonaro sem capacidade de reação, as badernas e arruaças acabaram afastando pessoas.

Mas como superar a politização?

Em movimentos. Não se supera com um momento mágico de repactuação porque esse momento mágico não existe. Você supera com uma agenda de trabalho. ‘Olha, a agenda é essa aqui e nós vamos caminhar por aqui’. Quem quiser vir, ótimo, é seu dever. E quem não quiser cumprir seu dever? Seguiremos o que a lei manda. Um servidor público não pode escolher a qual governo ele serve. Não tenho ainda o diretor-geral da PRF exatamente porque está sendo escolhido com muito cuidado. Vai ser apresentado ao presidente Lula no sentido de ser uma pessoa que tem essa capacidade de liderar a instituição para o novo momento, com uma agenda de trabalho. Mas o novo momento vai afastar as opções bolsonaristas? Não, e nós não estamos preocupados com isso. O pessoal pode ter votado no Bolsonaro, pode votar de novo. Tem gosto exótico para tudo. O que nós estamos preocupados: esse cidadão que é policial rodoviário federal votou no Bolsonaro e quer votar de novo não pode deixar de trabalhar, de cumprir os seus deveres funcionais.

O que seria essa agenda de trabalho?

Estamos trabalhando nela. A PRF vai ser chamada a participar, atuar na Amazônia muito fortemente. Nós temos muitas BR na Amazônia. A PRF deve retomar o seu protagonismo no patrulhamento ostensivo das rodovias federais que foi uma área praticamente abandonada. Todos os temas relativos a crimes que transitem pelas estradas federais, como tráficos de modo geral, exploração sexual de crianças e adolescentes, de madeira. É uma agenda de trabalho. Uma corporação armada precisa ter coesão porque senão ela degenera. E não teria policiais, mas mini ditadores, o que seria muito perigoso.

No atual governo, a PF perdeu autonomia. O novo governo pretende resgatar a autonomia ou o chefe da PF deverá atender diretamente o senhor e o Lula?

Claro que ele vai ter que atender na matéria administrativa. Há um comando administrativo que foi eleito pelo voto popular, mas esse comando administrativo não se refere ao mérito das investigações. No inquérito, o delegado tem autonomia técnica. Ele se reporta ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Interferência em investigação jamais, nem para um lado nem para o outro. A única modulação que nós faremos é de conduta ética. Por exemplo: investigações espetacularizadas são eficientes? Não, são ineficientes. Quebram o elemento fundamental da instituição que é a sua credibilidade, a sua isenção. Se um delegado espetaculariza uma investigação, ele está praticamente sentenciando o investigado. O delegado vai ter autonomia quanto ao mérito, mas não quanto ao método. No mérito vai dizer se considera crime ou não, mas o procedimento tem que ser manualizado.

Terá autonomia quanto ao mérito ainda que os riscos para Lula, PT e vários aliados sejam os mesmos que os de anos atrás?

O presidente Lula tem em relação a esse tema a mesma visão que tinha 20 anos atrás. Jamais chegou para mim para dizer que isso vai ser de tal forma. A única questão que é pública e que não é, veja, quanto ao presidente Lula ou a esquerda, é quanto a política de um modo geral, é que, às vezes de modo acertado e às vezes de modo errado, a política registra o incômodo com investigações espetacularizadas. Então, esse é um tema que realmente não pode continuar a ser feito como antes, em que faziam uma operação e usavam um aparato desproporcional para poder gerar atratividade, antecipação de mérito. Há diferença entre função política e função técnica. Se você exerce uma função técnica com interesse político, está errado, como a gente viu.

O governo Lula foi responsável pela aprovação da lei de drogas que é, até hoje, muito criticada por setores da esquerda e movimentos sociais por levar ao encarceramento de jovens da periferia, sobretudo negros. Pretende rever essa lei junto ao Congresso e conduzir um projeto de reforma do sistema carcerário?

Em relação ao desencarceramento, à despenalização, no sentido da pena privativa de liberdade, sim. Nós vamos fazer uma alteração em que o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) vai virar a Secretaria Nacional Penitenciária e de Alternativas Penais para sublinhar que a execução penal não é igual a prender. A execução penal é muito maior que prender. A prisão na verdade é o último instrumento. Então, nós vamos colocar alternativas penais no mesmo patamar que a prisão, formalmente falando na estrutura do ministério. Isso é um problema secular, por várias razões. Ideológicas ou simbólicas. O sistema penitenciário se presta também a essa visão de perpetuação de privilégios, de discriminações. E isso fez com que houvesse uma ideia de que execução penal agora é igual a aprender. Não é. Então, essa é a grande mudança: alternativas penais do mesmo tamanho, e eu diria que até com primazia, sobre a pena de prisão.

Existe um pensamento médio que vê essa ideia de penas alternativas como forma de colocar bandidos na rua. Haverá desgaste?

Quando você coloca que alternativa penal é exclusivamente para crimes cometidos sem violência e sem grave ameaça à pessoa, fica mais claro o debate. Alternativas penais não é para quem cometeu homicídio, latrocínio, estupro. E complementamos dizendo que preso custa R$ 2.500 por mês. Uma pena alternativa, R$ 250. A sociedade entende que é um caminho melhor.

E quanto a eventuais mudanças na lei de drogas?

Eu não compartilho muito dessas visões de que a lei de drogas é a culpada. Ela cumpriu um papel muito importante. Praticamente você não tem pessoas presas por posse. Já foi um avanço. Mas qualquer novo avanço legislativo depende de uma decisão do Supremo que tem um julgamento iniciado sobre drogas. Em algum momento vai concluir, provavelmente no próximo ano. O mais correto é esperar o término desse julgamento que aí você faz uma normatização de acordo com que o Supremo venha a entender sobre o que é posse e o que é tráfico.

Além da secretaria de alternativas penais, que outras mudanças na estrutura ocorrerão? A Secretaria de Operações Integradas (Seopi), criada por Bolsonaro e questionada por polêmicas sobre espionagens contra opositores, será mantida?

Vamos estruturar uma Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) forte, com o comando único. Houve essas controvérsias no passado (de espionagem) e havia uma dualidade de comandos. Isso não funciona. Vamos incorporar tudo na Senasp. Vai ter uma divisão de operação integrada, sim, mas não com o mesmo status de secretário. O secretário da Senasp vai ser o comandante dessa cooperação federativa ativa do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), com um só comando. Na Senasp, cada polícia vai ter uma diretoria, a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Corpo de Bombeiros e a Guarda Municipal.

Haverá outras novas secretarias além da de Acesso à Justiça?

Ela é fruto de uma compreensão das grandes questões que há muitos séculos nos desafiam. Ela tem duas grandes ênfases: a justiça anti-racista e o combate à feminicídio. Também ter a retomada da secretaria de assuntos legislativos para que o Ministério da Justiça volte a ser protagonista da qualidade da ordem jurídica, com elaboração de leis. E vamos ter a secretaria especial de Direitos Digitais, comandada pela Estela Aranha, professora do IDP. Ela vai ter esse papel de fazer interface com a academia, com outras áreas de governo sobre esse tema que desafia a democracia do mundo. A Funai e o Arquivo Nacional saem da estrutura do Ministério da Justiça e vão para o novo ministério dos Povos Originários e para o Ministério do Planejamento. Me consultaram e eu disse ' olha, o que quiser colocar aqui eu tomo conta, mas o que quiserem levar eu não crio confusão’. Não tenho nem medo de trabalho nem fome de estrutura, até porque o antecessor meu cometeu esse erro e aí a gente deve se inspirar nos erros alheios para não cometer iguais.

O senhor diz que não tem fome de estrutura, mas por que é contra separar a pasta e ter um ministério da Segurança Pública?

Respeito muito o debate. Conheço pessoas seríssimas que defendem essa ideia do Ministério da Segurança e compreendo a nobreza do intuito que é conferir uma maior ênfase ao tema. O presidente Lula não fixou prazo para esse debate. Pelo modelo brasileiro, segurança pública só anda no diálogo com o Ministério Público e com o Poder Judiciário. A esfera de atuação discricionária da polícia é muito pequena. Minha tese é: para a segurança pública funcionar melhor é importante que tenha um único comando da parte da segurança dialogando ao mesmo tempo com o sistema de justiça.

O STF ganhou mais visibilidade para conter as ameaças antidemocráticas do governo Bolsonaro. Mas esse movimento do Judiciário não foi imune a críticas. Qual é a sua avaliação sobre esse protagonismo? Não teme que esse protagonismo se volte também contra o novo governo?

Esse é um debate internacional que já tem pelo menos 50 anos. A Segunda Grande Guerra foi o colapso da política. Qual foi a resposta institucional na Europa Ocidental? Fortalecimento dos tribunais constitucionais e das constituições como mecanismo de resposta ao fracasso da política. A função de controle de constitucionalidade das leis se alargou em razão disso. No Brasil é similar. O colapso da política levou a um agigantamento da função do Judiciário. O equilíbrio entre os Poderes é dinâmico, não é estático. A própria Constituição indica isso quando ela cunha dois valores com idêntica hierarquia normativa, mas que são aparentemente antitéticos. De um lado independência e do outro harmonia. Quando ela cunha essa aparente antinomia, o que ela tá dizendo? É um equilíbrio dinâmico, em que o hora o peso está mais na independência, hora está mais na harmonia. O que é chamado protagonismo e é o momento em que essa independência é maior porque a política está fraca.

Com o novo governo esse novo dinamismo muda, na sua concepção?

Quando você tem uma maior harmonia, maior equilíbrio, é quando a política recupera a funcionalidade e aí você tem mais convergência institucional. Eu acho que o momento que o Brasil viveu nos últimos anos, foi um momento de fracasso. Não pode ter sinal maior do que fracasso do que um desatinado na Presidência da República. E isso fez que nesse equilíbrio dinâmico, de freios e contrapesos, de harmonia e independência, a função do Judiciário se agigantasse. Em certo momento até a do Congresso. Na pandemia, foi o Congresso, o Judiciário e os governadores versus um bárbaro. Tenho impressão que agora nós vamos ter um reajuste nessa equação porque a política recupera uma parte da sua força colapsada pelo bolsonarismo e a gente volta a um quadro de normalidade institucional. E quero destacar: essa atitude do Judiciário de ter mais protagonismo, mais independência, foi o que salvou a democracia brasileira. Foi esse protagonismo do Judiciário que salvou a democracia brasileira e permitiu que a gente chegasse até aqui.

Qual o tamanho da preocupação do senhor com a politização das polícias estaduais e como controlá-la?

Entre o ministro da Justiça e as polícias tem o governador e o secretário de segurança. Jamais, no âmbito do SUSP vai ter ideia de subtrair a autoridade do governador ou de um secretário. Isso deu errado. Uma das razões das dificuldades de melhoria da segurança foi essa atitude de plantar motim em polícia como a gente viu no Ceará. Havia claramente uma sabotagem contra o governador. Como contornar isso? Prestigiando a autoridade dos governadores. Esse é o caminho. Não vai ter um diálogo nosso direto com as polícias estaduais porque não nos cabe.

O senhor pretende mudar critérios de rateio da verba do Fundo Nacional de Segurança Pública para os estados?

Vamos rever a portaria. Tem muitos critérios vagos. Vamos objetivar mais, com metas concretas e alinhadas com as prioridades. Vamos alinhar os critérios de acordo com as metas. Não posso interferir nas prioridades dos governadores, independência total. Agora, na partilha dos recursos do Fundo Nacional nós temos metas nacionais a cumprir com, por exemplo, combate ao armamentismo, apoio às vítimas de crimes violentos, combate a feminicídio, combate a crimes de ódio. Esses são pontos que passarão a ser valorados. Estados que implantam câmera ou não implantam câmera nos uniformes dos policiais a gente vai valorar. A gente acredita que é importante combater a violência policial. Ninguém é obrigado a fazer, mas quem fizer a gente vai valorar mais. Essa é a ideia geral.

O novo governo fará um “revogaço” de portarias e decretos referentes a flexibilização do acesso a armas. Mas milhares de armas entraram em circulação graças a esses dispositivos e continuam entrando até 31 de dezembro. O que fará para reduzir esse arsenal privado já constituído?

O que está decidido até o presente momento e que vai provavelmente constar no novo decreto é a ideia de encurtamento de registros. Hoje eles são de 3, 5 ou 10 anos. No caso de armas de uso restrito vamos trazer para um 1 ano. Se você não registra essa arma, ela passou a ser ilegal e você está cometendo crime. Outra ideia é a da recompra. Não será em janeiro porque nós não temos ainda a equação fiscal, não tem como montar um programa de recompra de armas de uso restrito ainda. E tem uma ideia que precisa de debate mais aprofundado que é a regulação dos clubes de tiro e dos CACs (colecionador, atirador esportivo e caçador). Não pode existir um colecionador sem coleção, não pode existir um atirador que não vai em clube de tiro e não pode existir um caçador que não tem licença de caça.

BRASÍLIA - O futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, afirmou que o novo governo vai mudar parâmetros de rateio do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para estados. Entre os novos critérios o futuro governo pretendem repassar mais recursos para estados que incentivem o desarmamento da população e utilizem câmeras nos uniformes dos policiais.

Em entrevista ao Estadão, o senador eleito pelo Maranhão disse esperar uma relação harmônica com o Poder Judiciário que, segundo ele, nos últimos, “salvou a democracia do Brasil”. Flávio Dino também detalhou a criação de uma estrutura dentro do ministério para trabalhar a troca de prisões por penas alternativas. Para o futuro chefe da pasta, o Estado erra e gasta mal ao resumir a execução penal a encarceramento.

O futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, promete estimular o desarmamento e repassar mais recursos para estados em que policiais usarem câmeras. Foto: Wilton Junior / Estadão

O senhor classifica o vandalismo em Brasília como atos de terrorismo e portanto passíveis de serem enquadrados dessa forma?

Creio que há sim essa possibilidade porque tivemos crimes com intuito político. Essa é a fronteira que demarca a fronteira de terrorismo e de crimes contra o estado democrático de direito. Na medida que ali havia sim intuito político evidente, é um enquadramento possível. Tanto na lei do terrorismo quanto no capítulo do Código Penal sobre crimes contra o estado democrático de direito. Eu não posso afirmar que será isso porque obviamente não é uma decisão que depende do ministro. Depende do delegado que vai conduzir os inquéritos e do Ministério Público.

Há segurança suficiente que possa garantir a normalidade da posse e também o desfile de Lula em carro aberto?

O planejamento vai todo nessa direção porque ele envolve a mobilização de um grande efetivo. Estou falando de milhares de policiais e de algum tipo de diálogo com GSI. Esse diálogo está em curso, não sou eu que conduzo, claro. Agora tem um ministro da Defesa, comandantes das forças. Então há uma tentativa de construção de um termo de entendimento, com a participação do próprio GSI. E nós teremos um fator determinante: nos atos de arruaça política e de terrorismo da segunda-feira, estamos falando de centenas de pessoas. Na posse teremos dezenas de milhares. O dia 1º de janeiro não é um dia muito suscetível a mobilização, a não ser de quem está motivado a participar. Essa assimetria entre eventuais inconformados e aqueles que estarão festejando também é uma proteção. E a decisão do presidente Lula é essa. Ele quer fazer o desfile, quer fazer o festival cultural.

O monitoramento indica possibilidade de bloqueio de estradas para impedir que caravanas que vêm de todo o Brasil cheguem a Brasília?

Se eu disser em termos absolutos que isso não vai ocorrer de forma alguma, é uma declaração que se choca contra dimensão continental do Brasil. De modo generalizado não vai acontecer. A PRF estará, na prática, sob nosso comando. Pode ter um ponto ou outro, mas sinceramente não acredito. Se houver seria uma coisa muito pequena muito isolada muito irrelevante. Acho realmente que o pior passou.

A PRF se tornou uma das instituições mais impactadas pelo bolsonarismo. Qual o plano para restabelecer a autonomia da corporação e adotar protocolos mais ‘democráticos’ na PRF?

Houve indiscutivelmente politização, ideologização, aparelhamento, partidarização indevida de uma força policial. Houve muitos sintomas disso como esses que você exemplifica, mas isso é algo declinante. Progressivamente, há uma acomodação. A pessoa teve a sua opção eleitoral, legítima, mas não está mais de modo expressivo militando, brigando por essa opção. Temos fatores objetivos. Lula foi diplomado, não houve grandes atos de massa, o Bolsonaro sem capacidade de reação, as badernas e arruaças acabaram afastando pessoas.

Mas como superar a politização?

Em movimentos. Não se supera com um momento mágico de repactuação porque esse momento mágico não existe. Você supera com uma agenda de trabalho. ‘Olha, a agenda é essa aqui e nós vamos caminhar por aqui’. Quem quiser vir, ótimo, é seu dever. E quem não quiser cumprir seu dever? Seguiremos o que a lei manda. Um servidor público não pode escolher a qual governo ele serve. Não tenho ainda o diretor-geral da PRF exatamente porque está sendo escolhido com muito cuidado. Vai ser apresentado ao presidente Lula no sentido de ser uma pessoa que tem essa capacidade de liderar a instituição para o novo momento, com uma agenda de trabalho. Mas o novo momento vai afastar as opções bolsonaristas? Não, e nós não estamos preocupados com isso. O pessoal pode ter votado no Bolsonaro, pode votar de novo. Tem gosto exótico para tudo. O que nós estamos preocupados: esse cidadão que é policial rodoviário federal votou no Bolsonaro e quer votar de novo não pode deixar de trabalhar, de cumprir os seus deveres funcionais.

O que seria essa agenda de trabalho?

Estamos trabalhando nela. A PRF vai ser chamada a participar, atuar na Amazônia muito fortemente. Nós temos muitas BR na Amazônia. A PRF deve retomar o seu protagonismo no patrulhamento ostensivo das rodovias federais que foi uma área praticamente abandonada. Todos os temas relativos a crimes que transitem pelas estradas federais, como tráficos de modo geral, exploração sexual de crianças e adolescentes, de madeira. É uma agenda de trabalho. Uma corporação armada precisa ter coesão porque senão ela degenera. E não teria policiais, mas mini ditadores, o que seria muito perigoso.

No atual governo, a PF perdeu autonomia. O novo governo pretende resgatar a autonomia ou o chefe da PF deverá atender diretamente o senhor e o Lula?

Claro que ele vai ter que atender na matéria administrativa. Há um comando administrativo que foi eleito pelo voto popular, mas esse comando administrativo não se refere ao mérito das investigações. No inquérito, o delegado tem autonomia técnica. Ele se reporta ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Interferência em investigação jamais, nem para um lado nem para o outro. A única modulação que nós faremos é de conduta ética. Por exemplo: investigações espetacularizadas são eficientes? Não, são ineficientes. Quebram o elemento fundamental da instituição que é a sua credibilidade, a sua isenção. Se um delegado espetaculariza uma investigação, ele está praticamente sentenciando o investigado. O delegado vai ter autonomia quanto ao mérito, mas não quanto ao método. No mérito vai dizer se considera crime ou não, mas o procedimento tem que ser manualizado.

Terá autonomia quanto ao mérito ainda que os riscos para Lula, PT e vários aliados sejam os mesmos que os de anos atrás?

O presidente Lula tem em relação a esse tema a mesma visão que tinha 20 anos atrás. Jamais chegou para mim para dizer que isso vai ser de tal forma. A única questão que é pública e que não é, veja, quanto ao presidente Lula ou a esquerda, é quanto a política de um modo geral, é que, às vezes de modo acertado e às vezes de modo errado, a política registra o incômodo com investigações espetacularizadas. Então, esse é um tema que realmente não pode continuar a ser feito como antes, em que faziam uma operação e usavam um aparato desproporcional para poder gerar atratividade, antecipação de mérito. Há diferença entre função política e função técnica. Se você exerce uma função técnica com interesse político, está errado, como a gente viu.

O governo Lula foi responsável pela aprovação da lei de drogas que é, até hoje, muito criticada por setores da esquerda e movimentos sociais por levar ao encarceramento de jovens da periferia, sobretudo negros. Pretende rever essa lei junto ao Congresso e conduzir um projeto de reforma do sistema carcerário?

Em relação ao desencarceramento, à despenalização, no sentido da pena privativa de liberdade, sim. Nós vamos fazer uma alteração em que o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) vai virar a Secretaria Nacional Penitenciária e de Alternativas Penais para sublinhar que a execução penal não é igual a prender. A execução penal é muito maior que prender. A prisão na verdade é o último instrumento. Então, nós vamos colocar alternativas penais no mesmo patamar que a prisão, formalmente falando na estrutura do ministério. Isso é um problema secular, por várias razões. Ideológicas ou simbólicas. O sistema penitenciário se presta também a essa visão de perpetuação de privilégios, de discriminações. E isso fez com que houvesse uma ideia de que execução penal agora é igual a aprender. Não é. Então, essa é a grande mudança: alternativas penais do mesmo tamanho, e eu diria que até com primazia, sobre a pena de prisão.

Existe um pensamento médio que vê essa ideia de penas alternativas como forma de colocar bandidos na rua. Haverá desgaste?

Quando você coloca que alternativa penal é exclusivamente para crimes cometidos sem violência e sem grave ameaça à pessoa, fica mais claro o debate. Alternativas penais não é para quem cometeu homicídio, latrocínio, estupro. E complementamos dizendo que preso custa R$ 2.500 por mês. Uma pena alternativa, R$ 250. A sociedade entende que é um caminho melhor.

E quanto a eventuais mudanças na lei de drogas?

Eu não compartilho muito dessas visões de que a lei de drogas é a culpada. Ela cumpriu um papel muito importante. Praticamente você não tem pessoas presas por posse. Já foi um avanço. Mas qualquer novo avanço legislativo depende de uma decisão do Supremo que tem um julgamento iniciado sobre drogas. Em algum momento vai concluir, provavelmente no próximo ano. O mais correto é esperar o término desse julgamento que aí você faz uma normatização de acordo com que o Supremo venha a entender sobre o que é posse e o que é tráfico.

Além da secretaria de alternativas penais, que outras mudanças na estrutura ocorrerão? A Secretaria de Operações Integradas (Seopi), criada por Bolsonaro e questionada por polêmicas sobre espionagens contra opositores, será mantida?

Vamos estruturar uma Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) forte, com o comando único. Houve essas controvérsias no passado (de espionagem) e havia uma dualidade de comandos. Isso não funciona. Vamos incorporar tudo na Senasp. Vai ter uma divisão de operação integrada, sim, mas não com o mesmo status de secretário. O secretário da Senasp vai ser o comandante dessa cooperação federativa ativa do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), com um só comando. Na Senasp, cada polícia vai ter uma diretoria, a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Corpo de Bombeiros e a Guarda Municipal.

Haverá outras novas secretarias além da de Acesso à Justiça?

Ela é fruto de uma compreensão das grandes questões que há muitos séculos nos desafiam. Ela tem duas grandes ênfases: a justiça anti-racista e o combate à feminicídio. Também ter a retomada da secretaria de assuntos legislativos para que o Ministério da Justiça volte a ser protagonista da qualidade da ordem jurídica, com elaboração de leis. E vamos ter a secretaria especial de Direitos Digitais, comandada pela Estela Aranha, professora do IDP. Ela vai ter esse papel de fazer interface com a academia, com outras áreas de governo sobre esse tema que desafia a democracia do mundo. A Funai e o Arquivo Nacional saem da estrutura do Ministério da Justiça e vão para o novo ministério dos Povos Originários e para o Ministério do Planejamento. Me consultaram e eu disse ' olha, o que quiser colocar aqui eu tomo conta, mas o que quiserem levar eu não crio confusão’. Não tenho nem medo de trabalho nem fome de estrutura, até porque o antecessor meu cometeu esse erro e aí a gente deve se inspirar nos erros alheios para não cometer iguais.

O senhor diz que não tem fome de estrutura, mas por que é contra separar a pasta e ter um ministério da Segurança Pública?

Respeito muito o debate. Conheço pessoas seríssimas que defendem essa ideia do Ministério da Segurança e compreendo a nobreza do intuito que é conferir uma maior ênfase ao tema. O presidente Lula não fixou prazo para esse debate. Pelo modelo brasileiro, segurança pública só anda no diálogo com o Ministério Público e com o Poder Judiciário. A esfera de atuação discricionária da polícia é muito pequena. Minha tese é: para a segurança pública funcionar melhor é importante que tenha um único comando da parte da segurança dialogando ao mesmo tempo com o sistema de justiça.

O STF ganhou mais visibilidade para conter as ameaças antidemocráticas do governo Bolsonaro. Mas esse movimento do Judiciário não foi imune a críticas. Qual é a sua avaliação sobre esse protagonismo? Não teme que esse protagonismo se volte também contra o novo governo?

Esse é um debate internacional que já tem pelo menos 50 anos. A Segunda Grande Guerra foi o colapso da política. Qual foi a resposta institucional na Europa Ocidental? Fortalecimento dos tribunais constitucionais e das constituições como mecanismo de resposta ao fracasso da política. A função de controle de constitucionalidade das leis se alargou em razão disso. No Brasil é similar. O colapso da política levou a um agigantamento da função do Judiciário. O equilíbrio entre os Poderes é dinâmico, não é estático. A própria Constituição indica isso quando ela cunha dois valores com idêntica hierarquia normativa, mas que são aparentemente antitéticos. De um lado independência e do outro harmonia. Quando ela cunha essa aparente antinomia, o que ela tá dizendo? É um equilíbrio dinâmico, em que o hora o peso está mais na independência, hora está mais na harmonia. O que é chamado protagonismo e é o momento em que essa independência é maior porque a política está fraca.

Com o novo governo esse novo dinamismo muda, na sua concepção?

Quando você tem uma maior harmonia, maior equilíbrio, é quando a política recupera a funcionalidade e aí você tem mais convergência institucional. Eu acho que o momento que o Brasil viveu nos últimos anos, foi um momento de fracasso. Não pode ter sinal maior do que fracasso do que um desatinado na Presidência da República. E isso fez que nesse equilíbrio dinâmico, de freios e contrapesos, de harmonia e independência, a função do Judiciário se agigantasse. Em certo momento até a do Congresso. Na pandemia, foi o Congresso, o Judiciário e os governadores versus um bárbaro. Tenho impressão que agora nós vamos ter um reajuste nessa equação porque a política recupera uma parte da sua força colapsada pelo bolsonarismo e a gente volta a um quadro de normalidade institucional. E quero destacar: essa atitude do Judiciário de ter mais protagonismo, mais independência, foi o que salvou a democracia brasileira. Foi esse protagonismo do Judiciário que salvou a democracia brasileira e permitiu que a gente chegasse até aqui.

Qual o tamanho da preocupação do senhor com a politização das polícias estaduais e como controlá-la?

Entre o ministro da Justiça e as polícias tem o governador e o secretário de segurança. Jamais, no âmbito do SUSP vai ter ideia de subtrair a autoridade do governador ou de um secretário. Isso deu errado. Uma das razões das dificuldades de melhoria da segurança foi essa atitude de plantar motim em polícia como a gente viu no Ceará. Havia claramente uma sabotagem contra o governador. Como contornar isso? Prestigiando a autoridade dos governadores. Esse é o caminho. Não vai ter um diálogo nosso direto com as polícias estaduais porque não nos cabe.

O senhor pretende mudar critérios de rateio da verba do Fundo Nacional de Segurança Pública para os estados?

Vamos rever a portaria. Tem muitos critérios vagos. Vamos objetivar mais, com metas concretas e alinhadas com as prioridades. Vamos alinhar os critérios de acordo com as metas. Não posso interferir nas prioridades dos governadores, independência total. Agora, na partilha dos recursos do Fundo Nacional nós temos metas nacionais a cumprir com, por exemplo, combate ao armamentismo, apoio às vítimas de crimes violentos, combate a feminicídio, combate a crimes de ódio. Esses são pontos que passarão a ser valorados. Estados que implantam câmera ou não implantam câmera nos uniformes dos policiais a gente vai valorar. A gente acredita que é importante combater a violência policial. Ninguém é obrigado a fazer, mas quem fizer a gente vai valorar mais. Essa é a ideia geral.

O novo governo fará um “revogaço” de portarias e decretos referentes a flexibilização do acesso a armas. Mas milhares de armas entraram em circulação graças a esses dispositivos e continuam entrando até 31 de dezembro. O que fará para reduzir esse arsenal privado já constituído?

O que está decidido até o presente momento e que vai provavelmente constar no novo decreto é a ideia de encurtamento de registros. Hoje eles são de 3, 5 ou 10 anos. No caso de armas de uso restrito vamos trazer para um 1 ano. Se você não registra essa arma, ela passou a ser ilegal e você está cometendo crime. Outra ideia é a da recompra. Não será em janeiro porque nós não temos ainda a equação fiscal, não tem como montar um programa de recompra de armas de uso restrito ainda. E tem uma ideia que precisa de debate mais aprofundado que é a regulação dos clubes de tiro e dos CACs (colecionador, atirador esportivo e caçador). Não pode existir um colecionador sem coleção, não pode existir um atirador que não vai em clube de tiro e não pode existir um caçador que não tem licença de caça.

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