BRASÍLIA – O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 revelou que o estelionato é uma das maiores tendências entre os criminosos no País. Nos últimos cinco anos, o número de registros deste tipo de crime quadruplicou. Esse fenômeno que tendencialmente deságua nos tribunais também passou a atingir as fileiras militares. Pelo segundo ano consecutivo, o crime de estelionato foi o principal tema dos processos distribuídos ao Superior Tribunal Militar (STM), a instância máxima da Justiça Militar da União (JMU). Procurado, o tribunal não se manifestou.
O crime de estelionato possui a mesma definição no Código Penal Militar e no Código de Processo Penal, que é utilizado no julgamento de civis. Ambos descrevem essa prática criminosa como o ato de “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”.
Apesar de o crime de estelionato ter crescido tanto no meio civil como militar, há diferenças na maneira como os golpes são aplicados em cada esfera. O Estadão analisou os processos de estelionato que foram finalizados pelo STM no ano passado e identificou que parte deles contou com o envolvimento de civis.
A maioria dos casos está relacionada a tentativas de fraudar procedimentos para desviar, ou manter, pensões de militares mortos. Já o estelionato processado pela Justiça comum envolve, na maioria dos casos, golpes pela internet.
A Justiça Militar tem competência para julgar civis por crimes militares, como, por exemplo, os cometidos contra o patrimônio das Forças Armadas.
Entre janeiro e novembro de 2023, o STM recebeu 36 processos de estelionato, 12 a mais do que o número de casos de deserção — um tipo de crime específico das carreiras militares e cuja incidência foi a segunda maior neste ano na Corte. Dentre os casos de estelionato que chegaram ao STM, 19 são recursos vindos de outros tribunais e outros 17 são casos originários, ou seja, que tiveram início na própria Corte.
Os números obtidos pelo Estadão foram extraídos do Boletim Estatístico da JMU, que reúne informações sobre a quantidade de ações em curso e julgadas pelas cortes militares. Os dados mostram que o STM finalizou o julgamento de 18 processos de estelionato no ano passado. Esses números envolvem tanto os 36 novos casos registrados no ano quanto os processos de anos anteriores que ainda não tinham sido concluídos.
Em 2022, o STM recebeu 33 processos relacionados a estelionato, sendo 19 casos originários e 14 recursos à instância superior. Naquele mesmo ano, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública identificou mais de 1,8 milhão de registros deste tipo de crime em todo o País. Já em 2018, tinham sido identificadas 436 mil ocorrências, uma taxa 326% menor quando comparada à taxa do período de cinco anos. Também em 2018, o STM registrou 24 processos relacionados a estelionato. Na ocasião esse tipo de crime ocupava o terceiro lugar no ranking dos principais assuntos julgados pela Corte, ficando atrás de temas como tráfico de drogas e deserção.
Maioria dos crimes envolve tentativas de obter pagamentos de pensões e golpes financeiros entre militares
Um dos processos analisados pela reportagem que ilustra esse cenário de aumento dos crimes de estelionato no STM contou com o envolvimento de dois civis e três ex-militares, sendo um sargento, um major e um terceiro-sargento que fraudavam provas de vida de beneficiárias de pensão militar já falecidas.
O grupo trabalhava na Seção de Inativos e Pensionistas da 1ª Região Militar e tinha “à sua disposição formulários para requerimento de alteração de endereço e de conta bancária”, conforme constatou a investigação do Ministério Público Militar. Os cinco homens fraudavam as assinaturas das mulheres mortas para transferir o benefício, que deveria ser extinto, à conta bancária destinada ao golpe. O esquema operou entre 2005 e 2009, mas a denúncia só foi apresentada em 2018. O STM manteve a sentença proferida pela primeira instância, que condenou três dos homens a penas de 2 a 4 anos de prisão. O major e o terceiro-sargento foram absolvidos.
O advogado Dirceu do Valle, que atua na área militar, atesta que “a esmagadora maioria dos casos (julgados como estelionato) é de civis que seguiram recebendo benefícios previdenciários”. “Por isso que há tantos processos de estelionato na Justiça Militar da União. São civis que são julgados”, afirmou.
Do Valle, que também é doutor em processo penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ainda atribui a tendência de alta deste tipo de crime à falha de comunicação entre os cartórios de registro civil e o Ministério da Defesa.
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A previdência dos militares, diferentemente da dos civis, é gerida pela pasta da Defesa em vez do Ministério da Previdência Social. Por este motivo, explica Dirceu do Valle, não se aplica aos militares a regra que obriga os cartórios a informar a cada 24 horas a lista de óbitos da região ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Segundo ele, a falha de comunicação abre margens para que pessoas tentem fraudar o recebimento de pensões e outros benefícios pagos a familiares de militares mortos. A reportagem procurou o Ministério da Defesa para comentar sobre a questão previdenciária, mas não obteve retorno.
O defensor público Afonso Carlos afirmou que os casos envolvendo pensões militares também são a maioria dos processos sob responsabilidade da Defensoria Pública da União (DPU) no STM. “No nosso caso (DPU), a maior parte (dos processos) é de pessoas responsáveis por pensionistas da área militar, que acabam após a morte não comunicando a administração militar - seja deliberadamente ou por falha da administração. A comunicação deveria ser automática. Mas, ao invés de a administração cobrar civilmente, ela resolve cobrar via processo penal”, explicou.
No rol de crimes de estelionato julgados pelo STM também há casos “convencionais”, a exemplo de tentativas de golpes financeiros. A alta corte militar julgou no ano passado o caso de um soldado que roubou o cartão de crédito de um colega de alojamento, cadastrou o documento em aplicativos de transporte e realizou diversos gastos com viagens. A vítima teve prejuízos de R$ 1,3 mil, que renderam ao autor do crime a expulsão da corporação e a condenação a dois anos de prisão em regime aberto.
A reportagem procurou o Ministério Público Militar e o STM para comentar o crescimento dos julgamentos de estelionato, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.