Ex-ministros e dirigentes do governo de Jair Bolsonaro (PL) alegaram interesse em ir trabalhar na iniciativa privada e ganharam direito de receber salários extras por seis meses. Os pedidos foram submetidos à Comissão de Ética Pública (CEP) da Presidência ao final do governo Bolsonaro. Quando terminou o período de afastamento das funções públicas recebendo salário sem trabalhar, eles retornaram ao funcionalismo público.
Apesar do possível desvirtuamento do benefício da quarentena, não há, a princípio, ilegalidade nessas situações. Procurados, os servidores negam irregularidades.
O Estadão encontrou 12 casos do tipo. São servidores públicos que atuaram como ministros, secretários de ministérios, presidentes de autarquias e diretores de empresas públicas no governo anterior. Entre eles estão o ex-ministro do Desenvolvimento Regional (MDR) Gustavo Canuto e o ex-ministro da Secretaria de Governo (Segov) de Bolsonaro Célio Faria Júnior. Ao Estadão, Canuto disse ter cumprido a quarentena de boa fé. Célio Faria Júnior não respondeu aos contatos da reportagem.
A quarentena existe para evitar o uso de informações privilegiadas obtidas por altos funcionários públicos ao irem trabalhar em empresas privadas. Ao decidir ir para a iniciativa privada, ele ou ela precisa consultar a Comissão de Ética Pública, que pode então liberar a pessoa imediatamente, ou submetê-la ao período de quarentena de até seis meses. Durante este período, a pessoa fica afastada de suas atividades e mantém o salário anterior. Reportagem do Estadão mostrou que ex-comandantes da Marinha e do Exército e um ex-diretor de uma autarquia apresentaram propostas de trabalho contestadas pelas empresas para receber os seis meses de salário extra.
Os processos da Comissão de Ética Pública foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. Segundo o presidente da CEP, o advogado Manoel Caetano Ferreira Filho, a Comissão trabalha para evitar ao máximo liberar imediatamente pessoas que deveriam permanecer em quarentena, e também para evitar aqueles que “usam a quarentena apenas para obter uma remuneração durante o período em que não trabalham”. “A gente analisa os casos em que a gente concede a quarentena, para evitar que o funcionário utilize isso como férias remuneradas. É um risco que a gente enfrenta, e cuida muito para que não aconteça”, diz ele.
Apesar disso, diz ele, o fato de um servidor de carreira desistir de ir para a iniciativa privada e voltar ao serviço público após a quarentena não constitui, por si só, uma fraude. “A gente analisa a situação que é exposta para a comissão, com base nos documentos que a gente tem, com este cuidado mesmo de evitar que o funcionário utilize a quarentena, que tem um interesse público (...), para o seu interesse privado”, diz o presidente da CEP.
Economista e servidor civil do Comando da Marinha, Célio Faria Júnior foi ministro da Secretaria de Governo da Presidência da República (Segov) de março de 2022 até o fim do governo. Antes, foi chefe do Gabinete Pessoal de Bolsonaro. Por decisão da CEP, ficou de quarentena de janeiro a junho deste ano. Na consulta, mencionou que gostaria de trabalhar com relações governamentais para uma empresa privada, mas sem dizer qual seria. Ao fim da quarentena, em 7 de junho, foi nomeado como assessor parlamentar na Liderança da Minoria no Senado. Procurado, ele não respondeu.
Gustavo Canuto foi ministro do Desenvolvimento Regional até fevereiro de 2020, quando assumiu a presidência da Dataprev, a empresa pública de processamento de dados da União. Ao deixar o comando da Dataprev, recebeu uma proposta de trabalho na Consiglog, empresa que trabalha com empréstimos consignados de servidores. Canuto trabalharia na área de relações institucionais da empresa – mas, após os seis meses de quarentena, ele acabou desistindo. Voltou ao serviço público e está hoje na Secretaria de Gestão e Inovação (Seges) do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI).
Ao Estadão, Canuto diz que cumpriu a quarentena de boa fé: ele realmente cogitou passar para a iniciativa privada, mas fatores como a possibilidade de passar mais tempo com a família pesaram na decisão de continuar no serviço público. “Acabei recebendo um convite de uma pessoa que eu gosto, para trabalhar na equipe dela. (...) Gosto do serviço público e acredito que ainda posso contribuir, independente da gestão”, disse ele.
Além de Canuto e Célio Faria Júnior, a lista inclui também os ex-secretários do antigo Ministério da Economia Alexandre de Carvalho e Marcelo Varella. Há também os ex-secretários Helder Melillo (Desenvolvimento Regional), Emmanuel Sousa de Abreu (Ministério de Minas e Energia) e Marcelo Marcos Morales (Ciência e Tecnologia). A lista segue com a ex-presidente do Iphan Larissa Peixoto; o ex-secretário de controle interno da CGU Antônio Carlos Bezerra Leonel; o ex-diretor do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Garigham Amarante; o ex-diretor da Companhia das Docas do Rio Jean Paulo Castro e Silva e o ex-diretor da Empresa de Planejamento e Logística S. A. (EPL) Marcelo Guerreiro Caldas.
A advogada constitucionalista e professora Vera Chemim explica que, embora não haja, a princípio, fraude nestes casos, servidores públicos que usam a obrigatoriedade da quarentena para proveito pessoal podem ser processados administrativamente. Neste caso, a pena mais severa é a demissão. Além disso, se ficar comprovado que algum servidor usou a quarentena para garantir um tipo de “sabático” indevido, ele pode ser denunciado por ato de improbidade administrativa, avalia ela.
Conheça os detalhes de cada caso e o que dizem os servidores
Alexandre de Carvalho – foi Secretário Especial de Produtividade e Competitividade do Ministério da Economia de Paulo Guedes entre julho e dezembro de 2022. Apresentou à CEP uma proposta de trabalho numa consultoria de Brasília, a Vallya Participações, atuando como “sócio responsável pelo desenvolvimento de planos de negócios na área de infraestrutura”. Depois do período da quarentena, porém, em julho de 2023, Carvalho voltou para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), onde é concursado. Ao Estadão, tanto Carvalho quanto a Vallya disseram que a proposta está de pé, mas depende de trâmites na Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) e na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que levam tempo.
Marcelo Dias Varella – atuou como Secretário Adjunto na mesma secretaria do Ministério da Economia que Alexandre de Carvalho, de março a dezembro de 2022. Apresentou à CEP a proposta de trabalho num escritório de advocacia e cumpriu quarentena, voltando ao serviço público em setembro passado, no Supremo Tribunal Federal (STF). À reportagem, disse que tinha “a intenção real de ir para o setor privado”. “Neste período, ainda fiz várias entrevistas com o setor privado. Contudo, amadureci melhor a ideia e decidi que tinha interesse em continuar contribuindo para o setor público, razão pela qual voltei”, diz ele.
Emmanuel Sousa de Abreu – número 2 do Ministério de Minas e Energia (MME) de julho de 2022 até 4 de janeiro de 2023. Consultou a CEP dizendo ter recebido “sondagens e recebido propostas variadas” para trabalhar em escritórios de advocacia, mas sem proposta formal. Dizia ainda pretender pedir licença do Banco Central, onde é servidor efetivo. No entanto, voltou ao serviço público no fim do período de quarentena, em 15 de junho de 2023, cedido ao Ministério da Fazenda. Um dos escritórios, Caputo Bastos e Serra, confirmou ter sondado Abreu, mas “as tratativas não continuaram”. Procurado, ele preferiu não se manifestar.
Marcelo Marcos Morales – foi Secretário Nacional de Pesquisa e Formação Científica do Ministério da Ciência e Tecnologia durante todo o governo de Bolsonaro. Disse à CEP que pretendia atuar como consultor numa empresa de pesquisa biomédica. A quarentena foi decidida em abril de 2023, válida desde a data da exoneração. No entanto, no mesmo mês, ele foi nomeado como assessor parlamentar do ex-ministro Marcos Pontes no Senado. Durante os meses de maio e junho, a quarentena garantiu um acréscimo salarial. Procurado, Morales disse que respeitou a lei aplicável ao caso, e que esta “permite e até incentiva que professores universitários, grupo no qual me incluo, prestem consultorias ao setor privado, respeitando o período de quarentena”.
Larissa Peixoto – presidiu o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) até dezembro de 2022. Consultou a CEP sobre a possibilidade de trabalhar com a área de “Relações Governamentais do Setor de Licenciamento de Obras em Áreas Tombadas” de uma construtora de Alagoas. No entanto, ao fim do período, ela acabou voltando para o Ministério do Turismo, onde é servidora concursada. Atualmente, está em licença maternidade, com retorno previsto para março. Segundo a pasta, Larissa não pediu a Licença para Interesses Particulares (LIP), necessária para trabalhar na construtora. À reportagem, Larissa disse que cumpriu a quarentena após imposição da CEP, seguindo “fielmente os trâmites e requisitos legais para tal”.
Antônio Carlos Bezerra Leonel – foi secretário federal de controle interno da Controladoria-Geral da União (CGU) de outubro de 2016 até o dia 02 de janeiro de 2023. Na consulta à CEP, não apresentou proposta formal. Disse apenas que queria “trabalhar com consultorias de integridade para empresas que queiram atuar nos projetos ProÉtica”. Foi submetido à quarentena de seis meses, a partir da data de saída do cargo. Perto do fim do período, em junho, voltou ao serviço público: foi cedido pela CGU para trabalhar no MP de Contas junto ao Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF). Atualmente, voltou à CGU. Procurado, não respondeu até a publicação desta reportagem.
Garigham Amarante Pinto – homem de confiança do presidente do PL, Valdemar Costa Neto, Garigham foi diretor do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE, de junho de 2020 até o fim do governo Bolsonaro. Apresentou à CEP uma proposta formal para trabalhar como “consultor sobre financiamento estudantil” na Agrale, uma montadora de Caxias do Sul (RS) com décadas de atuação. Procurada pela reportagem, porém, a Agrale negou ter feito qualquer convite. De acordo com o FNDE, Amarante recebeu a remuneração por menos de um mês de quarentena: em janeiro passado, voltou a trabalhar na liderança do PL na Câmara dos Deputados. À reportagem, Garigham disse ter cumprido a legislação vigente e negou irregularidades. Não comentou, porém, sobre a resposta da Agrale.
Jean Paulo Castro e Silva – foi diretor de Negócios e Sustentabilidade da antiga Companhia das Docas do Rio de Janeiro, atual PortosRio, uma empresa pública da União, de janeiro de 2019 até abril de 2023. Após apresentar proposta de trabalho do Terminal Portuário de Angra dos Reis (TPAR), teve quarentena decretada de maio a outubro deste ano. No entanto, pouco antes do fim do período, em setembro passado, voltou ao serviço público, cedido ao Ministério de Portos e Aeroportos. Procurado, não respondeu à tentativa de contato da reportagem.
Marcelo Guerreiro Caldas – Foi diretor de administração da Infra SA, a estatal resultante da incorporação da EPL (a antiga “estatal do trem bala”) pela Valec, a empresa de ferrovias do governo. À CEP, disse ter recebido proposta de emprego de duas empresas de engenharia, chamadas Strata e Pavesys. No entanto, em setembro passado, ele acabou voltando para o setor público, como auxiliar administrativo no Serviço Intermunicipal de Água e Esgoto de Joaçaba, Herval d’Oeste e Luzerna, o Simae. Caldas foi exonerado da Infra S/A quando a empresa descobriu que ele havia falsificado o diploma de graduação em Administração do UniCEUB, uma universidade privada de Brasília. À reportagem, a Infra SA disse que “não promoveu pagamento de remuneração compensatória ao ex-diretor Marcelo Caldas”, apesar da decisão favorável da CEP. Procurado pela reportagem, ele não respondeu.