No dia do 30º aniversário do Real uma constatação precisa ser feita: após Fernando Henrique Cardoso nunca mais elegemos um representante de grupo político que foi a favor do plano, o que nos diz algo sobre nação. Há exatos 30 anos, Luiz Inácio Lula da Silva, que liderava as pesquisas, vociferou contra a nova moeda, acusando-a de ser um projeto eleitoral de voo curto. O PT votou contra o plano.
Como secretária estadual de Minas e Energia do RS, Dilma Rousseff não frequentava o noticiário nacional, mas seu partido à época, o PDT, também condenou a iniciativa – o então candidato à presidência Leonel Brizola comparou o Real a um “cálice envenenado”. Defensor de causas tacanhas, como os salários de sua própria classe, o então deputado federal Jair Bolsonaro se opôs ao Real por considerar que prejudicaria a remuneração dos militares.
Os políticos que se opuseram ao Plano Real deviam saber que a inflação é o pior dos impostos. Numa economia não bancarizada a alta dos preços corroía rapidamente os salários de um dia para o outro. Era prática comum receber a remuneração e correr para um supermercado comprar o máximo que fosse possível. O índice de inflação acumulado entre 1980 e 1994 foi de 13.342.346.717.671% - 13 trilhões por cento. Esquecer uma nota no bolso era algo fatal. Ao reencontrá-la não valia mais nada. O fim da inflação proporcionado pelo plano Real reduziu drasticamente a fome no país.
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Nas últimas semanas, os jornais foram pródigos nas entrevistas com os responsáveis pela criação e consolidação do plano como Pérsio Arida, Rubens Ricupero, Pedro Malan, entre outros, e houve um certo consenso de que ainda falta uma perna a ser completada no projeto de estabilização: a fiscal. E, por acaso, temos um presidente da República que vai para o caminho oposto das advertências e tem dito aqui e ali, inclusive, que nossa dívida é “troco de tão pequena se comparada a de outros países”. Bem, se a comparação for com os países emergentes, que é a mais adequada, a afirmação foi (mais uma) fake news de nosso presidente. O Brasil é o terceiro mais endividado entre esse grupo de nações.
Mas para citar o filósofo holandês de origem portuguesa, Bento de Espinosa, do século 17, é preciso “não ridicularizar, não deplorar, não detestar, mas compreender”. Ocorreu que o final do governo FHC o Real já não tinha mais o élan de cerca de uma década antes. A crise do começo de 1999, com o fim da ancoragem do câmbio foi um trauma para a população; em 2001 houve o risco de apagão elétrico e o crescimento do PIB estagnava; o partido de FHC se digladiava internamente na busca de um sucessor; a inflação passava por um repique e os mercados se assustavam com o risco Lula.
Eleito em 2002, Lula soube ser ambíguo o suficiente em colocar a culpa por tudo de mal que ocorria no seu governo na gestão anterior, a tal “herança maldita”, e, ao mesmo tempo, manter a política econômica que herdou de FHC. O então ministro da Fazenda Antonio Palocci montou uma equipe de economistas liberais e entregou, no primeiro ano, um superávit primário numa ação que pode ter evitado o naufrágio do Real.
Ao mesmo tempo, na área social, o governo Lula desistia do programa Fome Zero, no qual as pessoas mais carentes iriam trocar cupons por alimentos indicados pelo Estado, em armazéns definidos pelos burocratas de Brasília. Se está espantado com a proposta, onde o governo iria definir até mesmo o que os mais pobres deveriam ou não comer, recupere o documento sobre área social da campanha de 2002 de Lula, está tudo lá. Mas no lugar desse planto estatizante resolveram unificar todos os programas sociais de FHC sob um mesmo guarda-chuva que recebeu o nome de Bolsa Família – expandindo-os continuamente - o que é meritório.
A questão que um programa de desenvolvimento baseado na responsabilidade fiscal sempre foi um calo para o PT. Por algum motivo a ser estudado até por psicanalistas, o partido parece considerar a responsabilidade fiscal incompatível com a responsabilidade social, sendo que uma sempre precisa da outra. Não é atoa que parte do partido, com José Dirceu à frente, há duas décadas, trabalhava dia sim e outro dia também sim para derrubar Palocci. O ministro da Fazenda na verdade se auto implodiu em 2006 num caso rumoroso envolvendo lobbies, prostitutas e um simples caseiro que observava tudo.
Foi só aí que a economia brasileira passou a ser conduzida por alguém mais afeito às ideias petistas: Guido Mantega. Junto com Dilma, que passou a ocupar a Casa Civil no lugar de José Dirceu, implodido pelo mensalão, a nova equipe econômica finalmente passou a desmontar as bases do Plano Real. A questão é que a partir deste ano o mundo passou a viver o boom das commodities, com todos os países produtores de matéria-prima vivenciando um alto ritmo de crescimento e o despropósito petista não foi facilmente observável.
Com dinheiro no caixa, foi possível então empurrar ajustes e reformas com a barriga. Mais: no período de bonança mundial foi viável tentar introduzir uma Nova Matriz Econômica, com o famoso mantra “gasto é vida”. Assim Lula foi reeleito, Dilma eleita e reeleita, enquanto os tucanos, principalmente os candidatos paulistas, seguiam sem dar o devido crédito aos méritos de FHC.
A brincadeira de aos poucos implodir com o Plano Real atinge seu auge no primeiro mandato de Dilma, com pedaladas, anúncios de obras públicas sem lastro para pagá-las, triunfalismo petista. Em 2013 a população mostrou que já não estava mais embevecida e foi para as ruas protestar, mas o governo dobrou a aposta nos gastos sem fim para Dilma se manter no poder.
O resultado foi, a partir de 2015, a volta da inflação de dois dígitos e uma das maiores recessões da história que culminou com a queda de Dilma. Michel Temer entra com um programa austero, mas era tarde. A população, mal-humorada com tanta crise, com os escândalos revelados para Lava-Jato tragando toda a classe política, com a prisão de Lula, humilharam o candidato tucano, Geraldo Alckmin, e elegem o falso antipolítico Jair Bolsonaro.
Quatro anos depois, para resumir a história, cansada da antipolítica estridente, uma maioria mínima traz Lula - solto pelos artifícios do poder jurídico - novamente ao poder. No Planalto pela terceira-vez, Lula, mais uma vez de maneira ambígua, nomeia um ministro da Fazenda em tese comprometido com o ajuste, mas roda o país condenando a responsabilidade fiscal. Talvez até hoje não aceite o sucesso do Real.
Tudo isso resumir uma triste saga na qual erros políticos, oportunismo, circunstâncias internas e externa afastaram o País de um projeto modernizante iniciado com o Plano Real. Não sabemos se um dia retomaremos o prumo.