Disputas de poder e o debate político-cultural brasileiro

Opinião|Debate sobre aborto tem uso tendencioso da Bíblia para defender o reacionarismo galopante


Apreciações interessadas dos chamados textos sagrados se tornaram a palavra final nas discussões políticas, mas nenhum líder religioso brasileiro os segue de maneira literal.

Por Fabiano Lana

Nas últimas semanas, no Brasil, o Congresso começou a votar, e a aprovar, leis que agradam certa militância política, no sentido de coibir o aborto, por exemplo, com penas de prisão cada vez mais duras. São muitas vezes ações de políticos histriônicos que querem um país em que os preceitos da Bíblia sejam aplicados de maneira rígida, punindo quem não segue as regras em tese determinadas por Deus.

A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, por exemplo, em cima de um caminhão, já lamentou que vivemos numa sociedade laica, em que religião e Estado estão separados. Sonha, então, com uma nação em que as normas da Bíblia tenham força da lei. Talvez, de maneira proposital, deixou entender que não se sente confortável em uma democracia.

Deputado Zacharias Calil (União-GO) encena aborto durante sessão da Câmara Foto: Reprodução/TV Câmara
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E se fosse assim, a seguir os ditos da religião como cláusula inquestionável, que tipo de sociedade teríamos? A Bíblia é um conjunto de livros absolutamente complexos, com amplas possibilidades de interpretação, e mesmo contradições internas, sobretudo se confrontamos o antigo e o novo testamentos. Traz passagens que defendem igualdade, solidariedade, amor, mas também intolerância e violência – inclusive contra mulheres e crianças. Mas algo é certo: alguns líderes religiosos brasileiros, nas suas cruzadas contra o aborto, escolheram uma série de diretrizes bíblicas, mais implacáveis, e deixaram outras de lado no momento de fazerem política em Brasília. Aproveitaram a fragilidade do governo, a omissão das forças de centro, e tentaram dar mais uma volta no parafuso do antiliberalismo nos costumes.

Em tese, a maioria absoluta das pessoas é contra o aborto. O que se deveria discutir com mais racionalidade é se a gestante precisa ser punida criminalmente caso o pratique (querem colocar milhares de adolescentes na cadeia, inclusive vítimas de estupros?). Sobre a questão específica do aborto não há nenhuma menção direta na Bíblia. Se for invocado o mandato de “não matarás”, além de ser também uma restrição à pena de morte, é possível alegar que o texto sagrado é recheado de assassinatos de pessoas inocentes, alguns ordenados pelo próprio ser Supremo. Por exemplo, ao contrário do que dizem os filmes hollywoodianos, ninguém que saiu do Egito chegou vivo à terra prometida, nem Moisés. Deus ainda exigiu a aniquilação de todas as aldeias que estivessem pelo caminho, sem poupar vidas. São histórias lancinantes.

Nesse sentido de ser um texto muitas vezes ambíguo, além de exigir punições severas às práticas homossexuais e, por outro lado, pedir que um irmão sustente o outro em dificuldades, a Bíblia sugere algumas práticas que não são praticadas nem mesmo por quem diz ser representante de Deus na Terra. Na verdade, o que se faz é manipular alguns trechos da Bíblia para obtenção de certos objetivos políticos reacionários.

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Porque a gente poderia até escolher outros trechos da Bíblia e perguntar se eles são seguidos também por quem diz ser um ardoroso defensor de Deus. Podemos começar com “nenhuma gordura de boi, nem de carneiro nem de cabra comereis”, (Levítico 7 23), o que nos impede de ir ao churrasco de domingo. “Pelos mortos não farei incisões no vosso corpo nem farei marca sobre vós” (Levítico 20 28), em trecho que impediria tanto as autópsias (assim foi por séculos), quanto as tatuagens. Também há restrições alimentares, como à carne de animais como a de porco entre uma série de delimitações. A Bíblia também prescreve, já em Coríntios, que durante a oração as mulheres ou devem usar o véu ou rasparem os cabelos. Quem segue esse trecho no Brasil? Nem Michelle Bolsonaro.

As amostras aqui são anedóticas no sentido de que a política usa a Bíblia de maneira bem conveniente para atingir seus objetivos de fortalecer certos grupos militantes. O conselho que se dá aqui, por outro lado, não é no sentido de desprezar esse livro tido como sagrado para milhões, mas mostrar que a questão pode ser enfrentada utilizando-se o mesmo texto.

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Por exemplo, a Bíblia também possui trechos que podem ser interpretados como passagens de tolerância com a homossexualidade, a saber, essas declarações de Davi a Jonatas, entre outras: “Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das mulheres” (Samuel 2 1.26). A Bíblia é um conjunto de livros tão extensos, tão díspares, tão sujeitos às interpretações divergentes, que é possível levar a infinitos tipos de vida apenas seguindo a chamada palavra de Deus. De santo ascético a terrorista sanguinário.

Enfim, a Bíblia é um livro aberto. É fruto de uma construção histórica (e do espírito santo, caso o leitor seja religioso), que envolve valores de épocas e sociedades diferentes. Cabe a cada um escolher o que fará com o texto ali escrito. Pode buscar um caminho da paz, da guerra, ou simplesmente seguir sem maiores reflexões os que dizem os guias religiosos – pastores, padres, políticos. Mas podem apostar que quase nada do que esses líderes dizem ser “a verdade revelada” é algo sem contestações na Bíblia. Muitas vezes um versículo pode vir a desmentir o outro. Muito cuidado com qualquer pessoa que queira te controlar utilizando passagens bíblicas – são textos que podem ser questionados a partir da autonomia e da capacidade interpretativa de cada um.

Nas últimas semanas, no Brasil, o Congresso começou a votar, e a aprovar, leis que agradam certa militância política, no sentido de coibir o aborto, por exemplo, com penas de prisão cada vez mais duras. São muitas vezes ações de políticos histriônicos que querem um país em que os preceitos da Bíblia sejam aplicados de maneira rígida, punindo quem não segue as regras em tese determinadas por Deus.

A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, por exemplo, em cima de um caminhão, já lamentou que vivemos numa sociedade laica, em que religião e Estado estão separados. Sonha, então, com uma nação em que as normas da Bíblia tenham força da lei. Talvez, de maneira proposital, deixou entender que não se sente confortável em uma democracia.

Deputado Zacharias Calil (União-GO) encena aborto durante sessão da Câmara Foto: Reprodução/TV Câmara

E se fosse assim, a seguir os ditos da religião como cláusula inquestionável, que tipo de sociedade teríamos? A Bíblia é um conjunto de livros absolutamente complexos, com amplas possibilidades de interpretação, e mesmo contradições internas, sobretudo se confrontamos o antigo e o novo testamentos. Traz passagens que defendem igualdade, solidariedade, amor, mas também intolerância e violência – inclusive contra mulheres e crianças. Mas algo é certo: alguns líderes religiosos brasileiros, nas suas cruzadas contra o aborto, escolheram uma série de diretrizes bíblicas, mais implacáveis, e deixaram outras de lado no momento de fazerem política em Brasília. Aproveitaram a fragilidade do governo, a omissão das forças de centro, e tentaram dar mais uma volta no parafuso do antiliberalismo nos costumes.

Em tese, a maioria absoluta das pessoas é contra o aborto. O que se deveria discutir com mais racionalidade é se a gestante precisa ser punida criminalmente caso o pratique (querem colocar milhares de adolescentes na cadeia, inclusive vítimas de estupros?). Sobre a questão específica do aborto não há nenhuma menção direta na Bíblia. Se for invocado o mandato de “não matarás”, além de ser também uma restrição à pena de morte, é possível alegar que o texto sagrado é recheado de assassinatos de pessoas inocentes, alguns ordenados pelo próprio ser Supremo. Por exemplo, ao contrário do que dizem os filmes hollywoodianos, ninguém que saiu do Egito chegou vivo à terra prometida, nem Moisés. Deus ainda exigiu a aniquilação de todas as aldeias que estivessem pelo caminho, sem poupar vidas. São histórias lancinantes.

Nesse sentido de ser um texto muitas vezes ambíguo, além de exigir punições severas às práticas homossexuais e, por outro lado, pedir que um irmão sustente o outro em dificuldades, a Bíblia sugere algumas práticas que não são praticadas nem mesmo por quem diz ser representante de Deus na Terra. Na verdade, o que se faz é manipular alguns trechos da Bíblia para obtenção de certos objetivos políticos reacionários.

Porque a gente poderia até escolher outros trechos da Bíblia e perguntar se eles são seguidos também por quem diz ser um ardoroso defensor de Deus. Podemos começar com “nenhuma gordura de boi, nem de carneiro nem de cabra comereis”, (Levítico 7 23), o que nos impede de ir ao churrasco de domingo. “Pelos mortos não farei incisões no vosso corpo nem farei marca sobre vós” (Levítico 20 28), em trecho que impediria tanto as autópsias (assim foi por séculos), quanto as tatuagens. Também há restrições alimentares, como à carne de animais como a de porco entre uma série de delimitações. A Bíblia também prescreve, já em Coríntios, que durante a oração as mulheres ou devem usar o véu ou rasparem os cabelos. Quem segue esse trecho no Brasil? Nem Michelle Bolsonaro.

As amostras aqui são anedóticas no sentido de que a política usa a Bíblia de maneira bem conveniente para atingir seus objetivos de fortalecer certos grupos militantes. O conselho que se dá aqui, por outro lado, não é no sentido de desprezar esse livro tido como sagrado para milhões, mas mostrar que a questão pode ser enfrentada utilizando-se o mesmo texto.

Por exemplo, a Bíblia também possui trechos que podem ser interpretados como passagens de tolerância com a homossexualidade, a saber, essas declarações de Davi a Jonatas, entre outras: “Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das mulheres” (Samuel 2 1.26). A Bíblia é um conjunto de livros tão extensos, tão díspares, tão sujeitos às interpretações divergentes, que é possível levar a infinitos tipos de vida apenas seguindo a chamada palavra de Deus. De santo ascético a terrorista sanguinário.

Enfim, a Bíblia é um livro aberto. É fruto de uma construção histórica (e do espírito santo, caso o leitor seja religioso), que envolve valores de épocas e sociedades diferentes. Cabe a cada um escolher o que fará com o texto ali escrito. Pode buscar um caminho da paz, da guerra, ou simplesmente seguir sem maiores reflexões os que dizem os guias religiosos – pastores, padres, políticos. Mas podem apostar que quase nada do que esses líderes dizem ser “a verdade revelada” é algo sem contestações na Bíblia. Muitas vezes um versículo pode vir a desmentir o outro. Muito cuidado com qualquer pessoa que queira te controlar utilizando passagens bíblicas – são textos que podem ser questionados a partir da autonomia e da capacidade interpretativa de cada um.

Nas últimas semanas, no Brasil, o Congresso começou a votar, e a aprovar, leis que agradam certa militância política, no sentido de coibir o aborto, por exemplo, com penas de prisão cada vez mais duras. São muitas vezes ações de políticos histriônicos que querem um país em que os preceitos da Bíblia sejam aplicados de maneira rígida, punindo quem não segue as regras em tese determinadas por Deus.

A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, por exemplo, em cima de um caminhão, já lamentou que vivemos numa sociedade laica, em que religião e Estado estão separados. Sonha, então, com uma nação em que as normas da Bíblia tenham força da lei. Talvez, de maneira proposital, deixou entender que não se sente confortável em uma democracia.

Deputado Zacharias Calil (União-GO) encena aborto durante sessão da Câmara Foto: Reprodução/TV Câmara

E se fosse assim, a seguir os ditos da religião como cláusula inquestionável, que tipo de sociedade teríamos? A Bíblia é um conjunto de livros absolutamente complexos, com amplas possibilidades de interpretação, e mesmo contradições internas, sobretudo se confrontamos o antigo e o novo testamentos. Traz passagens que defendem igualdade, solidariedade, amor, mas também intolerância e violência – inclusive contra mulheres e crianças. Mas algo é certo: alguns líderes religiosos brasileiros, nas suas cruzadas contra o aborto, escolheram uma série de diretrizes bíblicas, mais implacáveis, e deixaram outras de lado no momento de fazerem política em Brasília. Aproveitaram a fragilidade do governo, a omissão das forças de centro, e tentaram dar mais uma volta no parafuso do antiliberalismo nos costumes.

Em tese, a maioria absoluta das pessoas é contra o aborto. O que se deveria discutir com mais racionalidade é se a gestante precisa ser punida criminalmente caso o pratique (querem colocar milhares de adolescentes na cadeia, inclusive vítimas de estupros?). Sobre a questão específica do aborto não há nenhuma menção direta na Bíblia. Se for invocado o mandato de “não matarás”, além de ser também uma restrição à pena de morte, é possível alegar que o texto sagrado é recheado de assassinatos de pessoas inocentes, alguns ordenados pelo próprio ser Supremo. Por exemplo, ao contrário do que dizem os filmes hollywoodianos, ninguém que saiu do Egito chegou vivo à terra prometida, nem Moisés. Deus ainda exigiu a aniquilação de todas as aldeias que estivessem pelo caminho, sem poupar vidas. São histórias lancinantes.

Nesse sentido de ser um texto muitas vezes ambíguo, além de exigir punições severas às práticas homossexuais e, por outro lado, pedir que um irmão sustente o outro em dificuldades, a Bíblia sugere algumas práticas que não são praticadas nem mesmo por quem diz ser representante de Deus na Terra. Na verdade, o que se faz é manipular alguns trechos da Bíblia para obtenção de certos objetivos políticos reacionários.

Porque a gente poderia até escolher outros trechos da Bíblia e perguntar se eles são seguidos também por quem diz ser um ardoroso defensor de Deus. Podemos começar com “nenhuma gordura de boi, nem de carneiro nem de cabra comereis”, (Levítico 7 23), o que nos impede de ir ao churrasco de domingo. “Pelos mortos não farei incisões no vosso corpo nem farei marca sobre vós” (Levítico 20 28), em trecho que impediria tanto as autópsias (assim foi por séculos), quanto as tatuagens. Também há restrições alimentares, como à carne de animais como a de porco entre uma série de delimitações. A Bíblia também prescreve, já em Coríntios, que durante a oração as mulheres ou devem usar o véu ou rasparem os cabelos. Quem segue esse trecho no Brasil? Nem Michelle Bolsonaro.

As amostras aqui são anedóticas no sentido de que a política usa a Bíblia de maneira bem conveniente para atingir seus objetivos de fortalecer certos grupos militantes. O conselho que se dá aqui, por outro lado, não é no sentido de desprezar esse livro tido como sagrado para milhões, mas mostrar que a questão pode ser enfrentada utilizando-se o mesmo texto.

Por exemplo, a Bíblia também possui trechos que podem ser interpretados como passagens de tolerância com a homossexualidade, a saber, essas declarações de Davi a Jonatas, entre outras: “Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das mulheres” (Samuel 2 1.26). A Bíblia é um conjunto de livros tão extensos, tão díspares, tão sujeitos às interpretações divergentes, que é possível levar a infinitos tipos de vida apenas seguindo a chamada palavra de Deus. De santo ascético a terrorista sanguinário.

Enfim, a Bíblia é um livro aberto. É fruto de uma construção histórica (e do espírito santo, caso o leitor seja religioso), que envolve valores de épocas e sociedades diferentes. Cabe a cada um escolher o que fará com o texto ali escrito. Pode buscar um caminho da paz, da guerra, ou simplesmente seguir sem maiores reflexões os que dizem os guias religiosos – pastores, padres, políticos. Mas podem apostar que quase nada do que esses líderes dizem ser “a verdade revelada” é algo sem contestações na Bíblia. Muitas vezes um versículo pode vir a desmentir o outro. Muito cuidado com qualquer pessoa que queira te controlar utilizando passagens bíblicas – são textos que podem ser questionados a partir da autonomia e da capacidade interpretativa de cada um.

Opinião por Fabiano Lana

Fabiano Lana é formado em Comunicação Social pela UFMG e em Filosofia pela UnB, onde também tem mestrado na área. Foi repórter do Jornal do Brasil, entre outros veículos. Atua como consultor de comunicação. É autor do livro “Riobaldo agarra sua morte”, em que discute interseções entre jornalismo, política e ética.

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